Com cinco edições publicadas, o relatório
anual Free to Think, que monitora a perseguição a acadêmicos
e a universidades em todo o mundo, já teve estampadas em sua capa fotos do Irã,
da Turquia, do Paquistão e Egito. Na edição de 2019, quem ocupa a primeira
página do relatório é o Brasil.
A capa traz uma imagem de estudantes protestando no
Rio de Janeiro em maio contra cortes de orçamento e bolsas anunciados pelo
governo federal, capturada por Ricardo Moraes, da agência Reuters. Pela
primeira vez, o Free to Think ("Livre
para pensar", em tradução livre) traz também um capítulo dedicado ao Brasil, afirmando que "pressões
significativas no ensino superior brasileiro aumentaram na véspera e no período
posterior às eleições presidenciais de 2018". Nas edições anteriores, o
Brasil não foi mencionado.
O
relatório, de caráter mais qualitativo, cita na edição de 2019 declarações de
membros e iniciativas do governo federal brasileiro cortando investimentos para
instituições e disciplinas específicas, como a sociologia e a filosofia;
apresenta ainda ações que, de acordo com o documento, limitam a autonomia das
universidades; e episódios de pressão, por agentes policiais e civis com
motivações políticas, contra campus durante e depois das eleições
presidenciais.
O
destaque inédito ao Brasil justifica-se não necessariamente pela dimensão da
perseguição a acadêmicos no país em comparação com o resto do mundo, e sim a
uma mudança na conjuntura, explicou à BBC News Brasil Robert Quinn, diretor
executivo da organização sem fins lucrativos que produz o relatório, a rede
internacional Scholars at Risk ("Acadêmicos em risco"), baseada na
Universidade de Nova York. A publicação detalha ainda os casos da China, Índia,
Sudão e Turquia e abrange o período de setembro de 2018 a agosto de 2019.
Quinn,
doutor em filosofia e com uma trajetória de prêmios e passagens por
organizações dedicadas à promoção científica e aos direitos humanos, diz que
além do relatório, outra atividade do Scholars at Risk é receber pedidos de
assistência por acadêmicos que denunciam estar sendo vítimas de perseguição.
A rede, que está celebrando 20 anos de
existência, recebeu em sua história 34 solicitações desse tipo vindas do Brasil
— 30 delas no último ano, o que fez a rede acompanhar mais de perto a situação
do país e depois incluí-lo no relatório.
"Eu não leria a imagem como dizendo: o
Brasil foi o pior país do mundo no ano passado. Isto seria injusto",
afirmou, falando de Nova York em entrevista via chamada de vídeo. "Mas
acho que o que ela está dizendo é: o Brasil está aqui, e isto é novo."
"Há
algo acontecendo e precisamos olhar para isso. Não quer dizer que há um grande
problema, mas significa que precisamos analisar. E, quando olhamos, uma parte
dos incidentes foi muito bem pronunciada por representantes do governo ou
políticos no Brasil. Algumas destas falas circularam pelo mundo", diz.
Declarações de Jair Bolsonaro e de Abraham Weintraub são mencionadas em relatório como uma retórica que contribui para estigmatização e cerceamento da liberdade das universidades
O relatório apresenta, por exemplo, declarações
do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do presidente Jair Bolsonaro. Uma
delas foi uma entrevista de abril em que Weintraub afirmou que as universidades
federais Fluminense (UFF), da Bahia (UFBA) e de Brasília (UnB) teriam cortes de
verba por promover "balbúrdia" em vez de buscar excelência acadêmica,
segundo ele. Outra fala do mesmo mês incluída no documento foi referente às
disciplinas de filosofia e sociologia, que de acordo com o ministro poderiam
ter verbas para seus cursos cortadas por não serem rentáveis.
Esta posição foi endossada por Bolsonaro no
Twitter, onde ele escreveu que a medida teria o objetivo de "focar em
áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia
e medicina".
A
reportagem solicitou posicionamento dos ministérios da Educação e Ciência e
Tecnologia na manhã de segunda-feira (9), mas não obteve resposta até esta
publicação.
Fazendo
uma analogia com a medicina, Quinn diz que há casos em que a tensão entre as
universidades e o poder é crônica, ou seja, se expressa de uma forma saudável,
por meio de debates públicos e protestos, por exemplo.
E há os
casos agudos, em que a tensão é liberada em forma de violência e perseguição.
Para ele, a escalada de casos do Brasil que chegaram à organização indicam que
o país pode estar chegando em sua fase aguda.
"Baseado
na história em outros lugares, temos um alarme do que pode acontecer e do que
pode piorar. A situação (no Brasil) é preocupante."
"Acho
que o maior sintoma de todos no Brasil, pois é algo que se observa historicamente,
voltando literalmente a séculos atrás, é a construção artificial do 'outro' por
aqueles que estão no poder. Esta criação não se vale do conhecimento, da
racionalidade ou de evidências, mas de emoções, energia negativa e uma remissão
a um passado imaginário 'puro'".
