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Bem-aventurados os que vão ler
pela primeira vez Grande Sertão: Veredas. Esses leitores de qualidade,
como dizia Chekhov, vão fazer uma das mais incríveis viagens da
imaginação, movida por uma linguagem inovadora e exuberante. A primeira leitura
de um livro complexo pede tempo, paciência e concentração. Ou, como diz o
narrador Riobaldo: “O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar
escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro”.
Uma vez feito o pacto com as
palavras, a viagem flui e convida o leitor a uma releitura. Por falar em pacto,
eis um dos temas centrais do romance de João Guimarães Rosa: o pacto com o diabo, um tema explorado
por Goethe e Thomas Mann,
e reformulado nessa história de amores e guerras entre bandos de jagunços no
centro-norte de Minas.
As histórias narradas pelo
ex-chefe jagunço Riobaldo (agora um fazendeiro velho e cansado)
deságuam numa espécie de mar épico, em pleno sertão mineiro. Os inúmeros
caminhos percorridos por dezenas de personagens indicam com exatidão a fauna, a
flora e a geografia de uma região vivenciada e estudada pelo autor. A natureza
e a cultura do cerrado são consubstanciais à narrativa. Mas dentro desse mundo
concreto de tantos sertões há outro, igualmente vasto, rico e complexo: o mundo
interior, íntimo e subjetivo das personagens. “Sertão: é dentro da gente.”
Riobaldo conduz o curso da
longa narração, quase sempre duvidando de suas afirmações e questionando
certezas. Esse fluxo da consciência parece abarcar tudo, em várias camadas
misturadas: histórica, social, política, amorosa, filosófica, simbólica. A
história de amor dos jagunços Riobaldo e Reinaldo (Diadorim) talvez seja a mais
transgressora do romance.
Na primeira leitura só
conhecemos a verdadeira identidade de Diadorim nas páginas finais. Ao reler o
livro, é possível perceber indícios fortes dessa identidade numa passagem em
que o ódio, o amor e o diabo estão misturados: o encontro entre Diadorim e
Otacília, futura noiva de Riobaldo, na presença deste. Diadorim é o amor
impossível, platônico do chefe jagunço. Essa passagem acontece na Fazenda Santa
Catarina.
O escritor João Guimarães Rosa, , autor de
'Grande Sertão: Veredas' Foto: Acervo Pessoal
Um pouco antes desse encontro,
Riobaldo fala a seu interlocutor e ao leitor sobre o ódio que sente de Hermógenes,
o “demo”: “Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas
profundas. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas
filhos-de-deus – felão de mau”. O narrador sente essa raiva quando vê pela
primeira vez o Hermógenes, um “homem sem anjo-da-guarda”.
Para Riobaldo, o ódio ajuda a
aumentar o amor por outra pessoa, um amor difuso, que “cresce de todo lado”. Ou
ainda: “Coração mistura amores. Tudo cabe”. Depois desse solilóquio sobre o
demônio, o amor e o ódio, ele narra a passagem pela Fazenda Santa Catarina,
onde vê Otacília, “fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim,
a firme presença”.
Toda essa sequência de amor e “açoite de ciúme” é narrada
sob o signo do olhar, do gesto e da fala sutis: “Fui eu que primeiro encaminhei
a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua”.
Esse encontro na Santa
Catarina, uma fazenda “perto do céu”, ocorre no mês de maio. O céu é citado
três vezes nessa primavera, quando no ar dos gerais há borboletas brancas,
pássaros, pombas no bebedouro e as “verdadeiras, altas, cruzando do mato”. É
nesse lugar idílico, num tempo sem hora, que Riobaldo revela o ciúme de
Otacília por Diadorim, e a raiva deste por Otacília.
Para derrotar o Mal, Riobaldo
faz um pacto com o demônio: artimanha de Guimarães Rosa que permite ao
narrador especular sobre Deus e o Diabo, uma das postulações metafísicas do
romance. “Travessia, Deus no meio.” Na guerra decisiva entre os bandos
inimigos, liderados pelos pactários Riobaldo e Hermógenes, o triunfo sobre o
demoníaco e seu desfecho trágico comovem o leitor.
Aliás, há beleza e comoção em
muitas passagens deste romance. Uma delas é o primeiro encontro do jovem
Riobaldo com o Menino no pequeno porto de um rio de águas claras: o de Janeiro;
em seguida, ambos atravessam o São Francisco numa canoa frágil. Essa travessia
do rio revolto é um rito de passagem, a primeira grande travessia da vida:
a revelação do medo do jovem Riobaldo, da coragem do Menino
(Reinaldo/Diadorim), e do amor entre ambos.
Outro trecho memorável é o
pacto de Riobaldo com o demo num lugar chamado Veredas Mortas, cujo nome
verdadeiro o leitor saberá depois. Ou ainda o julgamento de Zé Bebelo, um
chefe jagunço que pretende ser deputado para abolir a barbárie na terra sem lei
e modernizar o sertão, “baseando fábricas, remediando a saúde de todos,
preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”. O “cidadão e candidato” Zé
Bebelo é obcecado pela lei, mas está sempre pronto para atirar e matar seus
adversários. (Milton Hatoum, Especial para o Estado)
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