Era uma vez um porto em Belém, que o governo resolveu
desapropriar em 1988, fechando um acordo com o proprietário para pagar a metade
do preço definido pela Justiça. Três anos depois, os advogados da União
resolveram questionar o cálculo do valor acertado, numa briga judicial que se
estendeu por 20 anos. Nesse intervalo, a conta para o contribuinte subiu de R$
705 milhões para R$ 4,2 bilhões. Agora, o poder público fará a concessão à
iniciativa privada para transformar o porto no maior terminal de grãos do País.
O caso ilustra a falta de planejamento, coordenação e estratégia do governo
federal, que emperrou na Justiça um projeto que reduzirá em 85% o custo do
frete da soja, de acordo com cálculos da Companhia Docas do Pará (CDP),
tornando o principal produto agrícola do País muito mais competitivo.
Documentos obtidos pelo Estado mostram, por exemplo,
que há 14 anos a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) sugeria o fim do
litígio judicial, e que há 11 anos o Ministério do Trabalho pedia à Advocacia
Geral da União (AGU) que a causa fosse encerrada. "É de todo pertinente
trazer à lume que a paralisação do referido terminal vem dificultando o
desenvolvimento do País", disse o então ministro Eliseu Padilha. Mas o
caso só terminou em dezembro do ano passado, após quatro recursos idênticos da
AGU ao Supremo Tribunal Federal (STF), que multou o órgão por "litigância
de má-fé", segundo o ministro Ayres Britto. Ou seja, a AGU teria agido com
o objetivo único de retardar a solução do problema.
Capacidade - O porto fica localizado em Outeiro, uma ilha de
Belém, acessível somente por barcaças que transportam de 17 a 19 mil toneladas,
em vez dos 30.000 quilos de um caminhão. Segundo a diretora de Gestão Portuária
da CDP, Maria do Socorro Pirâmides, o terminal deve ser arrendado pela
iniciativa privada ainda neste ano e pode chegar a 18 milhões de toneladas por
ano de capacidade. "A vantagem competitiva deste porto está atraindo todo
o setor produtivo", afirmou. O terminal foi construído inicialmente para
receber fertilizantes, como amônia, cujo odor causava queixas da população
local. Na avaliação do ex-dono do local, Romildo Coutinho, 79, Brasília sofreu
pressão de Washington para impedir a operação do porto porque o custo da soja
nacional ficaria próximo do da oleaginosa produzida nos Estados Unidos.
"Vamos ter uma saída mais barata para o Pacífico, é um local abrigado
naturalmente, não precisa de dragagem", afirmou Coutinho. "Com o
porto funcionando, milho, açúcar e soja vão ser muito mais competitivos, isso
incomoda."
Desapropriação - A novela do porto começou com uma proposta da
extinta Portobrás de desapropriar o terminal em 1988. Perícia conduzida pela
Justiça federal fixou o preço em 23,5 milhões de Obrigações do Tesouro Nacional
(OTN), mas a estatal ofereceu 10,5 milhões, aceitos por Coutinho. Em 1991,
cerca de 60% do valor foi pago, mas a AGU contestou o cálculo de correção das
OTNs. Nova perícia, de 3 de julho de 1991, definiu o preço em 64,4 bilhões de
cruzeiros, que, corrigidos pelo índice oficial de inflação equivalem a R$ 705
milhões hoje. Os pagamentos, porém, foram suspensos pelo Tesouro Nacional, a
pedido de um dos credores de Romildo: o International Finance Corporation
(IFC), braço do Banco Mundial que financia empresas. Documentos obtidos pela
reportagem mostram que a IFC pediu a suspensão para poder receber antes de
outros credores. Em 16 de janeiro de 1992, o procurador Lindemberg da Mota
Silveira "esclareceu não concordar com a suspensão do pagamento dos demais
credores", porque não havia risco de prejuízo à IFC.
Estarrecedor - A partir daí, a AGU contestou na
Justiça os valores de juros e a causa se arrastou por anos. Em 1997, o ministro
Garcia Vieira, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) escreveu: "A União
não tinha motivo nenhum para insurgir-se contra a desapropriação (...) e, muito
menos, contra a homologação de um acordo onde a expropriada aceitou a oferta da
expropriante e não havia nenhum prejuízo para os cofres públicos".
Dez anos depois, o ministro José Delgado, também do
STJ, anotou: "é estarrecedor (...) que um acordo homologado em 27 de
setembro de 1988 não tenha sido cumprido. Penso que é desnecessário se fazer
qualquer outra observação." Em resumo, a AGU elevou a conta para o
contribuinte em R$ 3,5 bilhões de juros por recorrer durante 20 anos dos
cálculos judiciais feitos em 1991.
"Ainda não está resolvido, agora entramos na fase de
execução, quando a União deve fazer o pagamento, mas todos os recursos
protelatórios podem recomeçar sem que haja punição", afirmou o advogado
Antonio Glaucius de Morais, que atua no processo. Procurada, a AGU informou que
"a bem da verdade, os desapropriados não se conformam com a atuação da
União, que conseguiu reverter um cenário inicial que permitiria o
enriquecimento indevido dos expropriados às custas dos cofres públicos, para
valores compatíveis à desapropriação de um porto." (Com informações do Estadão)
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