Após pouco mais de 100 dias de governo
Bolsonaro, as divergências entre os dois principais grupos que ocupam cargos no
Executivo - a ala militar e a olavista- têm se tornado mais evidentes,
principalmente na área de educação e relações exteriores.
A disputa
interna por cargos e protagonismo transbordou para ataques pessoais nas redes
sociais e na imprensa. No fim de semana, Carlos Bolsonaro, filho de Jair
Bolsonaro, publicou no canal do pai no YouTube um vídeo com críticas do
escritor Olavo de Carvalho a militares e a deputados e senadores eleitos sob a
bandeira da "nova política".
No vídeo, o
"guru ideológico do atual governo" diz que o presidente é um
"mártir" por aguentar os "filhos da p..." ao redor dele.
Segundo ele, os militares acabaram com a direita do país após tomar o poder,
abrindo caminho para "os comunistas" assumirem depois.
"Ele
criaram o PT (...) Os milicos têm que começar por confessar seus erros antes de
querer corrigir os erros dos outros", afirmou. Depois que o vídeo
publicado no canal do presidente virou notícia, ele foi apagado.
Nas páginas
de Olavo de Carvalho nas redes sociais, um dos principais alvos de críticas tem
sido o vice-presidente Hamilton Mourão, a quem o escritor de direita já chamou
de "idiota" e chegou a sugerir que seria um "traidor".
Os militares têm respondido aos ataques tentando minimizar a
importância de Olavo de Carvalho, conhecido como "mentor da nova
direita". "Não posso fazer nenhum comentário porque para mim (ele)
não tem importância nenhuma", disse recentemente o general Santos Cruz,
ministro-chefe da Secretaria-Geral de Governo, ao ser perguntado pela BBC News
Brasil sobre a influência de Olavo de Carvalho no governo.
Radicado nos Estados Unidos desde 2005, o escritor de 71 anos se
popularizou ao criticar a esquerda e defender posições conservadoras em livros
e nas mídias sociais nas últimas décadas. Nos últimos dois anos, ele se
aproximou dos filhos de Bolsonaro, principalmente do deputado federal Eduardo
Bolsonaro e, em 2018, apoiou abertamente a candidatura do militar reformado.
Desde então, conseguiu emplacar "olavetes"- como ele
próprio já se referiu a seus seguidores- em postos no Palácio do Planalto e em
três ministérios: Educação, Relações Exteriores e na Secretaria de Política
Econômica do Ministério da Fazenda.
Já os militares comandam quatro pastas de peso: Defesa, Segurança
Institucional, Secretaria de Governo e Infraestrutura, além da Vice-Presidência.
O capítulo mais recente da divisão entre esses dois grupos foi a
disputa pelo comando do Ministério da Educação. Militares e seguidores de Olavo
de Carvalho tentavam emplacar nomes seus para substituir o colombiano
naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodriguez, demitido após se desgastar com
uma série de medidas e declarações polêmicas, como a de que iria rever material
didático das escolas sobre o golpe militar de 1964.
Bolsonaro
acabou optando por Abraham Weintraub, diretor executivo do Centro de Estudos em
Seguridade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex-aluno de Olavo de
Carvalho.
A escolha de
Weintraub foi vista por muitos como uma vitória da ala ideológica do governo,
enquanto alguns acham que a opção por um nome não diretamente indicado pelo
guru, embora ex-aluno dele, foi uma maneira que Bolsonaro encontrou para
contornar a insatisfação dos militares.
Mas, se o
MEC se tornou palco central do racha entre militares e olavistas, nas últimas
semanas, a divergência entre os dois grupos esteve longe de se concentrar nesse
ministério.
A BBC News
Brasil reúne quatro pontos de controvérsia no governo Bolsonaro que evidenciam
essas diferenças: educação, aliança com os Estados Unidos, aproximação com
Israel e intervenção na Venezuela.
Considerado o 'guru ideológico' do governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho conseguiu emplacar dois ministros. Um deles caiu e foi substituído por um economista que foi ex-aluno do escritor
1) Educação
Na área da
educação, tanto os expoentes das Forças Armadas quanto o grupo de seguidores de
Olavo de Carvalho compartilhem da ideia de que a escola deve estimular o
civismo, o patriotismo e a valorização de símbolos nacionais, como hino e
bandeira.
Mas a forma
como isso deve ser feito é alvo de divergências. E, embora militares e parte
dos indicados por Olavo de Carvalho acreditem que a visão predominante nos
materiais didáticos das escolas sobre a ditadura militar seja, na visão deles,
excessivamente negativa para as Forças Armadas, a maior parte dos militares em
postos no governo não encara rever essa narrativa e trocar os livros escolares
como prioridade.
