O pano de prato vermelho adorna há dias a tampa do fogão e não
existe expectativa de que ele seja retirado dali em breve: não há comida para
preparar no barraco em que Alessandra, de 36 anos, mora com cinco filhos - o
mais velho de nove anos e o menor de 16 dias. As crianças, em férias escolares,
pulam e correm agitadas, se escondem entre as vielas, e Alessandra sabe que em
breve chegará o momento em que elas vão pedir para almoçar.
"Me
corta o coração eles quererem um pão e eu não ter. Já coloquei os meninos na
escola pra isso mesmo, por causa da merenda. Um pouquinho de arroz sempre
alguém me dá, mas nas férias complica", afirma Alessandra, que,
desempregada, coleta latinhas na favela de Paraisópolis, em São Paulo, onde
mora. No dia da entrevista à BBC News Brasil, os filhos de Alessandra iriam
recorrer à casa da avó para conseguir se alimentar.
O drama de Alessandra não é incomum. As férias escolares - quando
muitas crianças deixam de ter o acesso diário à merenda - intensificam a
vulnerabilidade social de muitas famílias em todo o país. Embora variem em
conteúdo e qualidade - às vezes são apenas bolacha ou pão, em outras, são
refeições completas de arroz, feijão, legumes e carne - as merendas ocupam
função importante no dia a dia de certos alunos. Para essas crianças, nos
períodos sem aulas é que a fome, uma ameaça ao longo de todo ano, se torna uma
realidade a ser enfrentada.
No Paranoá Parque, conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida
que fica a 25 minutos de distância do Palácio do Planalto, em Brasília, as
crianças passam os dias livres empinando pipa, de estômago vazio. "No
final da tarde, elas me pedem, 'tia, tem um pãozinho aí para mim?' Se chega pão
de doação, acaba tudo em um minuto", conta Maria Aparecida de Souza, líder
comunitária no bairro.
Foi ali que, em 2017, um menino, na época com oito anos, desmaiou de
fome durante as aulas e virou notícia nacional. Ele estudava em um colégio a 30
km de distância de sua casa, onde recebia como refeição apenas bolacha e suco.
De lá para cá, a situação dos quase 30 mil moradores da área não parece ter
melhorado.
"É muito desemprego, mães com cinco, seis ou oito filhos que
não têm nada dentro de casa. Nem mesmo colchão, gás para cozinhar ou cobertor
para este frio. Nas férias, algumas mulheres não têm o que dar aos filhos.
Tenho 48 anos, sempre trabalhei nisso (assistência comunitária), e nunca vi a
coisa tão ruim quanto está agora. Temos aqui no bairro 285 famílias em situação
de miséria total", diz Souza.
"No final da tarde elas me pedem, 'tia, tem um pãozinho aí para mim?' Se chega pão de doação, acaba tudo em um minuto", conta Maria Aparecida de Souza (de pé), líder comunitária no bairro.
'Se eu pagar a prestação da casa, não temos o que comer'
Embora não
haja estudos nacionais que indiquem o tamanho da insegurança alimentar durante
o período de férias escolares, uma série de indicadores comprova a evolução da
pobreza no país e o modo como ela incide sobre as crianças.
De acordo
com a Fundação Abrinq, que fez cálculos a partir de dados do IBGE, 9 milhões de
brasileiros entre zero e 14 anos do Brasil vivem em situação de extrema
pobreza.
O Sistema de
Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde (Sisvan) identificou,
no ano retrasado, 207 mil crianças menores de cinco anos com desnutrição grave
no Brasil.
A mais recente pesquisa de Segurança Alimentar do IBGE, de 2013,
apontava que uma a cada cinco famílias brasileiras tinha restrições alimentares
ou preocupação com a possibilidade de não ter dinheiro para pagar comida.
Se a pesquisa fosse feita hoje, a família da faxineira Marinalva
Maria de Paula, de 57 anos, se enquadraria nessa condição. Com uma renda de R$
360 mensais para três adultos e uma criança, ela se vê cotidianamente frente a
decisões dramáticas:
"Se eu
pagar a prestação do apartamento ou a conta de água, não temos o que comer.
Quando a situação aperta, prefiro dar comida pra minha neta e durmo com
fome", conta Marinalva, que teme despejo do prédio do Conjunto
Habitacional (COHAB) em que mora, em São Paulo, por falta de pagamento do valor
do imóvel e do condomínio.
A vasilha de
arroz funciona como um termômetro da aflição de Marinalva: no dia da
entrevista, restavam apenas dois dedos de cereal no pote. Com as férias da
criança, de 3 anos, a comida que avó consegue manter nos armários acaba mais
cedo e é preciso partir em busca de doações. O fenômeno que acontece na casa da
faxineira já havia sido identificado pelo Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase) em 2008, quando um terço dos titulares do Bolsa
Família declaravam em pesquisa que a alimentação da família piorava durante as
férias escolares.
"Quando
minha filha me deu essa neta pra criar, ela me disse: 'mãe, ou você pega a
menina, ou eu vou matar ela de fome'. Eu aceitei e agora estou nessa situação.
Passo as noites acordada pensando, vou vivendo de pinguinho. Minha neta levanta
de manhã e quer o pão dela, e eu me viro e me rebolo, porque na escola ela
recebe, e em casa eu não posso dizer pra ela que não tem pão."
Marinalva não consegue emprego formal há quatro anos. Ela está muito
longe de atingir a renda mínima familiar, estimada pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em R$ 4.214,
62, para suprir sem carências as necessidades com alimentação, moradia, saúde,
educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência dos quatro
integrantes da casa. O valor, calculado em julho, equivale a quatro vezes o
salário mínimo atual, de R$ 998.
