A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) lança nesta segunda-feira (19) o Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos
Hídricos 2018, durante a abertura oficial do Fórum Mundial da Água, em
Brasília. A edição incentiva a busca por soluções baseadas na natureza (SbN),
que usam ou simulam processos naturais para contribuir com o aperfeiçoamento da
gestão da água no mundo.
O documento mostra que apesar da disseminação das tecnologias que
envolvem a conservação ou a reabilitação de ecossistemas naturais, esses
processos correspondem a menos de 1% do investimento total em infraestrutura
para a gestão dos recursos hídricos. Segundo a oficial do Programa Mundial de
Avaliação de Recursos Hídricos da Unesco, Angela Ortigara, o objetivo da
publicação é incentivar a adoção de soluções baseadas na natureza para que
sejam sejam efetivamente consideradas na gestão da água.
“O que acontece, muitas vezes, é que, por facilidade, praticidade
ou falta de conhecimento, ninguém pensa que se pode utilizar a natureza para
gerenciar, por exemplo, enchentes ou prevenir um caso de seca. E, no entanto, o
que a gente quer nesse relatório é mostrar que não é preciso necessariamente
construir grandes obras de infraestrutura para melhorar a gestão da água”,
afirmou Angela, em entrevista exclusiva aos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
O relatório da Unesco ressalta que abordagens tradicionais não permitem
que a segurança hídrica sustentável seja alcançada. Já as soluções baseadas na
natureza trabalham diretamente com a natureza, não contra ela e por isso
oferecem meios essenciais para ir além das abordagens tradicionais, de modo a
aumentar os ganhos em eficiência social, econômica e hidrológica no que diz
respeito à gestão da água. “As SbN são especialmente promissoras na obtenção de
progressos em direção à produção alimentar sustentável, à melhora dos
assentamentos humanos, ao acesso ao fornecimento de água potável e aos serviços
de saneamento, e à redução de riscos de desastres relacionados à água. Elas
também podem ajudar na resposta aos impactos causados pela mudança climática
sobre os recursos hídricos”, diz a publicação.
“O relatório quer que as pessoas abram os olhos para soluções que talvez
não estejam tão claras do ponto de vista de engenharia, não sejam tão
conhecidas, mas que podem trazer soluções que não são banais. Se decidir
reflorestar uma área, a primeira coisa que vai pensar é: essa área estará
coberta, terá animais, mas também ajudará a recarregar a água subterrânea, os
aquíferos”, disse a oficial da Unesco. “Há uma série de benefícios que são
difíceis de ser quantificados economicamente e talvez essa seja uma das razões
pelas quais essas soluções não venham sendo utilizadas. No entanto, são
benefícios que têm que ser considerados se pensarmos em longo prazo”, completou
Angela.
Entre os exemplos dados pela publicação está a ampliação de banheiros
secos, aqueles que evitam o lançamento de dejetos em tubulações ligadas a
centros de tratamento de água ou em rios. Esse tipo de banheiro também permite
a produção de composto orgânico ao final do processo. Em uma proposta de
solução mais ampla, o relatório apresenta a experiência das cidades-esponjas,
na China, em que construções absorvem água da chuva de forma rápida e segura.
Economia - De acordo com o relatório, as soluções
baseadas na natureza apoiam a “economia circular”, aquela considerada
restauradora e regenerativa, que busca reduzir os desperdícios e evitar a
poluição, inclusive por meio do reúso e da reciclagem. Além disso, a tecnologia
apoia os conceitos de crescimento verde e de economia verde, que promovem
o uso sustentável dos recursos naturais e aproveitam os processos naturais como
fundamento das economias. “Essa utilização das SbN no setor hídrico também gera
benefícios no campo social, econômico e ambiental, incluindo a melhoria da
saúde humana e dos meios de subsistência, o crescimento econômico sustentável, empregos
dignos, a reabilitação e a manutenção de ecossistemas, e a
proteção/desenvolvimento da biodiversidade”, ressalta a publicação.
O relatório diz que a demanda mundial por água tem aumentado a uma taxa
de aproximadamente 1% ao ano, devido ao crescimento populacional, ao
desenvolvimento econômico e às mudanças nos padrões de consumo, entre outros
fatores, e continuará a aumentar de forma significativa durante as próximas
duas décadas. No entanto, ao mesmo tempo, o ciclo hídrico mundial está se
intensificando devido à mudança climática, com a tendência de regiões já úmidas
ou secas apresentarem situações cada vez mais extremas.
