"O
destino da democracia do Brasil e de sua relação com os Estados Unidos será
decidido nas próximas eleições", declarou o senador Patrick Leahy, um dos
cinco senadores aliados de Sanders a propor no Congresso do país uma resolução
para "apoiar as instituições democráticas brasileiras".
E embora
autoridades brasileiras nos EUA se esquivem de comentar ou digam que o pleito é
um "não assunto" na relação entre os dois países, em uma recente
recepção na capital americana em comemoração aos 200 anos da independência do
Brasil esse era justamente o pano de fundo da maior parte das conversas.
No espelho
Os destinos
das duas maiores democracias das Américas parecem ter se entrelaçado nos
últimos tempos. EUA e Brasil enfrentam desafios semelhantes e compartilham
interesses comuns. Ambos lideram o ranking de países com maior número absoluto
de mortos por covid-19 e enfrentam níveis de inflação acima de 8%.
Os dois países
também produzem commodities semelhantes - e por isso competem nos mercados
internacionais. Enquanto o Brasil é o maior produtor de soja e laranja, seguido
pelos EUA, respectivamente na segunda e quarta posições, os americanos estão à
frente na produção de milho, carne bovina, peru e frango, com o Brasil em
segundo ou terceiro.
Mas enquanto
competem com o Brasil, os EUA veem o país se tornar o principal destino de
investimentos da China em 2021, um golpe considerável para os americanos em sua
zona de influência mais óbvia, a América Latina, na disputa com ares de Guerra
Fria entre Washington e Pequim.
Por tudo isso,
era de se esperar que o interesse sobre quem deve comandar o Brasil no ano que
vem fosse alto. A novidade, no entanto, está na quantidade de manifestações
públicas sobre o assunto de altos funcionários ou representantes dos EUA meses
antes da votação.
"Há um
interesse maior e isso se deve à ameaça de ruptura democrática", diz
Carlos Gustavo Poggio, especialista em relações Brasil-EUA e professor do Berea
College, no Kentucky.
Desde a
redemocratização, argumenta ele, os pleitos foram pacíficos, sem sobressaltos.
"Agora temos um presidente que não deixa muito claro se vai obedecer aos
resultados das urnas e que tem uma relação próxima com os militares", diz
Poggio.
Desde que
venceu a eleição em 2018, Bolsonaro tem repetido acusações de fraude eleitoral
sem nenhuma evidência. O Brasil tem urnas eletrônicas desde 1996 - e nenhuma
fraude sistemática foi registrada até hoje.
Durante uma
recente visita ao Reino Unido para assistir ao funeral da rainha Elizabeth,
Bolsonaro disse que, se receber menos de 60% dos votos, "aconteceu algo de
anormal no TSE", o Tribunal Superior Eleitoral. Nas pesquisas de intenção
de voto, no entanto, ele nunca ultrapassou 35% e está cerca de 10 pontos
percentuais atrás de Lula.
Embora tenha
dito pontualmente que, se perder, "vai passar a faixa e se recolher",
Bolsonaro lançou sistematicamente suspeitas ao processo eleitoral, mesmo tendo
admitido não ter provas do que diz, e sobre sua própria reação diante dos
resultados.
Para muitas
autoridades americanas, seu posicionamento ecoa o de Donald Trump, que lançou
falsas alegações de fraude sobre a democracia americana antes e depois de sua
derrota para Joe Biden.
"Brasil e
Estados Unidos são espelhos um do outro", diz o ex-vice-secretário de
Estado dos EUA Thomas Shannon, que também atuou como embaixador dos EUA no
Brasil no início dos anos 2010. "O que acontece com uma dessas duas
democracias acontece com a outra", ele completa.
Em um discurso
recente à nação, Biden foi claro ao dizer que acreditava que o movimento de
Trump, o Maga (Make America Great Again ou Torne a América Grande de Novo, na
tradução para o português) era uma ameaça à democracia.
