As inscrições
para o Financiamento Estudantil (Fies), que financia alunos em cursos de graduação
privados, abrem nesta quinta-feira (7), mas o programa deste ano
está bem mais enxuto. Além disso, a queda do número de contratos nos últimos
dois anos põe em dúvida a sua continuidade.
O programa do Ministério da Educação (MEC)
é buscado por estudantes como Gabriela Morais, 22 anos, que pretende cursar
medicina veterinária. Ela já tentou contratar o Fies duas vezes e não conseguiu
por causa da renda. "Meu pai é professor da Secretaria de Educação. Eles
consideram que os professores ganham bem, mas não consideram que eles são super
endividados, têm salários congelados há anos", conta a jovem. "Tem
muita gente que precisa e não consegue o Fies. Eles precisavam rever o
programa", defende.
Com dificuldades, a
família da Gabriela tentou pagar a faculdade por três semestres, mas a jovem
precisou trancar os estudos. "A faculdade é integral, não dava nem para
trabalhar", explica. Com o sonho adiado, Gabriela conta que fica ansiosa
sem saber os rumos que sua vida vai tomar. Agora, ela pretende achar um
cursinho gratuito para estudar e tentar passar na Universidade de Brasília
(UnB), instituição pública que não cobra mensalidade.
Quando Gabriela
buscou o Fies, o auge do programa já havia passado. O número de contratos
disparou durante o primeiro governo Dilma Rousseff (PT), de 76 mil em 2010 para
733 mil em 2014, com juros abaixo da inflação, obtenção do financiamento a
qualquer momento do ano e prazo de quitação maior. Mas o programa começou a
perder força no início do mandato seguinte, com 287 mil estudantes beneficiados
em 2015.
Passado o boom, a
oferta de financiamento recuou ao patamar do início da década - serão
oferecidos 100 mil contratos por ano até 2021. Mas a demanda não para de
crescer.
40% não têm como
pagar mensalidade
Em 2010, 4,7 milhões
de brasileiros estavam matriculados em cursos superiores privados. Nos oito
anos seguintes, a população do país cresceu em 9,4%, enquanto a quantidade de
alunos em faculdades privadas aumentou em 42%. Essa fatia representa quase 3/4
dos mais de 8 milhões de matriculados no ensino superior atualmente.
Segundo um estudo realizado pela Associação
Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) em parceria a empresa Educa
Insights, 40% dos estudantes não têm condições de arcar sozinhos com as
despesas da mensalidade nos cursos de graduação. O mesmo levantamento aponta
que 51% dos estudantes acharam que as últimas mudanças no Fies dificultaram o
acesso ao programa e mais da metade dos estudantes nunca nem ouviu falar do
P-Fies (quando o financiamento é feito por um banco privado).
Na família Chaves, o Fies foi um sucesso e
um fracasso. Jaqueline, de 25 anos, conseguiu o Fies em 2012 e em 2016 terminou
seu curso de jornalismo em uma instituição privada de Brasília. Atualmente,
paga prestações de um pouco mais de R$ 300 referentes ao financiamento com
juros. Na época em que ela contratou o empréstimo, os juros eram subsidiados e
as regras do programa eram bem mais flexíveis.
Já a irmã Julianie
Chaves, de 20 anos, tentou contratar o Fies em 2017, após as principais
alterações no programa, mas não teve sucesso. A estudante, então, optou por
pagar a faculdade de fisioterapia. Ela ainda conseguiu uma bolsa parcial por
ter tirado uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas ainda
assim as mensalidades ultrapassam R$ 1.000.
Julianie sentou para
conversar com o pai, que é servidor público, para ver se ele teria condições de
arcar com os custos. "Ele fez as contas e disse que sim, mas estou vendo a
hora que não vai dar mais", lamenta.
"O Fies, como está agora, não tem
condições. Vejo pela minha turma mesmo, só tenho três colegas que conseguiram o
Fies e ainda é preciso fazer um jogo de cintura", critica a estudante.