'Testemunhos de pessoas em áreas de vulnerabilidade social indicam que (a merenda escolar) acaba sendo a garantia de consumo mínimo de alimentos durante o ano letivo para parte das crianças', diz especialista; acima, merenda de escola cearense, em foto de arquivo
Fome e obesidade nas escolas públicas
Na outra
ponta do problema, professores e gestores escolares em diferentes partes do
país confirmaram presenciar situações de fome à BBC News Brasil. A pedido dos
profissionais, alguns entrevistados não serão identificados para não expor ou
estigmatizar escolas e alunos.
"De
fato há uma crise no país, e a percepção de que o aluno vai para a escola para
comer é real, a gente é que aproveita a ida dele para ensinar", afirmou
Maria Izabel Noronha, presidente do sindicato dos professores da rede estadual
paulista (Apeoesp) e deputada estadual (PT-SP).
Na favela
carioca do Complexo da Maré, a coordenadora do Projeto Uerê, Yvonne de Mello,
que oferece refeições e aulas complementares a alunos de 6 a 18 anos, corrobora
as palavras de Maria Izabel: "Neste ano e no ano passado, tenho recebido
crianças que não conseguem aprender de maneira nenhuma. Não porque têm
deficiência mental, mas porque não se alimentaram direito. Tive duas crianças
no Uerê que desmaiaram. (A criança) começa a passar mal, a vomitar. Quando vai
ver, não houve alimentação no dia anterior", relata.
Na periferia
de Belém (PA), Lilia Melo, professora do ensino médio, conta que a colônia de
férias da escola pública onde ensina ganhou adesões depois que passou a oferecer
lanches.
"Esses
dias, servi bolo com suco e vi um dos alunos levantando em direção a sua
mochila. Depois percebi que ele deixou de comer para guardar para mais tarde.
Perguntei por que, e ele não disse nada. Dei mais um pedaço e ele comeu. Na
saída ele revelou: 'professora, tô levando pro meu irmão'. Ele tem um irmão de
quatro anos. Então, há aqueles que levam 'para mais tarde', mas que no fundo
querem garantir para seus familiares."
Em escolas de São Paulo, a insegurança alimentar aparece mesmo
durante o ano letivo, após poucos dias sem aula. "Percebo que na
segunda-feira os alunos chegam com muita fome, não comeram o suficiente no fim
de semana. O cardápio da segunda não é um dos preferidos deles, mas, ainda
assim, as crianças comem mais do que a média dos outros dias", afirma o
diretor de uma unidade de ensino na zonal sul.
Um professor da rede pública paulistana relembra o caso de uma aluna
do período noturno que, sem comida em casa, trazia o filho menor para também se
servir da merenda. "Com certeza algumas crianças no período de férias
ficam desprovidas de uma refeição", conclui.
"Testemunhos
de pessoas em áreas de vulnerabilidade social realmente indicam que (a merenda
escolar) acaba sendo a garantia de consumo mínimo de alimentos durante o ano
letivo para parte das crianças", explica à reportagem Elisabetta Recine,
professora e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e
Nutrição da Universidade de Brasília.
"Considerando
as projeções de que a pobreza e extrema pobreza devem aumentar, as crianças
devem sofrer as consequências disso."
Simultaneamente
à fome, há outro problema a ser enfrentado: as crianças brasileiras estão cada
vez mais obesas, incluindo as de baixa renda. O excesso de peso não revela uma
alimentação de qualidade. É, na verdade, sinal do contrário disso - há um
aumento expressivo do consumo de alimentos baratos e ultraprocessados, ricos em
calorias mas pobres em nutrientes, aponta um estudo publicado neste mês pela
Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o Centro de
Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia.
Com isso,
uma parte ainda pequena, mas preocupante das crianças de baixa renda, enfrenta
uma dupla carga: a desnutrição aliada à obesidade.
"A
obesidade tem crescido e vem atingindo cada vez mais a população menos
favorecida socioeconomicamente", diz em comunicado Natanael Silva, um dos
autores da pesquisa.
"A
insegurança alimentar transcende a quantidade de comida", agrega Maria
Paula de Albuquerque, pediatra nutróloga do Centro de Recuperação e Educação
Nutricional (Cren), entidade que atua em São Paulo.
Nove milhões de crianças brasileiras entre zero e 14 anos do Brasil vivem em situação de extrema pobreza; acima, iniciativa de 2010 em Belo Horizonte que ofereceu merenda a alunos durante as férias
Desnutrição atrapalha o ensino?
Para evitar que alunos famintos tenham dificuldade de aprendizagem,
algumas escolas instituem um rápido lanche antes do início das aulas, assim as
crianças conseguem esperar pelas refeições sem perder o foco no conteúdo em
classe.
Diferentes pesquisas acadêmicas indicam que o acúmulo de
deficiências nutricionais - seja causado pela fome, seja pelo consumo de
alimentos de baixa qualidade - pode causar impacto na habilidade de aprendizado
infantil.
"É
difícil afirmar que a nutrição seja a causa específica e única de problemas no
desenvolvimento infantil, quando a criança sofre também com um sistema
educacional que não é adequado e com a falta de estímulos. Mas é um entre
tantos fatores desse ciclo de pobreza cruel", aponta Albuquerque.
Ela
ressalta, porém, que esse ciclo pode ser rompido, permitindo que mesmo crianças
em situação de extrema vulnerabilidade atinjam seu potencial. "Ainda que
viva em situações adversas, a criança é um infinito de possibilidades. Seu
cérebro tem enorme plasticidade para absorver novos hábitos. É importante,
porém, fortalecer também quem cuida delas. Não conseguimos melhorar a condição
de uma criança sem melhorar também a situação de sua família."
(Fonte:
BBC - Colaborou Amanda Rossi)
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