terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

COLUNA WILSON BELCHIOR: Antônio Félix Ibiapina, meu ortopedista

Certa vez estavam em Sobral, na Rua Menino Deus, frente à casa da dona Carmélia Duarte, os meninos João e Carlos Alberto Pinga Fogo, Agamenon do Pe. Gonçalo, Domingos, rapaz crescido na casa do seu Júlio Rodrigues, Roberto do Nilo, Dalton, Luís e José Ernani, Firmino Fibrala, outros e eu, compondo parte da nossa turma daquela famosa rua.

Brincávamos de saltar do meio fio e agarrar o galho de um benjamim frente àquela casa. Se conseguíssemos, o corpo descreveria um movimento pendular, até que o menino que houvesse pulado soltasse o galho, para outros repetirem o que fizera, inspirados nos filmes de Tarzan, que assistíamos no São João.
Era o ano de 1956, eu, com 12 anos, ao saltar não tive força para suportar o movimento do meu corpo e caí por cima do braço esquerdo. A dor que senti foi terrível e, não a suportando, desmaiei, indo acordar com meu pai me levando no Jeep do Cibite para a casa do seu Antônio Félix, localizada frente à casa do meu professor de Física, Chico Carlos.

Fiquei com medo de estar indo para lá, pois ouvira em Sobral horrores de como ele (Antônio Félix) tratava seus pacientes, segundo alguns, como se fossem animais. Mas eu estava com meu pai e não tinha outra alternativa a não ser seguir suas ordens.

Lá chegando, Antônio Felix veio ao nosso encontro dizendo:

- O que foi que houve, Otávio?

- O Wilson caiu de um benjamim e quebrou o braço.

- Mas isso não é nada! Venha com ele para cá.

- Como não é nada, Antônio Félix, ele até desmaiou?

Aquele “não é nada” que ouvi de Antônio Félix me fez lembrar alguém dizer que certo paciente fora até ele com os braços quebrados e ele falou que não era nada. Deixou o paciente à vontade e, quando menos esperava, Antônio Félix, colocou seu pé nas costas do infeliz, deu um sopapo para trás em seus dois braços, como querendo os arrancar do corpo, e tudo sem anestesia. E Isso me doía só em ouvir falar e eu não queria que aquilo acontecesse comigo.

- Deixe eu ver menino!

E começou calmamente, e com delicadeza, a percorrer com os dedos o meu braço acidentado. Começou por minha mão, em seguida pelo rádio, o cúbito, donde subiu para o úmero, clavícula e omoplata. E disse não haver nada quebrado, mas só uma distensão muscular.

A partir desse momento comecei a formar uma imagem diferente da que tinha do Antônio Felix, ortopedista, embora não me sentindo ainda seguro do tratamento.

- Será preciso engessar, Antônio Félix?

- Não vai ser preciso engessar nada, Otávio.

Aplicou-me uma injeção não sei de quê; deu-me três comprimidos com água para tomar; receitou-me um remédio, que papai comprou na Farmácia do Dr. Ramos. Depois, fabricou e colocou em mim uma tipoia; mandou eu deitar em uma cama de sua casa por meia hora, sem mexer com o braço, e ficou conversando com papai.

Decorrida meia hora, disse ao papai que se quisesse podia ir e que, se preciso fosse, me trouxesse de volta dentro de duas semanas, para ele proceder a uma reavaliação.

Fiquei bom e nunca mais lá eu voltei, com medo. Isso apesar de ter saído com uma excelente impressão do Antônio Felix, ortopedista, por me ter atendido com zelo. E nada da selvageria que eu guardava na cabeça, advindas de irresponsáveis informações.

Decorrido uns vinte dias, deixei de usar a tipoia e voltei a frequentar o Derby Clube de Sobral, de onde eu conhecia Antônio Félix, como um dos melhores juízes de Partida. Existiam outros também muito bons: lembro-me do seu Renato Parente, do seu Ildefonso Mendes Carneiro e de outros mais. Porém, eram sisudos e pouco comunicativos.