Atualmente, estima-se que 3,6 bilhões de pessoas (quase metade da
população mundial) vivem em áreas que apresentam potencial escassez de água de,
pelo menos, um mês por ano. A expectativa, segundo a publicação, é de que essa
população poderá aumentar para algo entre 4,8 bilhões e 5,7 bilhões até 2050.
Desafios - De acordo com o relatório da Unesco, a degradação dos ecossistemas é uma
das principais causas dos desafios relativos à gestão da água. A publicação
estima que, desde 1900, entre 64% e 71% das zonas úmidas de todo o mundo foram
perdidas devido às atividades humanas. Todas essas mudanças têm gerado impactos
negativos na hidrologia, desde a escala local até a escala regional e mundial.
Outro desafio mostrado pela publicação é a qualidade da água. Desde a
década de 1990, a poluição hídrica piorou em quase todos os rios da América
Latina, da África e da Ásia. O documento prevê que a deterioração da qualidade
da água se ampliará ainda mais durante as próximas décadas, o que aumentará as
ameaças à saúde humana, ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável.
O relatório prevê ainda que o aumento de exposição a substâncias
poluentes será maior em países de renda baixa e média-baixa, principalmente
devido ao crescimento populacional e econômico e à ausência de sistemas de
gestão das águas residuais.
A publicação também estima que o número de pessoas que se encontram em
situação de risco de inundações aumentará do atual 1,2 bilhão, para cerca de
1,6 bilhão, em 2050 – o correspondente a aproximadamente 20% da população
mundial. A população atualmente afetada pela degradação e/ou pela
desertificação e pelas secas é estimada em 1,8 bilhão de pessoas, o que torna
essa categoria de “desastres naturais” a mais significativa, com base na
mortalidade e no impacto socioeconômico relativo ao Produto Interno Bruto
(PIB) per capita.
Uso do solo - De acordo com o documento, os ecossistemas exercem importante influência
no ciclo das chuvas, em escala local e continental. Em vez de ser considerada
uma “consumidora” de água, a publicação ressalta que a vegetação deve ser vista
como uma “recicladora” de água. Em âmbito mundial, até 40% da precipitação
terrestre são gerados pela transpiração vegetal e pela evaporação do solo,
também responsáveis pela maior parte das precipitações em algumas regiões.
“Portanto, as decisões relativas ao uso do solo em um determinado lugar
podem ter consequências significativas para os recursos hídricos, as pessoas, a
economia e o meio ambiente em lugares distantes – o que indica as limitações
das bacias de drenagem (em oposição às “bacias de precipitação”) em servir como
bases para o gerenciamento da água”, diz o texto.
Como alternativa, o relatório indica a parceria entre a tecnologia
tradicional com o uso de infraestrutura verde, voltada para os recursos
hídricos, que usa sistemas naturais ou seminaturais para oferecer opções de
gestão da água, com benefícios equivalentes ou similares à tradicional
infraestrutura hídrica cinza (construída/física).
“Em algumas situações, as abordagens baseadas na natureza podem oferecer
a principal ou a única solução viável (por exemplo, a recuperação de paisagens
para combater a degradação do solo e a desertificação), ao passo que para
outras finalidades apenas uma infraestrutura cinza funcionaria (por exemplo, o
fornecimento de água para uma casa por meio de canos e torneiras). Contudo, na
maioria dos casos, as infraestruturas verdes e as infraestruturas cinzas podem
e devem trabalhar em conjunto”, acrescenta a publicação.
Riscos relacionados à água - Atualmente, o mundo todo tem presenciado os
riscos de desastres relacionados à água, como inundações e secas associadas a
uma crescente mudança temporária de recursos hídricos em virtude de alterações
climáticas. Segundo o relatório, cerca de 30% da população mundial vive em
áreas e regiões afetadas rotineiramente por inundações e secas. A degradação
dos ecossistemas é a principal causa dos crescentes riscos e eventos extremos
relacionados à água e, além disso, ela reduz a capacidade de aproveitar plenamente
o potencial das soluções baseadas na natureza.
“Vemos que cada vez mais estão se intensificando os eventos extremos,
desastres naturais, justamente nas áreas que já estão sujeitas a esses
desastres. Onde há seca, em zonas extremamente áridas, haverá cada vez mais
secas, com cada vez mais impactos. Onde há inundações, vai ter cada vez mais
inundações. O que vai acontecer é que áreas que nunca vivenciaram desastres
naturais também poderão viver esses fenômenos. Isso é o principal desafio, que
em parte pode ser controlado, mas grande parte, não”, afirmou o oficial de
projetos de Meio Ambiente da Unesco, Massimiliano Lombardo.