"No
ensino superior, isso se manifesta com governos, partidos ou representantes
importantes do poder mirando um acadêmico em especial ou uma disciplina
particular como estrangeira, não tradicional".
Ainda
que o relatório lembre que os cortes nestas universidades e disciplinas não
tenham sido concretizadas, Quinn diz que tais falas contribuem para um cenário
de cerceamento à liberdade de pensamento — que não deve ser orientado apenas
pelo critério da rentabilidade, ele destaca.
"No nosso histórico de casos, por exemplo,
vemos que qualquer disciplina pode se tornar um alvo", aponta o diretor.
"Há alguns anos, tivemos o caso de um
professor na Tunísia que lecionava uma disciplina sobre saúde pública, e
trabalhava especificamente com mortalidade infantil. Você pode perguntar: por
que isto se tornaria algo político? Porque o governo, e se tratava de uma
ditadura, estava mentindo sobre a mortalidade infantil — a situação era muito
pior do que estava sendo divulgado."
"Se
você considera a história da União Soviética, por exemplo, os físicos lideravam
a dissidência. Mas nunca pela física em si, pelas fórmulas. Era porque eles
queriam conversar com físicos de outros países, mas eram impedidos de
viajar."
"Hoje,
no cenário contemporâneo, há países, como o Irã, que tentam recrutar físicos
para participar de seus programas nucleares. E, se eles se negarem, vão para a
prisão."
É também
lembrado no relatório sobre o caso brasileiro um decreto presidencial de maio
que alterou os procedimentos para nomeação de órgãos vinculados à administração
federal (não apenas instituições de ensino).
Na visão
de entidades que se manifestaram sobre o decreto, como o Sindicato Nacional dos
Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e a Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, ele
poderia afetar diretamente a autonomia das universidades públicas.
Isto
porque o texto abre caminho para que o governo, e não mais os reitores,
designem nomes para cargos de vice-reitor, pró-reitor, diretores e
vice-diretores de faculdades.
Pressão
vinda da Justiça e de grupos políticos em campus brasileiros
Além de ações do governo federal, o relatório
aponta para decisões de juízes e ações policiais em universidades no contexto
eleitoral, motivadas por acusações de que estudantes e professores estariam se
manifestando partidariamente em espaços públicos.
Foi o
caso do confisco, por decisão judicial, de uma faixa pendurada na Universidade
Federal Fluminense (UFF) com as palavras "Direito UFF Antifascista";
ou de folhetos de uma associação de docentes da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG) intitulados Manifesto em defesa da democracia e das universidades públicas.
O relatório Free to Think lembra
que, no final de outubro de 2018, a ministra do Supremo Tribunal
Federal (STF) Cármen Lúcia concedeu medida cautelar suspendendo ações de busca
e apreensão, autorizadas por juízes de Tribunais Regionais Eleitorais, em
universidades de todo o país.
"Acho que o maior sintoma de todos no Brasil, pois é algo que se observa historicamente, voltando a séculos atrás, é a construção artificial do 'outro'", afirmou Quinn em entrevista à BBC News Brasil
Do
período eleitoral, o documento denuncia ainda relatos de ataques e assédios de
grupos civis com motivações ideológicas contra estudantes da Universidade de
Fortaleza (Unifor); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio);
Universidade Federal do Pará (UFPA); e Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE).
Por fim,
o relatório apresenta recomendações específicas para o caso brasileiro, como a
investigação e eventual punição de autores de incidentes em que membros da
comunidade universitária tenham sido colocados em risco; e o recuo de
declarações e políticas que estigmatizem e ataquem o ensino superior do país.
Em
relação às 30 solicitações de assistência do Brasil recebidas pelo Scholars at
Risk (SAR) no último ano, a entidade disse que seis estão sob acompanhamento de
fato, enquanto as outras não puderam ser atendidas diretamente pela
organização, sendo direcionadas a outras formas de assistência.
"Em
relação às outras 24 aplicações, algumas não atenderam aos critérios de bolsa
ou risco. Como é possível observar em nossas ações, como o Free to Think, o SAR
está preocupado com as pressões no setor da educação superior no Brasil que
estão impactando todos os acadêmicos e estudantes do país. Devido aos recursos
limitados e um crescente volume de pedidos de assistência, nossos serviços de
proteção priorizam aqueles que relatam experiências de ataques e ameaças
diretos", diz nota enviada à reportagem.
A rede
SAR foi fundada em 1999 e tem seções em diferentes partes do mundo,
principalmente na América do Norte, Europa e África. Na América Latina, a rede
tem colaboradores que participam anonimamente no monitoramento e verificação de
incidentes.