Há quem veja
no forte interesse dos EUA nessas eleições no Brasil uma forma de os americanos
confrontarem seus próprios fantasmas de 6 de janeiro de 2021, quando os
apoiadores de Trump invadiram o Capitólio dos EUA enquanto a vitória eleitoral
de Biden estava sendo certificada. O saldo foi de cinco mortos e de cenas que
trincaram a auto-imagem do país.
O historiador
da Brown University, James Green, que estuda Brasil há mais de 40 anos, diz que
foi a primeira vez que ele viu o termo pejorativo "República de
Bananas", que pessoas nos EUA costumavam reservar aos vizinhos com
processos políticos caóticos na América Latina, sendo aplicado por americanos
ao seu próprio país.
Em julho,
diante de uma plateia americana, o então presidente do TSE, Edson Fachin,
afirmou em Washington que o Brasil corria o risco não só de repetir o 6 de
janeiro, mas de vivenciar algo ainda "mais grave".
Diante de tudo
isso, os americanos começaram a se mover mais intensamente desde o fim do
primeiro semestre. Em entrevista à BBC News Brasil, em maio, a subsecretária de
Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, afirmou que "o que
precisa acontecer no Brasil são eleições livres e justas, usando as estruturas
institucionais que serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".
Pouco antes,
uma conversa entre o chefe da CIA, William Burns, e ministros de Bolsonaro foi
vazada. No diálogo, Burns pedia ao presidente brasileiro que parasse de lançar
dúvidas sobre as eleições. Bolsonaro negou que a conversa tivesse ocorrido.
Os políticos
também entraram em campo. O senador Leahy juntou-se a Bernie Sanders e outros
quatro senadores democratas para apresentar uma resolução de apoio às
instituições democráticas no Brasil que recomenda, entre outras coisas, que os
EUA reconheçam o vencedor do pleito brasileiro imediatamente após o anúncio do
resultado pelo TSE, para desencorajar qualquer possibilidade de contestação.
E na Câmara
dos Representantes, os democratas tentaram - e não conseguiram - aprovar uma
medida que suspenderia a ajuda militar ao Brasil se as Forças Armadas
abandonassem sua neutralidade política.
"Às vezes
a mensagem é formal, outras vezes é vazamento, mas tudo está tentando
transmitir o pensamento de Washington", diz Nick Zimmerman, consultor
sênior do Brazil Institute e ex-assessor de política externa da Casa Branca no
governo Barack Obama.
Para
Zimmermann, o que está em jogo não é só a situação no Brasil, mas uma questão
mais ampla de política internacional dos Democratas e de parte dos Republicanos
sobre as ameaças globais à democracia.
"A ordem
democrática multilateral construída após a Segunda Guerra Mundial está em risco
de uma forma que jamais esteve nos últimos 80 anos. E isso é algo que os
Estados Unidos vão lutar para defender", diz Zimmerman.
Trump dos Trópicos e Lula em estilo Biden
Questionar o
processo eleitoral não é a única semelhança entre Trump e Bolsonaro, que também
é conhecido fora do Brasil como "Trump dos Trópicos".
Ambos fizeram
campanha como outsiders, prometendo lutar contra as elites políticas, mesmo que
Bolsonaro já fosse um veterano no Congresso Nacional.
Ambos
incentivaram o nacionalismo e a posse de armas, e denunciaram os chamados
"globalismo" e "ideologia de gênero". Ambos dominaram a
comunicação direta com o eleitor via redes sociais.
"Bolsonaro
é um grande herói para todos nós", diz Bannon, que vê o Brasil como parte
fundamental de um movimento populista de direita global.
"Ele está
no nível do [primeiro-ministro húngaro conservador e autoritário] Viktor Orbán
como alguém que defende a soberania e construiu um movimento popular de bases.
Ele tem evangélicos, ele tem pessoas da classe trabalhadora. Se você olhar para
o bolsonarismo do Brasil, é muito parecido com o movimento Maga", diz
Steve Bannon.
Do outro lado
dessa disputa eleitoral, está Lula, cuja trajetória os americanos comparam com
a do próprio Biden.
Ambos vieram
de origens humildes, de famílias de trabalhadores braçais, e se tornaram
referências nacionais na política, ocupando altíssimos postos antes de voltar
às urnas: Biden como vice-presidente de Obama, Lula como presidente.