Antes de ser
demitido do MEC, Vélez Rodrigues disse, em entrevista ao jornal Valor
Econômico, que pretendia mudar a forma como o golpe de 1964 e a ditadura
militar são retratados nos livros didáticos, "para dar uma visão mais
ampla da história".
Ainda que essa decisão pudesse parecer de interesse dos militares,
ela foi mal recebida pelo alto escalão das Forças Armadas, para quem este não
seria o melhor momento para discutir um tema tão polêmico.
"Se o ponto é 1964 ou não é, acho que estamos perdendo tempo em
discutir uma coisa de 55 anos atrás quando temos um monte de coisas mais
importantes para discutir", disse à BBC News Brasil o general Santos Cruz, ao
ser perguntado sobre o que achava da proposta de rever materiais didáticos.
Outra
diferença entre olavistas e militares, segundo a professora de ciência política
da PUC-RJ Vera Lúcia Chaia, é a visão sobre a ciência. Enquanto, Olavo de
Carvalho e alguns de seus seguidores rejeitam ideias praticamente consensuais
na comunidade científica - como a do papel da ação humana no aquecimento global
-, os militares parecem apresentar uma visão mais "pragmática" e
voltada à defesa de um ensino pautado na visão científica predominante.
"Os
olavistas, de certa forma, rejeitam a ciência quando centram esforços na defesa
do projeto Escola Sem Partido, nas críticas ao educador Paulo Freire, que é
citado em publicações científicas do mundo todo, e quando negam as mudanças
climáticas provocadas pelos homens", afirmou Chaia à BBC News Brasil.
"Já os
militares pensam o Brasil como integrante de uma ordem internacional, uma ordem
global. Na visão dos militares, existe sim uma ciência a ser preservada."
Para a
professora de ciência política Maria do Socorro Braga, da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCAR), militares e olavistas também divergem quanto à
abrangência das reformas necessárias no sistema de ensino. Os seguidores de
Olavo de Carvalho defendem uma mudança ampla na metodologia de ensino das escolas
brasileiras.
Eles são particularmente contrários ao método construtivista, que
entende que o aluno deve ser "ensinado a aprender". Por essa
metodologia, o aluno está no centro do processo de aprendizado e deve chegar ao
conhecimento por si, tendo o professor como mediador. O objetivo é estimular
não só o acúmulo de conteúdos, mas também uma reflexão crítica sobre o que é
aprendido.
Esse método se tornou alvo de ataques virulentos de Olavo de
Carvalho e seus seguidores. Em seu blog, o guru do governo Bolsonaro escreveu que
o "socioconstrutivismo" retarda a alfabetização dos alunos no Brasil
e é instrumento do "marxismo" para transformar os alunos em
"agentes da transformação social".
Bolsonaro,
que compartilha de muitas das visões de Olavo de Carvalho, já defendeu que o ensino
brasileiro deve focar na transmissão de conteúdos tradicionais, como
"português e matemática".
"Nós
queremos uma garotada que comece... Não a se interessar por política, como é
atualmente dentro das escolas, mas que comece a aprender coisas que possam
levar a conquistar espaço no futuro", disse o presidente, na cerimônia de
posse do novo ministro da Educação.
Segundo a professora Maria do Socorro Braga, diferentemente dos
olavistas, os militares não manifestaram o interesse de reformar o sistema de
educacional para promover o método tradicional de ensino - baseado no conteúdo,
na disciplina e tendo o professor como único transmissor do conhecimento.
"Os militares não compartilham dessa visão mais conservadora da
educação. São favoráveis à disciplina e ao uso de símbolos nacionais, mas não
estão fazendo um movimento para mudar as diretrizes da educação no país",
afirmou.
O general da
reserva Eduardo Schneider, que já atuou no Gabinete de Segurança Institucional
da Presidência em governos anteriores, avalia que o problema da educação
brasileira, para os militares, não está na metodologia de ensino em si.
Segundo ele,
os próprios colégios militares priorizam um formato de ensino focado em levar o
aluno a aprender por si, que estimula trabalhos em grupos e uma
"construção coletiva" do conhecimento - técnicas do modelo
construtivista.
"Desde
os 90 que mudou-se a orientação nas escolas militares para colocar o aluno no
centro do processo de aprendizagem, seguindo a tese de que ele precisa aprender
a aprender. Pesquisas apontam que esse método leva a um aprendizado com
profundidade", disse.
"O
problema é que alguns porta-vozes dessa metodologia, em algumas instituições do
país, agregavam a essa construção mensagens políticas", opina o general da
reserva, cujos dois filhos estudaram em colégios militares.