Para o coordenador de Relações
Internacionais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Leandro Tessler,
o modelo do programa antigamente era ruim e sem controle, mas com as últimas
mudanças ele passou a ser ineficiente. "O Fies se transformou em uma modalidade
de financiamento como outra qualquer. Deixou de ter função social."
Baixa adesão
Atualmente, o Fies pode ser contratado por
quem tirou nota igual ou superior a 450 pontos no Enem, e que não tenha zerado
a redação. As vagas ofertadas na modalidade governamental são limitadas e têm
taxa de juros zero. Nesse caso, o interessado precisa ter renda familiar mensal
per capita de até três salários mínimos.
Para os estudantes que tenham renda entre
três e cinco salários mínimos, existe a possibilidade de contratar a modalidade
recente do P-Fies - com taxa de juros fixa de 6,5% ao ano. "O governo
federal quis aumentar a participação das instituições privadas, porque eles
acreditam na corresponsabilidade", explica o consultor legislativo na área
de financiamento estudantil, Ricardo Martins.
Ele atuou juntamente com o deputado Alex
Canziani (PTB-PR), relator da Medida Provisória 785/17, que reformulou o Fies.
Para Martins, as mudanças tornaram sustentável o programa. "O resultado
hoje é uma limitação da participação do governo federal no Fies, que
consequentemente freia a expansão de vagas."
Ainda assim, ele afirma que essa modalidade
do Fies não deslanchou porque algumas instituições hesitam em aderir.
As instituições de ensino superior privadas
têm demonstrado preocupação com a baixa adesão ao programa. Membros da Abmes
tentam audiência com o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), para
debater melhorias no programa. Segundo o assessor jurídico da entidade, Bruno
Coimbra, o formato não tem despertado o interesse dos estudantes.
"As mudanças, principalmente do
P-Fies, ainda são muito tímidas. Acreditamos que o governo precisa criar mais
vagas, e os bancos privados e de fomento, abraçar a causa", disse Coimbra.
Para ele, o Fies deve ser visto como um investimento em educação. "Tem
caráter social e de incremento para economia. Defendemos uma estruturação
responsável do programa, também não nos interessa alunos inadimplentes",
diz Coimbra.
No modelo de crescimento acelerado no
governo Dilma, as instituições privadas recebiam repasses do governo federal
para bancar os alunos do Fies. O grupo Kroton-Anhanguera foi a empresa que mais
recebeu pagamentos do governo federal em 2014. Foram repassados mais de R$ 2
bilhões para 12 mantenedoras do grupo.
Segundo Paulo Meyer, especialista do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa tinha tantas
facilidades que muitas instituições privadas incentivavam os estudantes a
contratarem o financiamento mesmo podendo pagar a mensalidade. Por isso, o
orçamento multiplicou e o número de contratos nesse período também, mas a média
anual de aumento de estudantes na rede privada passou de 5%, entre 2003 e 2009
para 3% a partir de 2010.
Já as mensalidades aumentaram desde 2011,
em média, 2,9% ao ano, como apontaram dados elaborados pela CM Consultoria com
base na Análise Setorial do Ensino Superior Privado da Hoper Educação. Sendo
assim, os gastos do governo federal saltaram 647% desde 2011, enquanto o número
de contratos cresceu quase a metade, 374%. No período, foram R$ 24 bilhões de
recursos do Tesouro e 1,2 milhão de novos contratos.
O Fies foi criado em 2001, mas só aumentou o número de beneficiários a partir de 2010
Modelo internacional
O novo modelo do
Fies é baseado parcialmente em práticas de financiamentos estudantis bem
sucedidas em outros países como Austrália, Inglaterra e Nova Zelândia. Na época
da formulação da lei, houve troca de experiências entre o governo federal e
especialistas australianos que vieram ao Brasil.
No novo formato do Fies, o estudante pode
pagar o financiamento no futuro de acordo com a sua renda. O desconto será
feito direto em folha no caso dos recém-formados que tiverem emprego formal.
Quem não estiver empregado, terá descontada apenas uma parcela mínima de mesmo
valor cobrado durante o curso.