Nos
casos mais graves de perseguição a acadêmicos, o Scholars at Risk tem um
projeto que organiza asilo para que pesquisadores possam trabalhar e morar em
outros lugares em que não estejam sob risco; há também serviços de assistência
e campanhas para casos de acadêmicos presos.
A
organização tem apoio da Universidade de Nova York, onde é sediada, e recebe
doações individuais e de outras entidades, como a Vivian G. Prins Foundation,
Open Society e National Endowment for Democracy.
Preocupação
que perdura na Turquia
No período abordado pelo relatório, o Scholars
at Risk diz ter coletado relatos de centenas de incidentes em 56 países. No
entanto, alguns deles, como o Brasil, ganharam neste ano capítulos em
particular: foi o caso da Índia, Turquia, Sudão e China.
A Turquia tem destaque importante por seu
quarto ano consecutivo, já que a organização recebeu relatos de "ataques
extraordinários" no ensino superior do país. Lá, acusados de traição e
terrorismo, milhares de acadêmicos enfrentam processos judiciais e prisões por
terem assinado em 2016 uma petição crítica às ações repressivas do governo
contra os curdos.
Alguns são vítimas da chamada "morte civil", ou
seja, foram demitidos de seus cargos públicos, proibidos de assumir novas
posições e de deixar o país legalmente. Há ainda no país outros casos de perseguição
a pessoas e grupos considerados opositores que não necessariamente têm relação
com o episódio da petição.
Na
China, a histórica perseguição a acadêmicos se intensificou no último ano, com
um aumento nas demissões, prisões, restrições de viagens daqueles considerados
divergentes, por sua postura crítica, origem étnica ou religiosa, das
diretrizes do Partido Comunista no país.
No
Sudão, que viveu uma onda de protestos que levou em abril à queda do então
presidente Omar al-Bashir, as universidades foram alvo de repressão, com força
de segurança se valendo de prisões e violência, às vezes letal, contra
estudantes e professores manifestantes. Mesmo após a queda de al-Bashir, foram
relatados casos de ataques perpetrados por grupos paramilitares.
Já denúncias
vindas da Índia também não são novidade, mas viram uma piora no último ano,
segundo o relatório. Foram registrados conflitos graves entre grupos internos
de estudantes; ou com grupos externos e milícias, muitas vezes motivados por
divergências religiosas, étnicas ou ideológicas; ou ainda com a polícia. O
relatório apresenta também casos de acadêmicos que foram retaliados
profissionalmente pelas próprias instituições de ensino às quais estavam
vinculados, como em demissões motivadas por opiniões por eles expressas.
Na
entrevista à BBC News Brasil, Robert Quinn reconheceu que o formato do
relatório não é quantitativo, com uma precisão como a de uma pesquisa
demográfica por exemplo.
"Ao
mesmo tempo, avaliamos que temos uma amostra representativa razoavelmente boa,
pelo menos dos casos mais notáveis que aconteceram no ano passado", diz o
diretor da organização. "Nossa metodologia está no nosso relatório e em
nosso site, para que todos possam explorá-la."
Quinn diz que vê o trabalho do Scholars at Risk
como estando no meio do caminho entre o poder e as ideias, onde estão os
acadêmicos e as universidades - "o trabalho deles é gerar ideias, fazer
perguntas, o que por definição se choca com o poder", aponta.
Mas esse poder é sempre político? Para o
entrevistado, a resposta dá destaque justamente à América Latina. "Sem
dúvidas há pressão também do poder econômico, e não surpreenderia se os números
apontassem para a América Latina como vivendo um problema maior nesse sentido —
mas eu precisaria checar os dados. Acadêmicos que trabalham com direitos
fundiários, particularmente dos povos indígenas, ou aqueles que trabalham com
meio ambiente muitas vezes entram em contato, e muitas vezes em conflito, com
interesses corporativos e comerciais."
O embate
entre o poder e as ideias, ele diz, acontece há séculos — mas há "algo
diferente hoje", fazendo das ameaças aos acadêmicos e ao livre pensamento
algo global.
Quinn
atribui esta globalização dos riscos a uma combinação de fatores — alguns que
considera positivos: a democratização do ensino superior em todo o mundo e do
acesso à internet; e o encurtamento de fronteiras, com o transporte e as
tecnologias.
"Tudo
isso está se combinando para formar um clamor pelo restabelecimento da expertise, da
curadoria do conhecimento. No passado, quando a educação não era nem um pouco
democrática, muito elitista, a curadoria do conhecimento acontecia pela
limitação do acesso"
"Mas
parece que hoje estamos tendo muito mais dificuldade em filtrar as informações
de qualidade do que é ruído."
"A
ironia é que, ao meu ver, isso faz das comunidades acadêmicas mais importantes
do que nunca. A sociedade civil precisa da contribuição de uma expertise responsável
e com interesse público para orientar o acesso à informação. Então, trata-se de
um momento verdadeiramente único, mas não sem riscos."
(Fonte:
BBC)
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