Depois de
assistir à chacina mais violenta de sua história - com 14 mortos alvejados a
esmo em uma festa de rua - o Ceará enfrentou uma sangrenta rebelião
penitenciária que resultou em 10 mortos. Tudo em menos de 48 horas, no começo
dessa semana. Um ano antes, o Brasil foi impactado por revoltas violentas em
série nos presídios do Norte e Nordeste brasileiros.
Se os casos
chocam a população em geral, os episódios não surpreendem especialistas como o
sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública e professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Lima
acompanha os movimentos das facções criminosas e a resposta do poder público a
eles e diz que tanto a escalada da violência dos grupos quanto a dificuldade do
Estado em responder a isso eram esperados.
Em entrevista
à BBC Brasil, em Londres, Lima atribui o aumento da criminalidade violenta a
uma nova dinâmica do crime organizado - em especial à guerra travada entre os
ex-aliados PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho) - e à
dificuldade de ações planejadas e integradas entre as forças de segurança,
Judiciário e Ministério Público, dentro e fora dos presídios.
Para ele, há
uma autocrítica a ser feita entre estudiosos de segurança pública, e os
especialistas não tem sido eficientes em se comunicar com a população. "E
no debate a gente erra dando combustível a figuras como Bolsonaro e se esquece
de gerar um debate que tenha empatia junto à população", diz Lima. Leia os
principais trechos da entrevista.
BBC Brasil -
Rio Branco, no Acre, é a capital onde os homicídios mais aumentaram no país.
Como o sr. vê esse avanço da criminalidade violenta rumo ao Norte do Brasil?
Era algo esperado? O que explica esse movimento que passa pelo Nordeste e chega
ao Norte?
Renato Sérgio
de Lima - O Norte é uma área de fronteira, mas sempre teve inovações. Por
exemplo, o Pará foi o primeiro estado a integrar as políticas de segurança
trazendo para uma mesma coordenação as polícias Civil e Militar no começo dos
anos 1990. Fez um trabalho intenso de redesenho da gestão da área. O Acre, no
começo dos anos 2000, também fez isso. Mas se a gente olhar o Acre, há uma
questão muito forte de ilegalidade na fronteira, que é completamente porosa,
sem nenhum tipo de controle oficial, não só no Acre, mas em toda região Norte.
Drogas, armas, passa qualquer coisa ali. Você tem problema geopolítico e
estratégico. O governo estadual é quem gerencia as polícias e, até a última
década, tinha políticas integradas. Isso deixou de existir de alguma forma.
Você tem uma mudança que tem a ver com governança na qual cada polícia pensa
por si só e presta contas ao governador. Não existe planejamento, integração.
Isso vem acontecendo em vários lugares do país.
BBC Brasil -
O crime organizado também mudou?
Lima - Há
uma nova dinâmica do crime organizado que ganhou uma escala nacional a partir
dos presídios. A gente tem sim toda uma disputa de rotas de tráfico, mas o
controle territorial é feito a partir do controle dos presídios. São cerca de
30 organizações criminosas no país, praticamente todas nasceram dentro dos
presídios. O Acre, por exemplo, já teve crises fortes nos presídios. A gente
aceita que as prisões sejam escritórios do crime organizado.
E você tem
ainda um fator que tem mais a ver com o Nordeste, que é o efeito perverso do
crescimento que tivemos na economia. Antes da crise que começou em 2014,
tivemos uma interiorização da violência. As cidades cresceram, a riqueza
começou a circular para além das capitais e as instituições de segurança,
principalmente as polícias, mas também o Judiciário e o Ministério Público, não
tiveram a mesma capacidade e a mesma capilaridade. As respostas públicas não
seguiram na mesma velocidade.
BBC Brasil -
Depois do Acre, é possível apontar quais estados podem passar por situação
similar de crescimento acelerado de homicídios e crimes violentos justamente
por essa conjunção de fatores?