Isso na opinião de Meyer, do Ipea, é
positivo porque dá ao estudante uma certa segurança de que ao final ele vai
conseguir pagar, mesmo que pouco. No entanto, segundo ele, os estudantes ainda
têm muito receio de firmar contratos, principalmente porque não entendem como o
programa funciona.
No ano passado, o governo de Michel Temer
(MDB) pretendia incluir 310 mil novos alunos no Fies. De acordo com o
Ministério da Educação, das 100 mil vagas ofertadas na modalidade governamental
com taxa de juros zero, foram firmados 82 mil contratos. Já na modalidade
denominada de P-Fies, mais de 2.500 contratos estão em andamento.
Meyer critica ainda a modalidade do governo
federal a juros zero por falta de sustentabilidade financeira. "O subsídio
é ainda maior do que antes", afirma. Na opinião do economista, para bancar
o novo formato, o governo federal precisou garantir algumas amarras. "Para
o governo dar juros zero significa que ele está pegando subsídios de outras
fontes. O dinheiro para o governo não é de graça, por isso ele está colocando
complicações. O empréstimo para ele sai caro", conclui Meyer.
A alternativa, segundo Meyer, seria o
crédito educativo com amortizações condicionadas à renda. Ele defende que as
prestações sejam coletadas pelo Imposto de Renda, porque é mais uma garantia
para o estudante. "No momento em que a Receita Federal conseguisse
identificar renda, eles começariam a cobrar", explica. O especialista
afirma que, no longo prazo, o Fies precisa voltar a se expandir, mas com um
mecanismo eficiente de coleta dos pagamentos.
A estratégia do governo federal para o
segmento inclui também o Programa Universidade para Todos (Prouni), que
distribui bolsas em instituições particulares para estudantes de baixa renda.
Desde 2005, já atendeu a mais de 2,4 milhões de estudantes, sendo 69% com
bolsas integrais - o desempenho no Enem serve como um dos critérios de seleção.
Em resposta à reportagem sobre o futuro dos
programas federais para o ensino superior, o MEC afirmou que "em 2018 as
políticas públicas de acesso ao ensino superior do MEC foram responsáveis pela
oferta de mais de 640 mil vagas à população brasileira, em instituições
públicas e privadas. Novas informações oficiais sobre o Fies serão divulgadas
oportunamente."
Inadimplência se
aproxima de 50%
Mais mudanças nas regras do Fies passaram a
valer no início de 2018 para contratos novos. Os estudantes com financiamento
em andamento poderão migrar aos poucos.
A principal alteração foi o fim da carência
de 18 meses. O estudante deverá iniciar o pagamento no mês seguinte ao término
do curso, desde que esteja empregado. O prazo máximo para pagamento será de 14
anos.
O dinheiro será descontado diretamente do
salário, por meio do eSocial do INSS. Com isso, o governo federal espera a
redução da inadimplência no cumprimento dos contratos, limitação do risco da
União, melhora nas condições de financiamento e racionalização das
amortizações.
Dados divulgados pelo MEC mostram que a taxa
de inadimplência é de quase 50%. De acordo com o órgão, mais de 450 mil
ex-alunos que já estão na fase de amortização não estão em dia com o pagamento
das parcelas.
Para auxiliar nesse processo, foi criado o
Programa Especial de Regularização do Fies para aqueles que tiverem contratos
atrasados, com parcelas vencidas até 30 de abril de 2017, possam fazer o
pagamento quitando 20% do saldo em cinco vezes e o restante em até 175
parcelas. Com isso, o MEC espera que a inadimplência caia para 30%.
Outra medida de garantia prevista na nova
lei do Fies é a implementação de um Fundo Garantidor, que deve ter recursos do
governo federal e também das instituições privadas. A ideia é que os riscos
sejam compartilhados com as universidades.
A informação oficial é de que o fundo
garantidor do Fies cobriria 90% da inadimplência do programa estudantil com
recursos provenientes das instituições de ensino. O fundo seria formado por
recursos enviados pelas próprias universidades, que reverteriam 6,25% das
mensalidades financiadas para isso. (BBC)
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