No meio
da aula, uma criança desenha a presidente Dilma sendo enforcada, provocando
polêmica entre os colegas, deixando a professora confusa e a mãe, em desespero. A cena, ocorrida em uma escola de
São Paulo, dá a medida de como o clima de acirramento político que vive o país
está afetando as crianças e deixando pais e escolas sem saber como agir. O clima de tensão está inclusive
deixando as salas de TV, de aula e as ruas e virando assunto de terapia
infantil ou entre terapeutas da área.
"Tenho consultório há mais
de 20 anos, atendendo crianças de todas as idades. E posso afirmar que nunca vi
nada parecido. Nunca um mesmo tema permeou as questões de todas as crianças,
seja diretamente ou nas brincadeiras", diz psicanalista Ilana Katz,
doutora em Psicologia e Educação pela FE/USP e pesquisadora do Laboratório de
Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP/USP).
Em entrevista à BBC Brasil, a
especialista fala do clima de ódio e como ele afeta as crianças, sobre as
consequências de levá-las a protestos e o que significa vê-las gritar "não
vai ter golpe" ou bater panelas na varanda. Ela explica como lidar e
conversar com meninos e meninas sobre tolerância em tempos de ódio.
BBC Brasil - Como o clima de acirramento
político está afetando as crianças?
Ilana Katz - As crianças são muito porosas e elas
certamente estão sendo afetadas por esse clima de ódio. É algo muito
impressionante, e perigoso.
Minha percepção é a de que
estamos ensinando nossas crianças a odiar e a ver o diferente como inimigo.
Essa é a cara do nosso tempo.
BBC Brasil - É razoável levar criança em
protestos?
Ilana - É claro que os pais podem convidar os filhos
a irem em protestos, desde que a ideia seja transmitir um valor e não puxar
isso pelo lado afetivo. Ou seja, é legal querer introduzir um pensamento,
mostrar para a criança o que está em jogo, falar da história do país, contar
dos avós... Mas não se pode deixar que a criança fique com a ideia de que
"se eu for no protesto, meu pai vai me amar mais." As crianças são
muito suscetíveis a isso, precisam dessa aprovação.
BBC Brasil - Por quê?
Ilana - Elas se submetem a essa condição infantil de
ser amada pelo outro. Para serem admiradas, elas repetem o que o pai, a mãe ou
o amigo fazem, inclusive odeiam.
BBC Brasil - Seria melhor blindar as
crianças desse debate, ainda que parcialmente?
Ilana - Fala-se muito em politização da infância. Mas
essa é uma expressão ruim, porque ser político é estar na pólis, é participar.
E a criança é um acontecimento na cidade, assim como todos nós. E, hoje, não é
mais possível blindar as crianças do que acontece em volta delas.
BBC Brasil - Antigamente era mais fácil
fazer isso?
Ilana - É claro que antes se tinha mais controle. Se
a mãe dizia 'não pode ver novela', a discussão acabava aí. Hoje, quando a mãe
sai para trabalhar, a criança vê a novela - ou qualquer outro programa em
questão - no YouTube e pronto. Assim, a proibição tem um outro lugar. Um lugar
de onde é mais fácil de se fugir.
BBC Brasil - E qual a sua reação ao ver uma
criança xingando figuras políticas, algo que temos visto ultimamente?
Ilana - Para mim, isso é o horror. E onde já se viu
uma criança brigar com outra por questões políticas? Vemos que elas usam termos
que não usaria normalmente, ou seja, mal sabe o que está dizendo.
BBC Brasil - Então elas estão apenas
repetindo os pais ou os amigos?
Ilana - As crianças vão conosco nas nossas escolhas.
Elas não falam por si em termos de conteúdo - não dá para esperar que elas
saibam o que estão dizendo em um momento tão complicado. Mas elas falam por si
quando vemos a posição delas. E a posição de muitas é a do ódio. E é como
estávamos falando, odeiam porque o pai odeia, xingam porque a mãe xinga.