Lima - Nós
tivemos, no começo do ano passado, o Amazonas (com uma série de rebeliões
violentas e mortes nos presídios em janeiro de 2017). Rondônia é uma bomba
relógio. Rondônia e Roraima são situações que, às vezes, a gente dá pouca
atenção, mas exigem cuidado redobrado. Toda região Norte, de alguma forma, é
uma nova fronteira para um outro patamar de criminalidade. O que a BBC
identificou [na reportagem sobre a escalada do crime no Acre] só revela o
quão violenta são as relações no Brasil. A violência faz parte da nossa
história. No momento em que você tem instituições pouco estruturadas para
conter a violência, você permite que ela se manifeste. Uma coisa que a gente
tem que deixar muito explicita é que a dinâmica não é só resultado do crime
organizado. A quantidade de violência doméstica, de crimes de mando por
conflitos fundiários... o crime organizado é uma peça fundamental nesse
tabuleiro, mas é só um dos problemas que nós temos no Brasil e que se
manifestam com força no Norte e Nordeste porque são regiões que têm, no
linguajar técnico, capacidade institucional ainda extremante frágeis para fazer
frente ao que a gente está vivenciando.
BBC Brasil -
Um leitor da BBC Brasil que é do Acre nos escreveu comentando que antes não se
via arma de grosso calibre como fuzil no Estado e, mais recentemente, há sempre
notícia de uso ou apreensão desse tipo de armamento. O acesso fácil às armas
pesadas é parte da explicação para o aumento da criminalidade violenta?
Lima - A
violência urbana que mata no Brasil usa revólver e pistola.
BBC Brasil -
Não é fuzil?
Lima - Não
é fuzil. Isso não quer dizer que o crime organizado não está se armando para
suas disputas de território num momento em que você tem uma mudança de patamar
principalmente com a cisão do PCC (Primeiro Comando da Capital) e do Comando
Vermelho (CV), que antes eram aliados e hoje são inimigos e tentam fortalecer
suas posições. Essas armas estão chegando sem controle por várias frentes e o
Estado brasileiro não tem conseguindo frear esse fluxo porque, de fato, nossas
fronteiras são muito porosas. É muito difícil combater o tráfico de armas
porque as fronteiras são difíceis de serem vigiadas. Até na fronteira dos EUA
com o México, uma das mais vigiadas, passa um monte de coisa. Tem que ter
clareza que não existe um escudo que nos blinde ou um muro a la Donald Trump
que nos proteja. Precisa ter informação, inteligência. A questão da arma é
importante quando se fala de segurança pública. O fuzil e a metralhadora são
armas de guerra e se nós conseguíssemos controlar melhor a ponta de produção e
se tivéssemos acordos de cooperação para saber por onde essas armas circulam,
com certeza teríamos uma maior efetividade na segurança pública.
BBC Brasil -
Inteligência pode ser uma arma mais eficiente?
Lima - Inteligência
e armas de poder de parada. Como foi feito em vários lugares trocando fuzis por
carabinas. Não é porque o crime organizado adota estratégia de guerrilha que a
polícia precisa fazer o mesmo. Se a gente não tiver doutrina do uso de armas
nesse sentido, a gente pode estar colocando em cheque todo um esforço de
construção de uma política de segurança pública. É um risco quando as pessoas
ficam dizendo... é claro que assusta e precisamos ter poder de capacidade de
fazer frente a isso, mas não pode autorizar todo mundo (a usar fuzis).
BBC Brasil -
Com a desmilitarização das Farc, pode ser que se busque um outro inimigo
público regional. O senhor acha que o PCC caminha para ser esse inimigo?
Lima - O
PCC de fato é uma organização que precisa ser muito conhecida e acho que é
relativamente pouco conhecida pelas instituições. Temos investigadores e
pessoas que conhecem muito, mas as corporações não incorporaram esse
conhecimento para além do delegado A, o promotor X, ou a força especial H. Esse
é o primeiro ponto. O segundo é: com a desmobilização das Farc no plano
regional, o PCC é o que mais se aproxima de um grande inimigo regional. Ele tem
capacidade operacional, tem muito dinheiro, tem capacidade de aliciamento e
corrupção e, de alguma forma, controla fatias importantes de território.
BBC Brasil -
Não só no Brasil...
Lima - Não
só no Brasil, mas em outros lugares, principalmente no Paraguai. Agora uma
coisa importante é que o dinheiro que compra a droga pode não estar no Brasil.
A ordem bancária pode sair de outros países. O dinheiro está circulando. Isso
mostra a importância de ter inteligência financeira forte para fazer frente a
isso. A gente se esquece disso e acha que tem que ficar com um fuzil na frente
de uma favela enfrentando um traficante que, na verdade, é só um funcionário de
uma cadeia muito mais poderosa que ele.
