terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Nova edição de 'Grande Sertão: Veredas' deve atrair e formar novos leitores


Bem-aventurados os que vão ler pela primeira vez Grande Sertão: Veredas. Esses leitores de qualidade, como dizia Chekhov, vão fazer uma das mais incríveis viagens da imaginação, movida por uma linguagem inovadora e exuberante. A primeira leitura de um livro complexo pede tempo, paciência e concentração. Ou, como diz o narrador Riobaldo: “O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro”. 

Uma vez feito o pacto com as palavras, a viagem flui e convida o leitor a uma releitura. Por falar em pacto, eis um dos temas centrais do romance de João Guimarães Rosa: o pacto com o diabo, um tema explorado por Goethe e Thomas Mann, e reformulado nessa história de amores e guerras entre bandos de jagunços no centro-norte de Minas. 

As histórias narradas pelo ex-chefe jagunço Riobaldo (agora um fazendeiro velho e cansado) deságuam numa espécie de mar épico, em pleno sertão mineiro. Os inúmeros caminhos percorridos por dezenas de personagens indicam com exatidão a fauna, a flora e a geografia de uma região vivenciada e estudada pelo autor. A natureza e a cultura do cerrado são consubstanciais à narrativa. Mas dentro desse mundo concreto de tantos sertões há outro, igualmente vasto, rico e complexo: o mundo interior, íntimo e subjetivo das personagens. “Sertão: é dentro da gente.”

Riobaldo conduz o curso da longa narração, quase sempre duvidando de suas afirmações e questionando certezas. Esse fluxo da consciência parece abarcar tudo, em várias camadas misturadas: histórica, social, política, amorosa, filosófica, simbólica. A história de amor dos jagunços Riobaldo e Reinaldo (Diadorim) talvez seja a mais transgressora do romance.

Na primeira leitura só conhecemos a verdadeira identidade de Diadorim nas páginas finais. Ao reler o livro, é possível perceber indícios fortes dessa identidade numa passagem em que o ódio, o amor e o diabo estão misturados: o encontro entre Diadorim e Otacília, futura noiva de Riobaldo, na presença deste. Diadorim é o amor impossível, platônico do chefe jagunço. Essa passagem acontece na Fazenda Santa Catarina.
O escritor João Guimarães Rosa, , autor de 
'Grande Sertão: Veredas' Foto: Acervo Pessoal

Um pouco antes desse encontro, Riobaldo fala a seu interlocutor e ao leitor sobre o ódio que sente de Hermógenes, o “demo”: “Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas profundas. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhos-de-deus – felão de mau”. O narrador sente essa raiva quando vê pela primeira vez o Hermógenes, um “homem sem anjo-da-guarda”.

Para Riobaldo, o ódio ajuda a aumentar o amor por outra pessoa, um amor difuso, que “cresce de todo lado”. Ou ainda: “Coração mistura amores. Tudo cabe”. Depois desse solilóquio sobre o demônio, o amor e o ódio, ele narra a passagem pela Fazenda Santa Catarina, onde vê Otacília, “fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença”. 

Toda essa sequência de amor e “açoite de ciúme” é narrada sob o signo do olhar, do gesto e da fala sutis: “Fui eu que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua”. 

Esse encontro na Santa Catarina, uma fazenda “perto do céu”, ocorre no mês de maio. O céu é citado três vezes nessa primavera, quando no ar dos gerais há borboletas brancas, pássaros, pombas no bebedouro e as “verdadeiras, altas, cruzando do mato”. É nesse lugar idílico, num tempo sem hora, que Riobaldo revela o ciúme de Otacília por Diadorim, e a raiva deste por Otacília. 

Para derrotar o Mal, Riobaldo faz um pacto com o demônio: artimanha de Guimarães Rosa que permite ao narrador especular sobre Deus e o Diabo, uma das postulações metafísicas do romance. “Travessia, Deus no meio.” Na guerra decisiva entre os bandos inimigos, liderados pelos pactários Riobaldo e Hermógenes, o triunfo sobre o demoníaco e seu desfecho trágico comovem o leitor.

Aliás, há beleza e comoção em muitas passagens deste romance. Uma delas é o primeiro encontro do jovem Riobaldo com o Menino no pequeno porto de um rio de águas claras: o de Janeiro; em seguida, ambos atravessam o São Francisco numa canoa frágil. Essa travessia do rio revolto é um rito de passagem, a primeira grande travessia da vida: a revelação do medo do jovem Riobaldo, da coragem do Menino (Reinaldo/Diadorim), e do amor entre ambos.

Outro trecho memorável é o pacto de Riobaldo com o demo num lugar chamado Veredas Mortas, cujo nome verdadeiro o leitor saberá depois. Ou ainda o julgamento de Zé Bebelo, um chefe jagunço que pretende ser deputado para abolir a barbárie na terra sem lei e modernizar o sertão, “baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”. O “cidadão e candidato” Zé Bebelo é obcecado pela lei, mas está sempre pronto para atirar e matar seus adversários. (Milton Hatoum, Especial para o Estado)


Nenhum comentário:

Postar um comentário