Uma das páginas foi retirada do ar, a outra continua ativa, apesar
de já ter sido temporariamente removida após denúncias. Ambas são apontadas
como responsáveis por incentivar jovens a atentar contra a própria vida.
Induzimento ao suicídio é crime previsto pelo Código Penal brasileiro: quando o
resultado da indução é a morte de alguém, o acusado pode pegar até 6 anos de
prisão.
De acordo com as investigações, as duas páginas de Facebook possuem
o mesmo administrador, um perfil supostamente pertencente a um brasileiro. Juntas,
chegaram a somar mais de 43 mil membros. A primeira, que segue ativa, possui,
atualmente, 25,6 mil membros.
Os líderes dos grupos que incentivam suicídios se apresentam como
adolescentes de diversos Estados, entre eles São Paulo, Mato Grosso, Rondônia e
Amazonas. Há também administradores em outras regiões do Brasil, que não foram
reveladas pela polícia. Por meio de desafios, cuja missão final é atentar contra a própria
vida, participantes dos grupos teriam sido induzidos ao suicídio.
As tarefas são repassadas aos adolescentes por meio de grupos de
WhatsApp, para os quais são convidados os participantes dos grupos de Facebook
que se interessam pelos desafios. "Nesta segunda fase, somente aqueles que
recebem um link de convite podem entrar. É mais complicado termos informações
sobre esses grupos, porque são fechados", afirma a delegada Sabrina Leles,
da Delegacia Estadual de Repressão aos Crimes Cibernéticos (DERCC) de Goiás.
Entre os desafios estão: invasão a redes sociais e computadores de
terceiros, disseminação de fake news e automutilação. "Os grupos dizem que o objetivo deles é fazer piada, contar
histórias e apoiar uns aos outros. No entanto, temos provas que mostram que o
objetivo é criminoso", diz a delegada.
O jogo - Os desafios têm início quando os jovens são chamados para
participar dos jogos. Na maioria dos casos, os convites são feitos por meio de
mensagens privadas no Facebook, motivadas pela participação em páginas
pertencentes aos grupos na rede social. Os responsáveis por convidar os
adolescentes são os moderadores ou administradores dos grupos, que têm a missão
de atrair o maior número possível de jovens.
Segundo a Polícia Civil, os grupos investigados têm como figura mais
importante o curador, cujo nome não será divulgado pela BBC Brasil. Abaixo dele
estão os administradores e depois os moderadores. Cada um possui funções no
jogo, que variam da cooptação de jovens à invasão de computadores.
Um adolescente que participou do grupo relatou à Polícia Civil que
os organizadores se tornam íntimos dos participantes, perguntam sobre questões
familiares e relacionamentos amorosos.
"Eles pegam nos pontos fracos dos participantes. Dizem que a
família não os ama e que os amigos não gostam deles. Depois de um tempo,
começam a incutir a ideia de que ninguém gosta do adolescente de verdade e, por
isso, seria melhor ele acabar com o sofrimento e se matar, porque todo mundo
morre no final. Aconselham o adolescente a 'adiantar o processo'", relata
Leles.
Antes de aceitar participar dos desafios, os jovens são informados
de que a última fase é o suicídio. Três adolescentes, que participaram do jogo,
confirmaram à polícia que sabiam da etapa na qual teriam que atentar contra a
própria vida. Um deles disse ter tentado se matar duas vezes, para cumprir a
fase final, porém foi socorrido por parentes.
O fato de o jovem conhecer as etapas do jogo antes de iniciá-lo é a
principal diferença entre os desafios e o jogo virtual Baleia Azul - que também
estimula adolescentes a tirar a própria vida -, diz a Polícia Civil. "No
Baleia Azul, o curador se apossava de informações da vida íntima do
adolescente. O jovem era obrigado a participar, mediante ameaça de que seria
punido caso não concluísse os desafios. Nos grupos atuais, os adolescentes
participam porque, em tese, querem", pontua a delegada.
Professora de Psiquiatria da infância e adolescência da Faculdade de
Medicina da USP, Sandra Scivoletto afirma que o adolescente que participa desse
tipo de desafios possui, geralmente, algumas dificuldades em relação a si mesmo
e a seu círculo social, como insegurança e problemas de autoimagem.
"Eles aceitam esses desafios para fortalecer a autoestima. Não
podemos dizer, pois ainda faltam estudos, que haja uma pré-disposição ao
suicídio. Mas podemos afirmar que a participação nesses desafios envolve
adolescentes com problemas anteriores na vida real, não apenas no mundo
virtual", diz.
