"Não sou eu que estou falando, são os
fatos", diz um rapaz brasileiro para a câmera.
Os "fatos", segundo ele: "o vírus da
zika foi criado pela família americana Rockefeller, enquanto Bill Gates usou
sua fortuna para investir em vacinas. Ambos com o mesmo objetivo: reduzir a
população mundial".
O vídeo está disponível no YouTube, tem cerca de
825 mil visualizações e pode ser encontrado pela ferramenta de buscas.
Uma propaganda interrompe o vídeo, o que significa
que ele é monetizado - ou seja, rende lucro ao autor -, embora o YouTube tenha
anunciado que vídeos com desinformação seriam impedidos de explorar esse
recurso.
Um vídeo igual, mas publicado em outra conta, tem
quase 244 mil visualizações.
Sem estar logada em qualquer conta no YouTube, a
BBC News Brasil fez buscas na plataforma com os termos "vacina",
"devo vacinar minha filha" e "devo vacinar meu filho".
A maior parte dos resultados são vídeos com
informações verídicas sobre a vacinação. Alguns, contudo, são vídeos contrários
à vacinação.
E, ao clicar nestes, a recomendação dos vídeos
seguintes leva o usuário a outros vídeos antivacina, levando a uma espécie de
"bolha" no YouTube.
Em outras tentativas, os vídeos reproduzidos
automaticamente eram sobre outros assuntos - às vezes outras teorias
conspiratórias, às vezes reportagens verídicas sobre vacinação.
Esses vídeos são criados por pessoas adeptas do
movimento antivacina, um fenômeno mundial com reverberação menor no Brasil.
Há alguns grupos fechados no Facebook sobre o
assunto e, no YouTube, a BBC News Brasil encontrou 15 vídeos de brasileiros
sobre o tema, sendo o mais visto aquele com 825 mil visualizações.
Depois que a BBC News Brasil enviou os vídeos ao
YouTube, aqueles que eram monetizados foram desmonetizados pela plataforma.
Segundo a empresa, vídeos que digam diretamente "você não deve se
vacinar" violam diretrizes e serão retirados do ar; aqueles só com teorias
da conspiração - mesmo que contrárias a vacinas - se enquadram apenas como
desinformação e não podem ser monetizados, mas permanecerão no ar.
Todos os vídeos encontrados pela reportagem foram
publicados em 2018 ou 2019, e a maioria reproduz teorias da conspiração
importadas dos Estados Unidos, onde o movimento é forte.
O conteúdo dos vídeos brasileiros muitas vezes é
copiado ou traduzido de vídeos antivacina americanos. Dois dos vídeos são de
supostos médicos que contraindicam especificamente vacinas contra gripe e
contra a febre amarela.
Os comentários na maioria dos vídeos são de pessoas
que hesitam em vacinar seus filhos e felicitam os youtubers pelas
"informações".
Cobertura vacinal - A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu a
"hesitação em se vacinar" entre as dez maiores ameaças globais à
saúde em 2019.
Desde a década de 1990, o Brasil tem boa cobertura
vacinal. Mas dados do Ministério da Saúde mostram que todas as vacinas destinadas
a crianças menores de dois anos de idade no Brasil vêm registrando queda desde
2011.
Por exemplo, a cobertura vacinal contra
poliomielite no país era de 96,5% em 2012; dados preliminares de 2018 mostram
que a cobertura dessa mesma vacina foi reduzida para 86,3%.
Segundo o ministério, a redução pode ter diferentes
causas: o sucesso do programa nacional de imunizações no país - já que a
eliminação de algumas doenças no país pode ter levado a "uma falsa
sensação de que não há mais necessidade de se vacinar porque a população mais
jovem não conhece o risco" e o acesso dos pais aos serviços de saúde.
"A vacina está disponível, mas os horários dos
locais não são compatíveis com os dos pais. Estamos começando a discutir um
programa para melhorar esses horários de funcionamento", diz Carla
Domingues, coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da
Saúde.
E, por fim, uma terceira possível causa é
justamente a resistência à vacinação, embora não se saiba exatamente qual é o
peso do movimento na cobertura vacinal do Brasil, de acordo com Domingues.
Domingues diz que o movimento é muito diferente do
fenômeno nos Estados Unidos. "Lá tem um forte movimento antivacina, de
pessoas que realmente não acreditam na vacina. Aqui temos mais uma hesitação em
tomar a vacina, um pensamento como 'não tem mais casos da doença, então acho
que não tenho que tomar'", afirma.