"Temos
que voltar a um ponto de equilíbrio, mas sem rejeitar o método
científico."
Abraham Weintraub tomou posse na semana passada após Bolsonaro demitir
primeira indicação de Olavo de Carvalho para o MEC
2) Relação com os EUA
Apesar do destaque na mídia, nas últimas semanas, dado à disputa
entre militares e olavistas pelo controle do MEC, é na área de relações
exteriores que fica mais clara a diferença de pensamento entre os dois grupos,
segundo cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil.
Indicado por Olavo de Carvalho, o ministro de Relações Exteriores,
Ernesto Araújo, tem defendido, entre outros pontos, um alinhamento do Brasil
com os Estados Unidos, distanciamento da China, aliança com Israel, e maior
interferência brasileira na resolução da crise da Venezuela.
Todos esses
pontos são vistos com reserva pela ala militar, para quem a soberania do Brasil
e os interesses comerciais e políticos do país devem preponderar nas decisões
de impacto internacional.
Especificamente
no caso da aliança com os Estados Unidos - Bolsonaro tem se aproximado
fortemente do presidente Donald Trump e aderido a críticas do governo americano
à China, que enfrenta uma guerra comercial com os EUA.
A questão é
que os chineses são os principais parceiros comerciais do Brasil, comprando 30%
das nossas commodities, como alimentos e matérias-primas.
Embora os
militares também optem por alianças com governos de direita e centro-direita,
eles defendem que o Brasil adote uma postura de neutralidade em questões
controversas, que permita ao país manter boas relações com "gregos e
troianos".
"A
defesa dos militares é em relação à soberania nacional, sem alinhamento
automático com os Estados Unidos e o governo Trump. Não é a toa que Mourão está
circulando em várias partes do Brasil e visitando alguns países, como os
Estados Unidos. Ele está manifestando essas posições divergentes do seu grupo
em relação a Olavo de Carvalho", afirma a professora de ciência política
da PUC-RJ Vera Lúcia Chaia.
"Os militares incorporaram o globalismo e defendem que as
relações diplomáticas do Brasil com diferentes países devem ser
preservadas."
O general da reserva Eduardo Schneider diz que é natural que o
Brasil busque uma relação mais próxima com os Estados Unidos, mas critica a
possibilidade de um alinhamento automático (que pressupõe um apoio irrestrito).
Segundo ele,
quando um posicionamento americano não se enquadrar nos interesses brasileiros,
o Brasil deve assumir uma postura de "neutralidade".
"Todos
os países, mais do que amizades, eles têm interesses. O alinhamento acontece
quando os interesses estão alinhados. Quando eles não se alinham, cada país tem
que preservar os interesses que lhe são vitais", disse à BBC News Brasil.
"Talvez
uma potência global como os Estados Unidos enxergue a China como um competidor
global. Nós analisamos que é importante para o Brasil manter uma relação com a
China, porque é um ator importante. Um conflito com a China não nos interessa
de jeito nenhum", afirma Schneider, que já atuou em missões do Exército
com Mourão e o general Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo.
Essa visão é divergente da manifestada por Ernesto Araújo. No mês
passado, em aula magna para alunos do Instituto Rio Branco, que forma novos
diplomatas, o ministro de Relações Exteriores argumentou que o Brasil
"estagnou" tendo a China como principal parceiro comercial.
"O Brasil foi o país que mais cresceu no mundo quando seu
principal parceiro de desenvolvimento eram os EUA, e depois estagnou, quando
desprezou essa parceria com os EUA e passou a buscar Europa, integração
latino-americana, e, mais recentemente, o mundo pós-americano dos Brics",
disse.
"De
fato, a China passou a ser o grande parceiro comercial do Brasil e, coincidência
ou não, tem sido um período de estagnação do nosso país."
Ernesto Araújo e Bolsonaro têm defendido alinhamento com os EUA e feito críticas à China. Para militares, parceria com americanos é importante, mas Brasil deve preservar boa relação com a China
3) Proximidade com Israel
O movimento
do governo brasileiro de aproximação com Israel também foi, até certo ponto,
freado pelos militares. Inicialmente, Jair Bolsonaro manifestou a intenção de
transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo os passos
de Trump.
Um dos
filhos dele, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que é muito próximo de Olavo
de Carvalho, chegou a publicar nas redes sociais que a transferência não era
uma questão de "se", mas de "quando".
Os
israelenses reivindicam Jerusalém como capital do Estado de Israel. Mas a
comunidade internacional e as Nações Unidas defendem que o status desse
território seja definido em negociações de paz com os palestinos, que veem a
parte oriental de Jerusalém como capital de um futuro Estado Palestino.