Os desafios - Logo que aceitam entrar no jogo, os participantes são colocados em
um grupo de WhatsApp. Nele, os administradores ou moderadores distribuem os
desafios. Uma das tarefas é a invasão de computadores. A prática ocorre por
meio de um vírus, vendido pelos administradores, com o qual seriam capazes de
invadir sistemas e perfis em redes sociais.
Entre as missões também estão apagar perfis de Facebook, indicados
pelos administradores; implantar fake news, por meio de perfis invadidos;
buscar novos membros para os desafios e participar de ataques a páginas nas
redes.
Os ataques funcionam por meio de comentários ofensivos em páginas de
conhecidos do participante ou a perfis de famosos. Eles costumam reunir
diversos membros dos grupos investigados e não se restringem àqueles que
estariam participando dos desafios.
Outro desafio proposto pelos líderes do grupo é a automutilação. O
participante deve cortar parte do próprio corpo e enviar imagens do
sangramento. À Polícia Civil, a ex-namorada do adolescente que se suicidou em
Goiás disse que o jovem tinha passado a se cortar pouco antes de cometer
suicídio. Duas semanas antes da morte do rapaz, os pais notaram os cortes em
seu braço. "Ele disse que tinha se machucado em nossa chácara. Como não
tínhamos motivo para pensar que ele estivesse mentindo, acreditamos", relata
o gerente comercial Onilton Pires, pai do adolescente.
Cada etapa cumprida pelo participante representa mais prestígio
entre os administradores. "Eles vão se tornando importantes na hierarquia
desse grupo", diz a delegada. A fase do suicídio é considerada, para o grupo, o ápice do desafio.
"Os administradores orientam passo a passo como obter coragem" para o
ato, diz a delegada.
As investigações - A descoberta sobre os grupos de incentivo ao
suicídio se deu após Onilton Pires relatar à Polícia Civil um fato que causou
estranheza no velório de seu filho: diversos adolescentes desconhecidos
acompanharam a cerimônia e fizeram fotos no local. Alheios ao luto da família,
eles não demonstravam tristeza. Conforme as investigações da Polícia Civil, o
objetivo deles era mostrar aos administradores do jogo que o jovem realmente
havia se suicidado.
Outro fato que também despertou desconfiança na polícia foi o suicídio
de Júlio (nome fictício), de 13 anos, também em Goiás, no mesmo dia em que o
filho de Onilton se matou. O garoto se jogou do 26º andar do prédio da avó. A
família dele também procurou a Polícia Civil. Porém, as investigações
comprovaram que Júlio não participava dos desafios. "Ele tinha amplo
acesso à internet e havia manifestado vontade de se matar, mas não participava
dos grupos", conta a delegada Sabrina Leles.
Em relação ao filho de Onilton Pires, a Polícia Civil assegura que
ficou comprovada a participação do jovem nos grupos e que eles efetivamente
incentivaram seu suicídio. Para tal constatação, as investigações analisaram o
computador do adolescente. O aparelho havia sido formatado por ele antes de
morrer e todos os dados foram apagados. O fato chamou a atenção dos pais do
jovem, que disseram que ele não costumava excluir as informações do computador.
Alguns itens foram recuperados pela Polícia Civil, entre eles uma
carta de despedida do jovem. "Em um trecho, ele dizia que não era para os
pais se preocuparem, porque ele não havia participado de nenhum jogo de
internet. Isso causou estranheza, porque a família disse que nunca o questionou
sobre esse assunto. Era aquela coisa da psicologia invertida: 'vou dizer que
não participo, para eles não pensarem isso'. Mas, no fundo, ele participava,
sim", diz a delegada.
No quarto do jovem também havia um pen drive com um vírus capaz de
invadir sistemas e redes sociais, além de implantar fake news. Os amigos do
jovem disseram à polícia que ele comprou o vírus do curador de uma das páginas,
por pouco mais de R$ 400, para cumprir parte das etapas do jogo.
Por meio das poucas conversas resgatadas do computador, a polícia
identificou Marcelo*, de 18 anos. Ele teria sido o intermediário dos contatos
entre o jovem morto e os administradores dos grupos pró-suicídio.
Marcelo também participava do jogo. Porém, disse ter desistido dos
desafios porque não queria se matar. Em depoimento à Polícia Civil, o jovem
declarou acreditar que o amigo foi influenciado a participar do jogo e a pôr
fim à própria vida.
Para Onilton, no entanto, Marcelo teria sido o responsável por
convencer o garoto a participar do jogo. "Não tenho nenhuma dúvida de que
ele influenciou meu filho a entrar nisso. Meu filho era muito corajoso, então
ele deve ter mostrado como funcionavam os desafios, para convencê-lo", diz
o pai.
Além de responder pelo crime de incentivo ao suicídio, que prevê
prisão de dois a seis anos, se o ato for consumado, os administradores das duas
páginas podem também responder por tentativas de suicídio que resultem em lesão
corporal grave. Nesse caso, a pena pode variar de um a três anos de reclusão.