BBC Brasil -
O próprio PCC tem essa ambição de ser o inimigo?
Lima - O
PCC não tem ambição hegemônica como as Farc de ser um poder paralelo. O PCC
visa lucro. Você não tem o PCC contra o Estado como você tinha a Farc contra o
Estado colombiano tentando implantar um regime comunista. Nem PCC ou os
comandos, nenhuma dessas organizações, querem mudar o plano, eles querem é
ganhar dinheiro. Até vai se associar a políticos e eleger candidatos. Isso é
verdade, mas não para impor uma nova ordem política ou porque querem mudança, é
simplesmente porque querem aumentar os lucros. Por isso, o próprio PCC seria
contra a legalização das drogas porque é um negócio super lucrativo, contra um
maior controle de fluxo de armas. O próprio crime organizado joga a favor dos
pensamentos mais conservadores e reacionários porque resolver a situação enfraqueceria
o poder de fogo das facções.
BBC Brasil -
Na sua avaliação, o PCC está se colocando naturalmente como o próximo inimigo?
Lima - Nosso
principal inimigo na América Latina não é o crime organizado, é a ineficiência
do Estado. O nosso inimigo está em outro lugar, é nossa incompetência pública
em gerir segurança. O PCC é fruto perverso da política penitenciária
brasileira. A gente não pode ter medo de dizer isso. Nos últimos anos, só cerca
de 13% dos presos são acusados de homicídios e estupros e a população
(carcerária) por crimes de droga mais do que dobrou. A política penitenciária
é, no fundo, a direta responsável pelo fortalecimento das facções criminosas. A
gente não pode fugir dessa discussão. O Estado está fracassando e quando falo
Estado, não é o poder Executivo apenas. O poder Judiciário está muito ausente
desse debate. O Judiciário faz, em meio às crises, declarações indignadas
"de que não podemos admitir", mas continua demorando a julgar casos
de presos provisórios, continua priorizando prender crimes relacionados a
drogas. E não lida com questões práticas da governança do sistema.
BBC Brasil -
Tem ganhado força popular a ideia de aumentar a repressão na Segurança Pública.
Há um descompasso entre o que pensam alguns especialistas - que recomendam a
legalização das drogas, por exemplo - e o que a população parece querer?
Lima - A
população está amedrontada, ela não acredita nas políticas públicas e, quando
precisa, não pode contar com os serviços públicos e principalmente com a
polícia. E tem uma relação extremamente contraditória com a polícia, de
esperança e medo. A polícia que muitas vezes gera medo é aquela a qual a
população recorre para resolver problemas. O Brasil tem fracassado em desenhar
uma política de segurança pública e também tem fracassado ao construir um
discurso que faça um contraponto civilizatório ao discurso, por exemplo, do
Jair Bolsonaro que atingiu 18% da preferência do eleitorado (segundo pesquisa
Datafolha feita no fim de janeiro). Qual é o discurso do Bolsonaro? É só o
discurso da ordem, não é mais nada. Contraposto com questões econômicas,
políticas, ele não sabe e não tem nenhuma proposta. É a reivindicação de ordem,
uma ordem imposta pelo medo e pela violência.
BBC Brasil -
Pelo visto, está dando certo...
Lima - Não
adianta um discurso baseado só em evidência, só no que dizem os dados. Os
especialistas erram ao achar que a razão é a única forma de convencer a
população. Se a gente olhar o que acontece com o Bolsonaro, ele não tem nenhuma
racionalidade na argumentação, é pura emoção. E está com 18% (de intenções de
voto). A gente precisa dizer que os dados mostram que há caminhos e eles passam
pela agenda de direitos. Mas não é dizer que é preciso primeiro resolver as
desigualdades sociais, mas apontar caminhos que resolva o problema da
criminalidade hoje. Temos cometido um erro histórico.
BBC Brasil -
Qual erro?
Lima - Temos
que ter a coragem de dizer que quem está com fuzil precisa ser punido, sim. Não
posso achar que ele não pode porque há desigualdades. Esse é o que precisa ser
punido, ser preso. O estado de direito não é vingança, é punição. E no debate a
gente erra dando combustível a figuras como Bolsonaro e se esquece de gerar um
debate que tenha empatia junto à população. (BBC)
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