É por isso, diz ela, que o Ministério da Saúde está
fazendo ações para demonstrar para a população a importância da vacinação.
Também vai conduzir estudos para entender como o movimento impacta nas
coberturas vacinais do Brasil.
Cobertura vacinal no Brasil vem registrando queda desde 2011; uma das causas
pode ser o que a OMS chama de 'hesitação vacinal'
Sistema de recomendação no YouTube - Para esta reportagem, a BBC News Brasil entrou no
YouTube sem estar logada em alguma conta. Em seguida, procurou no buscador da
plataforma: "Devo vacinar minha filha?".
Os primeiros vídeos que aparecem como resultado são
reportagens de veículos de imprensa, alguns caseiros, um do Ministério da
Saúde.
O nono vídeo que aparece na lista é um chamado
"Você deve tomar a vacina da febre amarela?", de Lair Ribeiro. Na
primeira página, aparece também um vídeo de nome "Bill não vacina os
filhos dele! Vacina é só pro gado", um vídeo com mais teorias da
conspiração sobre Bill Gates e vacinas. Esse vídeo está monetizado.
O vídeo de Lair Ribeiro critica especificamente a
vacina da febre amarela. "Não precisa ser nenhum engenheiro brilhante da
Nasa. Há discrepância entre dar a mesma carga virótica para uma criança de 9
meses e para um indivíduo de 18 anos de idade com saúde, cheio de força",
diz.
Procurado pela BBC News Brasil, ele afirma que
"as vacinas têm o seu valor e como qualquer outra medicação podem trazer
efeitos colaterais indesejáveis". Diz continuar "achando que uma
criança de 1 ano de idade não deveria receber a mesma dose da vacina de febre
amarela (ele sublinha 'febre amarela') do que um adulto de 30 anos".
Segundo José Cássio de Moraes, especialista em
imunização e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo, não há problema em crianças e adultos receberem a mesma quantidade de
partículas virais em uma vacina de febre amarela porque eles têm respostas
imunológicas iguais.
No Brasil, procurou-se recomendar vacina de febre
amarela aos 9 meses porque aos 12, quando aplicada com a vacina de sarampo,
acabava tendo uma menor resposta à imunização do sarampo, diz. A vacina de
febre amarela é recomendada a pessoas que estejam em áreas de risco.
No YouTube, o vídeo de Lair Ribeiro, publicado em
fevereiro de 2018, tem 41,6 mil visualizações. Muitos usuários comentam contra
vacinas como um todo.
Outros vídeos vistos pela BBC News Brasil aparecem
ligados entre si pelas recomendações.
Depois de terminar de assistir ao vídeo
"Vacinas: Redução Populacional", do canal "Verdade
Mundial", o YouTube recomenda ao usuário o vídeo "Vacinas Esterlizantes
de Bill Gates! GRIPE, Vírus para para Reduzir População! [COMPARTILHEM
URGENTE]", de 243 mil visualizações.
No primeiro vídeo, o fotógrafo Ton Müller diz que a
vacinação provoca uma "eugenia controlada, uma eugenia pacífica". Por
e-mail, ele diz que seu canal é um "hobby de
pesquisa relacionada a conspirações". "Em nenhum momento empregamos
como total verdade tudo o que é mostrado, mas sim uma forma de instigar as
pessoas a pesquisar sobre cada assunto."
O vídeo seguinte tem um rapaz apresentando mais
teorias da conspiração ligadas a Bill Gates. Em determinado momento, usa o
vídeo de Lair Ribeiro como fonte. Os vídeos desse youtuber, autor de várias
teorias de conspiração e três especificamente antivacina, também são
reproduzidos automaticamente depois do término de outro.
A BBC News Brasil entrou em contato com 11 dos 13
youtubers contra vacina encontrados na plataforma. A reportagem não conseguiu o
contato dos outros dois. As respostas variam: alguns argumentaram contra as
vacinas, um negou que tivesse subido o vídeo no YouTube e retirou o vídeo do
ar, e um autor disse não ter "compromisso com a verdade".
Muitos brasileiros usam um vídeo que mostra uma
fala de Bill Gates em que ele menciona redução populacional e vacinas. A teoria
da conspiração de que ele investe em vacinação para reduzir a população mundial
já foi notoriamente desmentida.