Grande parte dos frequentadores e toda a meninada adorava ver Antônio Félix dando a largada, quando a partida se dava nas proximidades da arquibancada. Naquele momento, metade dos que lá se encontravam descia para assistir de perto à largada.

- Vambora pessoal, vamos alinhar esses cavalos e essas éguas, para eu autorizar a partida! E não me venham com essa de querer levar vantagem, partir na frente, pois aqui não há sem-vergonhice. Cândido, eu já falei a seu respeito ao Gerardo Atibone. Portanto, muito cuidado. Outra vez, se preciso, falarei com o Edmilson e com o Dr. Zé Carlos. E você nunca mais colocará seus pés nas areias dessa raia.

O Edmilson a quem Antônio Felix se referia era o Edmilson Moreira, presidente do Derby. Já Dr. Zé Carlos era o Dr. José Carlos Saboia, secretário do Derby, afeiçoado desse esporte e que frequentava as corridas, usando terno branco e binóculo. Ambos prestaram relevantes serviços ao Derby Clube Sobralense.

Gerardo Atibone era comerciante e gente boa. Morava frente à igrejinha de Santo Antônio. Tinha negócios de compra e processamento de oleaginosas. Era pai do Zé Cláudio, nosso amigo. Lembro-me que, em 1958, ele abriu sua casa para a meninada da Rua Santo Antônio assistir, pelo rádio, à partida final da Copa daquele ano - Brasil x Suécia, que terminou 5 x 2. Naquela ocasião, o Brasil sagrou-se pela primeira vez Campeão Mundial de Futebol.

Gerardo Atibone possuía uma coudelaria no outro lado do rio, do mesmo lado e logo passando o Sítio Siloé da dona Carmélia Duarte. Lá vivia o Cândido, moreno esperto e gente boa, que sempre usava uma toalha no ombro. Muito alegre e trabalhador, a quem seu Antônio Félix na raia costumava repreender. Ele movia na raia os cavalos de sua coudelaria, procurando que os mesmos fizessem uma boa largada.

Dizia seu Antônio Félix: “Vamos alinhar logo esses cavalos e essas éguas, pessoal!” 

De repente, um cavalo partia sem a bandeira baixar e Antônio Felix ficava possesso. O cavalo voltava, e ao jóquei ele perguntava:

“O que foi que houve? Não está me vendo aqui? Vamos alinhar outra vez, se não eu darei a partida de qualquer maneira”.

Quando os cavalos e as éguas se alinhavam, ele baixava a bandeira e gritava com os jóqueis:

“Vambora, seus filhos de quenga!”.

E a poeira subia. A loucura na platéia começava e Antônio Félix calmamente se dirigia a um Jeep que o esperava. E ia do lado interno, tangenciando a raia e acompanhando os cavalos de certa distância. Isso era para constatar irregularidade, tais como, um jóquei açoitar o outro de chicote ou proibir de avançar o cavalo de trás...

Apesar do comportamento à primeira vista grotesco, não existia uma só viva alma, desde o presidente do Derby Clube de Sobral ao mais simples funcionário, que não gostasse do Antônio Felix. Tudo isso pelo seu caráter, pela sua lisura e até pelas suas brincadeiras com que tratava a muitos. E, naturalmente, pelo homem de bem e honesto que ele era, quer como barbeiro, tratador de animais nas fazendas, ortopedista dos meninos de Sobral ou juiz de Partida do Derby Clube.

Naquele tempo eu era menino, porém, ia sempre ao Derby. E até hoje, passado tanto tempo, guardo as melhores recordações do Antônio Félix Ibiapina, amigo de meu pai. Seu Antônio era um homem já velho, mas que também era meu amigo por ter um coração de menino.





(*) Wilson Belchior é engenheiro civil, articulista, poeta e memorialista.  






Nenhum comentário:

Postar um comentário