Para a Unesco, a infraestrutura verde é capaz de desempenhar importantes
funções relacionadas à redução de riscos. A combinação de abordagens de
infraestrutura verde e cinza pode levar à redução de custos e a uma redução
geral dos riscos. “As SbN podem melhorar a segurança hídrica geral, aumentando
a disponibilidade e a qualidade da água e, ao mesmo tempo, reduzindo os riscos
de desastres relacionados à água e gerando cobenefícios sociais, econômicos e
ambientais. Elas permitem a identificação de resultados positivos para todos os
setores”, diz o texto.
Inércia política - De acordo com o relatório, ainda existe uma inércia histórica contra as
soluções baseadas na natureza, devido ao predomínio contínuo de soluções de
infraestrutura cinza nos atuais instrumentos dos países em relação às políticas
públicas, aos códigos e normas de construção. A consequência disso, em conjunto
com outros fatores, é a frequente percepção de que as soluções baseadas na
natureza são percebidas como menos eficientes, ou mais arriscadas do que os
sistemas construídos (com infraestrutura cinza).
“Muitas vezes, as SbN exigem cooperação entre as várias partes e
instituições interessadas, o que pode ser difícil de alcançar. Os arranjos
institucionais atuais não evoluíram, levando em consideração a cooperação no
que diz respeito às SbN. Faltam conscientização, comunicação e conhecimento em
todos os âmbitos, das comunidades aos planejadores regionais aos formuladores
de políticas nacionais, sobre o que as SbN realmente podem oferecer”.
“Continuam a existir mitos e/ ou incertezas sobre o funcionamento da
infraestrutura natural ou verde, assim como sobre o que significam os serviços
ecossistêmicos, em termos práticos. Também não é totalmente claro, às vezes, o
que constitui uma SbN. Faltam orientação técnica, ferramentas e abordagens para
determinar a combinação correta de opções de SbN e infraestrutura cinza”,
adverte o documento.
Limites - O relatório alerta que é necessário reconhecer os limites da capacidade
de suporte dos ecossistemas e determinar os valores a partir dos quais pressões
adicionais causarão danos irreversíveis aos próprios ecossistemas. “Há limites
ao que os ecossistemas são capazes de alcançar, e esses limites devem ser
identificados com maior precisão. Por exemplo, os “pontos críticos”, além dos
quais as mudanças negativas nos ecossistemas se tornam irreversíveis, são bem
estudados na teoria, mas raramente são quantificados”, indica a publicação.
Segundo o documento as soluções baseadas na natureza não necessariamente
exigem recursos financeiros adicionais, mas normalmente envolvem o seu
redirecionamento, ou o uso mais efetivo dos financiamentos já existentes. “Investimentos
em infraestrutura verde estão sendo mobilizados graças ao crescente
reconhecimento do potencial dos serviços ecossistêmicos em oferecer soluções
que tornam os investimentos mais sustentáveis e mais custo-efetivo no longo
prazo”.
“O investimento nas soluções verdes é ainda muito baixo. Se você tiver
que tomar uma decisão para o gerenciamento da água, eu diria: por favor,
considere coisas que são diferentes das usuais. Pense em soluções mais verdes,
que possam trazer benefícios não só para levar água do ponto A para o ponto B,
mas para que nesse caminho possa gerar benefícios para o meio ambiente”,
avaliou Angela Ortigara. “É necessário, principalmente para um país grande como
o Brasil, em que a gente sempre pensa que tem muita água, suficiente para tudo,
e acontece como em 2015, a seca em São Paulo, e a gente não sabe por quê”,
completou.
O documento apoia ainda a incorporação de conhecimentos e práticas
tradicionais às já consolidadas por comunidades locais sobre o funcionamento
dos ecossistemas e a interação natureza-sociedade. Nesse sentido, a publicação
sugere que devem ser feitas melhorias quanto à incorporação desses
conhecimentos nas avaliações e no processo decisório.
“O relatório demonstra que o ser humano pode fazer uma parceria com a natureza,
em vez de lutar e querer que ela se conforme com as nossas necessidades, é
[importante] tentar acomodar a necessidade da natureza, no caso da água, de se
espalhar, inundar uma planície, porque isso é importante para preservar a
qualidade e a quantidade da água que, depois, o ser humano vai utilizar”,
concluiu o oficial de projetos Massimiliano Lombardo.
Publicação - O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos
Recursos Hídricos (World Water Development Report – WWDR) é publicado anualmente,
com foco em questões estratégicas sobre a água. O documento oferece um quadro
geral do estado dos recursos de água potável no mundo e visa a proporcionar as
ferramentas sustentáveis a serem utilizadas pelos tomadores de decisões. (Ag.
Brasil)
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