Como os investigados são menores de idade, a condenação e cumprimento da pena
devem seguir diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme a
Polícia Civil, nenhum jovem foi apreendido até o momento.
Por meio de comunicado publicado em sua página no Facebook, os
administradores da página ainda ativa negaram a realização dos desafios
suicidas. Para eles, tais informações são "puro sensacionalismo da
mídia". "Menosprezamos tal conduta [de incentivo ao suicídio].
Consideramos um ato horrível. Buscamos ser uma família e ajudar a todos que
precisam", diz trecho do texto disponibilizado no grupo.
A delegada Sabrina Leles frisa que há provas suficientes para
determinar o elo entre o grupo e o jogo que incentiva o suicídio. "Eles
não vão confessar isso no Facebook, onde qualquer um pode ver. Esse incentivo
acontece de modo individual. Tudo o que foi levantado pela Polícia Civil tem
como base provas e declarações colhidas nas investigações."
Conforme Leles, as apurações apontaram ainda que outros grupos de
Facebook também teriam incentivado suicídios de adolescentes. "Os casos
estão sendo investigados", explica.
Outras mortes - Os suicídios de duas adolescentes de Goiás são investigados pela
Polícia Civil, que suspeita que elas também possam ter sido incentivadas pelo
grupo ainda ativo. As jovens moravam no município de Rio Verde. Uma delas, de
14 anos, se jogou do quinto andar do prédio de sua escola, em 7 de março.
Semanas depois, a outra garota, de 13 anos, se enforcou no quintal de casa.
"Elas tinham, entre os amigos no Facebook, pessoas que seriam
responsáveis por buscar novos membros para esses jogos. Mas só ao fim das
investigações saberemos se elas também foram influenciadas", comenta a
delegada.
A atuação do grupo pode ter extrapolado fronteiras. A Polícia Civil
investiga o suicídio de uma adolescente brasileira, de 15 anos, que morava no
País Basco, região da Espanha. De acordo com Leles, não é descartada a possibilidade de que as
mortes de outros jovens tenham sido motivadas pelo grupo. "Não temos
condições de investigar outros casos agora. Uma das dificuldades é que as
investigações que envolvem questões virtuais devem ocorrer o quanto antes, após
a situação."
'Quero que eles sejam presos' - Desde que o filho caçula se matou, Onilton Pires tem se perguntado o
porquê de o adolescente ter participado do grupo. "Ele era um filho muito
estudioso, atencioso e não dava problemas para a gente. Ele não costumava sair
muito e passava a maior parte de seu tempo em frente ao computador. Nunca
passou pela nossa cabeça que ele tivesse pensamentos suicidas", lamenta.
Ele conta que o filho se tornou mais introvertido e passou a
dialogar menos com os pais nas duas semanas antes de morrer. "A minha
esposa disse a ele que ele estava diferente. Ele respondeu que estava do mesmo
jeito. Mas a gente via que ele estava mais triste e calado. O meu filho sempre
foi muito extrovertido. Por isso, tínhamos decidido que iríamos procurar
acompanhamento psicológico para ele, mas não deu tempo", comenta.
O pai costuma se perguntar sobre as atitudes que poderia ter tomado
para evitar que o filho atentasse contra a própria vida. "Talvez eu
devesse ter tirado um dia para sentar ao lado dele no computador. Eu achei que
com tudo o que proporcionava, estava protegendo ele do mundo. Mas na verdade,
eu estava dando o acesso a ele ao mundo", declara.
A psiquiatra Sandra Scivoletto afirma que é fundamental que os pais
acompanhem as atividades dos filhos na internet e evitem o uso excessivo das
redes sociais. "O uso inadequado dificulta acompanhar o que o filho vive e
o que faz. Por isso, é importante os pais estarem próximos. É necessário
conhecer um pouco mais sobre o mundo virtual dos jovens", pontua.
Em meio às perguntas sem respostas sobre o filho, Onilton e a
mulher, Cleide Pires, torcem que os envolvidos no grupo de incentivo ao
suicídio sejam presos. "É o mínimo que esperamos. Tenho certeza de que se
eles forem presos, a situação vai ser um pouco mais moralizada. As pessoas
perderam o senso do perigo da internet e o limite", assevera.
Onilton e Cleide têm buscado formas de seguir adiante, desde que
perderam o filho. Nas próximas semanas, devem se mudar da casa em que viviam
com o jovem. Para eles, a residência lembra o filho a todo instante. "A
gente sabe que essa dor pela perda nunca vai passar, mas espero que ao menos
amenize, para que possamos aprender a viver com ela." (BBC)
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