BBC Brasil - Mas muitos pais acham
importante mostrar suas convicções nesse momento. Qual a melhor maneira de se
fazer isso?
Ilana - Em qualquer tipo de cenário, é preciso
lembrar que há uma diferença fundamental entre a experiência reflexiva e a postura
de se transmitir o ódio.
Uma coisa é falar das minhas
lutas para os meus filhos, é eles me verem triste ou irritada quando há uma
notícia negativa nesse sentido. Outra coisa completamente diferente é
transmitir a intolerância ao que é diferente. É me ver xingando alguém que
pensa diferente dessa minha convicção.
BBC Brasil - Vemos muitas crianças
estressadas por esse clima de acirramento. Dizer para um filho que essa
discussão não é para a idade dele ou que ele não precisa se posicionar é válido
para aliviar essa tensão?
Ilana - Seria razoável inclusive para um adulto dizer
que ele não precisa se posicionar, embora nesse momento seja complicado, mesmo
que você tente.
Mas as crianças precisam ter isso
claro, sim. Elas devem saber que podem ter essa dúvida. Porque é justamente
essa condição de dúvida que dá lugar para a opinião do outro.
Precisamos dizer para as crianças
que ela não precisa concordar com a mãe e o pai ou que ela pode achar legal só
uma parte do que o professor ou o amigo falou.
Evidente que os pais podem dar
limites e não explicar determinado assunto, mas cada vez isso vai ter menos
efeito. Isso precisa vir junto com uma experiência que seja ao mesmo tempo de
afeto e de reflexão.
BBC Brasil - Está faltando isso? Exemplo?
Ilana - As crianças são mais suscetíveis ao que a
gente transmite do que ao que a gente explica. Dizer que tem de respeitar e
depois mandar alguém calar a boca não funciona.
Se seu filho quer um jogo de
videogame que você não quer dar, não tem nenhum problema em dizer não, claro.
Mas você pode dizer que não vai comprar porque é, sei lá, um jogo em que as
pessoas se matam e você não quer isso dentro de casa.
Dizer isso, sem fazer o seu filho
se sentir um idiota por querer algo com o qual você não concorda. É a maneira
como você explica, é a experiência da tolerância entre pais e filhos. Tudo
começa aí.
BBC Brasil - Há crianças, especialmente as
pequenas, que querem bater panela porque é divertido ou gritar "não vai
ter golpe" para agradar ao amigo. Como os pais devem lidar com esse tipo
de situação?
Ilana - O convite dos pais tem de ser sempre para o
pensar. Vai bater panela, filho? Por quê? Por que vai bater no pixuleco? Você
sabe o que isso significa? E vale sempre mostrar a posição
do outro.
BBC Brasil - Estamos falhando em mostrar
para as crianças a posição do outro?
Ilana - O que me surpreende é a questão do
maniqueísmo. A condição do maniqueísmo moral é própria da infância. É o bem e o
mal, a princesa e a bruxa, o mocinho e o bandido. Essa é a forma de pensar
infantil. Mas o que estamos vendo são adultos virando maniqueístas. É
responsabilidade do adulto mostrar que a vida não é assim, que uma pessoa
acertou aqui e errou ali. É preciso pode transmitir para as crianças que vamos
ter que viver com isso e não apesar disso.
É preciso abrir esse encontro
para um espaço para ser um local de pensamento e não uma crença ou uma fé. E
para isso, é preciso que haja lugar para a diversidade.
BBC Brasil - E qual o papel da escola em um
momento desses?
Ilana - A escola tem a obrigação ética de ensinar o
diálogo entre diferentes. Ensinar a suportar a experiência da alteridade, ou
seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro.
As famílias também deveriam ter
esse papel, claro. Você deveria estar aberto a ouvir que seu filho pensa ou
vota diferente, mas sabemos que nem sempre é assim. Já a escola que não tem
escapatória. É sua função desconstruir esse maniqueísmo e ensinar os alunos a
aceitar a sustentação do espaço dos outros. (BBC)
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