Ambos sempre
tiveram na negociação seu principal ativo e costuraram coalizões amplas para
garantir que os dois líderes populistas de seus países tivessem apenas um
mandato.
No caso de
Lula, há 8 ex-candidatos a presidente entre seus aliados, que incluem do líder
do movimento dos trabalhadores sem teto, Guilherme Boulos, ao ex-presidente do
Bank of Boston, Henrique Meirelles.
Do lado
americano, Biden foi capaz de unir desde o socialista Bernie Sanders a alguns
republicanos, como o ex-secretário de Estado de George Bush, Colin Powell,
falecido em 2021.
Além da
intrigante semelhança entre os dois principais candidatos lá e cá e da
possibilidade de uma eleição contestada, há outra razão pela qual o Brasil está
na agenda dos políticos americanos e europeus.
Nos últimos
anos, o Brasil acelerou o processo de desmatamento da Amazônia, a maior
floresta tropical do mundo. O governo Bolsonaro reduziu o orçamento para conter
a devastação do bioma. No ano passado, seu então ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, foi investigado e acusado pelos EUA de estar envolvido no
tráfico ilegal de madeira, o que ele nega. Ao mesmo tempo, o tema foi se
firmando como prioridade tanto no atual governo dos Estados Unidos como na
Europa Ocidental.
Agenda Verde e Esquerda
Para Shannon,
ficou claro ao mundo que decisões tomadas no Palácio do Planalto vão impactar a
vida de bilhões de pessoas no Planeta.
Durante sua
campanha eleitoral de 2020, Biden sugeriu que os americanos liderassem a
criação de um fundo internacional de bilhões de dólares que ajudaria o Brasil a
pagar pela preservação da área florestal.
A promessa, no
entanto, nunca saiu do papel. O principal motivo, segundo pessoas a par do
assunto na administração, foi a falta de confiança de que o governo Bolsonaro
cumpriria as metas firmadas.
Bolsonaro
afirma que o Brasil é referência na preservação ambiental e que as políticas
adotadas para a região são também uma questão de soberania nacional e de
desenvolvimento econômico.
Lula tem
falado muito sobre sua intenção de proteger a Amazônia e conseguiu atrair o
apoio de Marina Silva, ambientalista internacionalmente respeitada e sua
ex-ministra do Meio Ambiente por cinco anos.
Marina, no
entanto, deixou de ser ministra de Lula denunciando falta de prioridade da
agenda verde no segundo mandato do petista e, tanto Lula quanto sua sucessora,
Dilma Rousseff, levaram a cabo a construção de uma série de hidrelétricas no
meio da Amazônia, o que causou sérios danos à floresta e sua população nativa.
Se a nova
postura mais verde de Lula agrada aos Estados Unidos, há muito mais
insatisfação com sua relação próxima com os regimes de Cuba, Nicarágua e
Venezuela - o que Lula tem tentado suavizar com declarações sobre a necessidade
de alternância de poder nesses países.
Lula também
foi um grande defensor do BRICS, bloco formado por Índia, Rússia, China, África
do Sul e Brasil, que alguns viam como um desafio ao poder ocidental.
Em contraste,
sob Bolsonaro em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou a favor do
embargo dos EUA a Cuba, junto com os próprios EUA e Israel, e contra 187 outros
países.
Diante de
Biden, Bolsonaro teria lembrado que ele funciona como um escudo contra o que
chama de "disseminação do comunismo" na América Latina.
Ainda assim,
mesmo sob protestos dos americanos, o presidente brasileiro visitou o
presidente Vladimir Putin em Moscou em 2022, apenas duas semanas antes do
início da guerra na Ucrânia.
Para Shannon,
independentemente de quem vença a eleição, o Brasil será um grande jogador
internacional, com quem os EUA precisam trabalhar, sem pretensões de dominar.
"A diferença entre o Brasil e os EUA é que os EUA são uma superpotência global e eles sabem disso", diz ele. "O Brasil é uma superpotência e ainda não descobriu."
(BBC)
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