De fato, sua fundação investe em vacinas, mas,
segundo ele, com o objetivo de salvar a vida de mais crianças, não de matá-las
por meio da vacinação. O empresário já declarou que acredita que salvar a vida
de crianças, ou seja, reduzir a mortalidade infantil, pode ajudar a reduzir o
crescimento da população mundial, que ele apoia.
"Primeiro, mais crianças sobrevivem, depois,
famílias decidem ter menos crianças", escreveu numa carta em 2018.
Vídeo brasileiro antivacina coloca trecho de vídeo de britânico; no detalhe superior à direita,
outro vídeo contra vacina como próxima recomendação
Posicionamento do YouTube - Em janeiro, o YouTube anunciou que a plataforma
iria reduzir a recomendação vídeos "no limite" de violação de seus
termos de uso nos Estados Unidos, citando, em nota e como exemplo, vídeos com
"falsas curas milagrosas para doenças graves", vídeos "alegando
que a terra é plana" ou vídeos "com alegações falsas sobre eventos
históricos como o 11 de Setembro".
Isso inclui alguns tipos de vídeos antivacina. Mas
essa mudança ainda não chegou ao Brasil - deve ser aplicada no país no fim de
2019. "Graças a essas mudanças, o número de
visualizações resultantes de recomendações desse tipo de conteúdo caiu mais de
50% nos EUA. Nosso sistema está ficando cada vez mais bem treinado para
reconhecer vídeos que mereçam esse tratamento, e com o tempo poderemos tomar
essas medidas com mais e mais conteúdo duvidoso", afirmou a empresa, em
nota.
Além disso, vídeos com conteúdo mais confiável
serão favorecidos nos sistema de recomendação do YouTube. Vídeos de conteúdo
duvidoso passarão a mostrar "painéis informativos" fornecendo mais
contexto e outras fontes, como a Enciclopédia Britânica e a Wikipedia.
Conteúdo importado - No grupo de Facebook
"VACINAS: O maior CRIME da história!", um dos administradores publica
instruções sobre como traduzir "um artigo" pelo Google tradutor.
O recurso precisa ser utilizado porque a maior
parte do conteúdo antivacina no Brasil é uma adaptação de material em inglês.
No YouTube, o procedimento é parecido. Youtubers
contrários a vacinação colam trechos de vídeos em inglês em seus próprios
vídeos.
"Vou encerrar com as palavras do David Icke,
com esse vídeo sobre as vacinas. Prestem atenção no que ele diz", diz um
dos youtubers antivacina, antes de filmar um vídeo de Icke, um britânico
conhecido por suas teorias da conspiração.
Outro vídeo, este com 195 mil visualizações, tem
parte dos textos explicativos em inglês - uma cópia de algum filme em inglês contra
vacinas.
Yasodara Córdova, pesquisadora-sênior sobre
desinformação e dados na Digital Harvard Kennedy School, diz observar uma
influência muito grande de conteúdo em inglês e de teorias da conspiração em
vídeos brasileiros.
Córdova foi coautora de um trabalho que identificou
como o sistema de recomendação automatizado do YouTube estava sugerindo vídeos
domésticos de crianças brasileiras aparentemente inofensivos para quem assistia
conteúdo sexual - ou seja, o próprio algoritmo sexualizava as crianças. O
achado foi divulgado em uma reportagem do jornal New York Times no mês passado.
"Desde o começo da internet, o conteúdo é
majoritariamente em inglês. E quando essas teorias da conspiração, que são
muito interessantes e bizarras e chamam a atenção, começam a ser expostas e
monetizadas, elas prendem a atenção das pessoas", afirma Córdova.
Na opinião da pesquisadora sobre comunicação
científica Marina Joubert, da Universidade Stellenbosch, na África do Sul, as
pessoas que se opõem à vacinação são conectadas dentro de suas comunidades,
"mas também globalmente, via redes online". "Eles compartilham
ideias por meio de redes sociais e reutilizam conteúdo e argumentos", diz
ela, que conduz pesquisas sobre comunidades antivacina sul-africanas.
Para Córdova, há pouco conteúdo que contradiga
essas teorias da conspiração na internet. Uma das soluções, sugere ela, é que o
próprio YouTube convide pessoas locais para produzir conteúdo que desminta a
desinformação. (BBC)
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