Por isso, os
países, com exceção dos EUA e da Guatemala, mantém suas embaixadas em Tel Aviv,
capital financeira de Israel. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro prometeu
transferir a embaixada brasileira e defendeu uma forte aliança com o governo
israelense.
Nas redes
sociais, Olavo de Carvalho disse que"a coisa mais óbvia do mundo é que os
judeus, não só por herança histórica e divina, mas por tudo o que passaram na
2ª Guerra Mundial, têm o direito ao território de Israel, pequenininho mas só
deles, um abrigo contra os inimigos que os cercam por todos os lados" e
condenou as críticas feitas a Trump por ter transferido a embaixada americana
para Jerusalém, cumprindo uma promessa que, segundo ele, teria sido feita
"por todos os presidentes americanos desde Bill Clinton".
Mas os militares lançaram uma ofensiva para dissuadir Bolsonaro de
transferir a embaixada. A preocupação deles era de ordem econômica e de
segurança.
Por um lado, temiam uma reação dos países árabes, que importam cerca
de 10% dos produtos agropecuários do Brasil. Por outro, queriam evitar
eventuais problemas de segurança, já que o Brasil e tropas brasileiras em
missões da ONU no exterior poderiam vir a se tornar alvos de radicais islâmicos
atuando em retaliação pela aliança com Israel.
Mourão
chegou a fazer reuniões com o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim
Alzeben, para assegurar que o governo não pretendia, pelo menos no momento,
efetivar essa transferência de embaixada.
No final,
Bolsonaro acabou optando, por enquanto, por abrir um escritório diplomático em
Jerusalém - decisão que ainda assim gerou reações negativas de palestinos e do
mundo árabe em geral. Setores do governo dizem que a transferência da embaixada
ainda vai ocorrer, mas de "maneira gradual".
4) Intervenção militar na Venezuela
Outra
diferença clara entre militares e olavistas diz respeito ao papel do Brasil na
crise da Venezuela.
Enquanto o
ministro de Relações Exteriores do Brasil defende uma postura mais enfática
contra o regime de Nicolás Maduro, sem descartar eventual apoio a uma
intervenção liderada pelos Estados Unidos, os militares brasileiros vêm
repetido que o governo deve se fiar em pressão diplomática e não em usar a
força contra o país vizinho.
Um episódio
que gerou grande desconforto entre a ala militar e a olavista foi a decisão de
Ernesto Araújo de cessar a cooperação militar entre Brasil e Venezuela. Para as
Forças Armadas, a medida ignorou importantes ações de cooperação entre os dois
países no combate ao tráfico de drogas, de mercadorias e ao desmatamento ilegal
da Amazônia.
"Apesar das divergências ideológicas, a relação entre militares
brasileiros e venezuelanos na fronteira era boa. E havia ações importantes em
andamento que de uma hora para outra foram interrompidas", disse uma fonte
do Itamaraty, que acompanhou a reação dos militares.
Durante visita aos Estados Unidos, no mês passado, Bolsonaro afirmou
que o Brasil poderia "dar apoio logístico" aos americanos, caso
decidam intervir militarmente na Venezuela para retirar Maduro do poder. A
hipótese é vista com cautela pelos militares.
Uma semana
depois da declaração de Bolsonaro, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e
Silva, se reuniu com o secretário de Defesa dos EUA, Patrick Shanahan, e disse
que intervenção militar "não é uma hipótese" que o Brasil
"esteja considerando".
"O
Brasil procura uma solução pacífica e rápida à crise na Venezuela",
afirmou.
Como resolver as divergências?
Segundo o
professor da Universidade de Harvard Scott Mainwaring, que estuda política
brasileira há mais de 30 anos, quase todos os governos apresentam divisões na
própria coalizão.
No entanto,
para ele, as divergências no governo Bolsonaro parecem ter se manifestado cedo
e ser profundas. "Claro
que todos os governo em democracias são, em alguma medida, heterogêneos. O que
é diferente no caso Bolsonaro é que existem divisões profundas em questões
fundamentais, inclusive na política externa."
~
Segundo ele,
em governos comandados por setores que discordam fortemente entre si, o que
costuma acontecer é que, com o tempo, uma ala acabe "derrotando" a
outra.
"O que
normalmente ocorre é que, ao longo do tempo, há vencedores e derrotados. Ou
seja, uma ala ganha maior controle sobre o governo que a outra", diz.
Outra
possibilidade é que haja uma divisão mais clara de prerrogativas, com um setor
intervindo menos ou nada na seara do outro.
O problema é
que nem militares nem olavistas parecem se contentar em se ater às atribuições
específicas dos respectivos ministérios.
(BBC)
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