Nenhuma das duas localidades adotou um bloqueio total à circulação de pessoas, como ocorreu em partes da China, Itália e Espanha. Então, como o número de mortes e internações está caindo ou não está subindo com a economia aberta?
Há três hipóteses em voga: distanciamento social, imunidade
coletiva e bolhas de proteção.
A primeira e principal explicação, baseada em dezenas de estudos e análises de dados municipais, é que o distanciamento social praticado por parte da população surtiu efeito. Mesmo adotado de forma parcial e não obrigatória. O mesmo vale para o uso de máscaras. Não está no patamar ideal, mas tem colaborado para salvar vidas e evitar hospitais lotados. Só que alguns pesquisadores dizem que o distanciamento não explica sozinho porque o número de internações não voltou a crescer na capital amazonense, por exemplo.
A segunda hipótese tem gerado debate
entre pesquisadores no Brasil: imunidade coletiva (ou “de rebanho”). Segundo
essa visão, algumas cidades brasileiras atingiram um patamar de pessoas
infectadas alto o suficiente (e bem menor do que se estimava) para que o vírus
tivesse dificuldade para encontrar a quem infectar. A partir daí, a epidemia
teria perdido força em Manaus ou São Paulo, por exemplo.
Esse conceito de imunidade coletiva,
associado à estratégia de vacinação, explicaria porque não é necessário
imunizar 100% da população para conter o espalhamento de uma doença. Em alguns
casos, vacinar 80% já surtiria o efeito esperado porque derruba a probabilidade
de uma pessoa infectada contaminar alguém suscetível. No caso da covid-19, há
quem fale que isso acontece quando um terço da população foi infectada, metade
do patamar estimado pela maioria dos pesquisadores, em mais de 60% (leia mais
abaixo).
Mas se a parcela da população com
anticorpos contra o coronavírus não passa de 8% em Manaus e de 12% em São
Paulo, segundo estudos de âmbito nacional e municipal, como essas e outras cidades teriam
atingido uma imunidade coletiva na pandemia atual?
Para o físico Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em
Saúde da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, aventar essa hipótese
de imunidade de rebanho é perigoso e antiético por diversos motivos, principalmente
por falta de evidências científicas e pelo risco de fundamentar medidas de
governantes contra o distanciamento social, como se o pior da pandemia já
tivesse quase passado, o que poderia estimular a circulação do vírus e aumentar
o número de mortes.
Segundo projeções, mais de 1 milhão de brasileiros morreriam até o
país atingir a imunidade de rebanho, e mesmo assim o vírus ainda circularia e
não se sabe por quanto tempo as pessoas ficam imunes a ele.
“É igual à defesa da cloroquina. Se constrói argumentos de
veracidade sem evidência. E em um país onde existe um negacionismo violento,
isso é até perigoso. O Brasil não achatou a curva e governantes estão tentando
falsificar a ideia de controle da epidemia. Somos um dos únicos países do mundo
que adotaram medidas de reabertura com o número de casos e óbitos crescendo.”
Segundo ele, é questão de tempo até novas ondas de infecções e
mortes em cidades que atualmente registram quedas nesses índices.
Por fim, a terceira possível explicação para o recuo da pandemia
em algumas cidades brasileiras passa por bolhas de proteção, que, a grosso
modo, incorpora as hipóteses de distanciamento social e imunidade coletiva.
Nesta visão, a doença tem dificuldade de circular porque parcelas
da população são expostas inicialmente ao vírus, mas em geral não convivem
tanto com outros grupos sociais que não foram expostos. Assim, surgem “bolhas”
em que distanciamento e imunidade coletiva surtem efeito a ponto de “confinar”
o espalhamento do coronavírus.
Mas isso varia muito de uma região
para outra das cidades. Quanto mais adensadas e precárias as condições de vida
de um bairro, mais vulneráveis serão os moradores dele. Segundo estudos do
grupo de pesquisadores Ação Covid-19, esse equilíbrio é tão instável que o
contato com pessoas doentes de outros bairros ou cidades pode, por exemplo,
estourar essas bolhas de proteção e resultar em novas ondas de infecção.
Por que imunidade coletiva desperta
tanto debate?
Esse conceito de imunidade de grupo gera controvérsia desde o
início da pandemia. Inicialmente, o debate girava em torno da possibilidade de
orientar estratégias dos países contra a doença.
Seria possível um país deixar de adotar quarentenas até que a
população atingisse o patamar de imunidade coletiva necessário para conter o
vírus? O Reino Unido cogitou seguir essa linha, mas as projeções de que isso
levaria a milhares de mortes fizeram o governo recuar. A Suécia segue mais ou
menos nessa vertente.
Um ponto central no debate atual sobre imunidade coletiva envolve
lugares onde os casos caíram sem quarentenas e poderiam estar mais “protegidos”
contra novas ondas de doenças, como a Suécia.
Qual foi o resultado da estratégia sueca? Até agora, em comparação
aos vizinhos nórdicos, a Suécia teve até sete vezes mais mortes e o declínio
econômico foi equivalente ao de quem fechou comércios e escolas (já que
habitantes evitaram circular nas ruas).
Mas o número de mortes tem caído no país, algo que reacende o
debate sobre imunidade coletiva. O país nórdico teria atingido o patamar, que
seria muito menor do que se estima? Há menos pessoas suscetíveis do que se
imagina, já que há outras defesas do corpo que podem combater o coronavírus
além dos anticorpos, como as células T (leia mais abaixo)?
Em geral, calcula-se o patamar
hipotético para conter a circulação do vírus a partir do número de pessoas que
podem ser contaminadas por alguém com a doença. No caso da covid-19, estima-se
que 10 infectados têm o potencial de transmitir o vírus para cerca de 25
pessoas.
Pesquisadores consideram que, no caso
da covid-19, o patamar é de pelo menos 60% da população. Em linhas gerais, sem
ponderar a vulnerabilidade de cada faixa etária, isso representaria pelo menos
127 milhões de brasileiros infectados e 1,3 milhão de mortos, sem contar o
impacto da falta de leitos hospitalares e as sequelas em pacientes recuperados, que relatam fadiga e falta de ar meses depois da infecção.
Esse patamar de pelo menos 60% não é igual para todos os habitantes. Varia conforme o país, a faixa etária, a adesão ao distanciamento e a condição socioeconômica, por exemplo.
O debate ganhou força com números de um estudo publicado na
revista Science sobre o tema, considerando essa heterogeneidade de
suscetibilidade em uma população.
Segundo pesquisadores da Universidade de Estocolmo, na Suécia, e
da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, esse patamar pode ser de 43% ou até mesmo 34%,
se a taxa de contágio da covid-19 for menor do que se imagina (em média, 10
infectados contaminariam 20 pessoas em vez de 25).
Mas os editores da própria Science publicaram uma carta em que
afirmam que mesmo que a previsão mais otimista de 43% esteja correta, não há nenhum estudo que aponte que qualquer país esteja próximo
da imunidade coletiva. “A continuidade de intervenções não
farmacêuticas (como distanciamento social) ao redor do mundo ainda é de grande
importância.” Enfim, novas ondas de infecção não estão descartadas.
Bolhas de proteção podem explicar a
queda em Manaus e São Paulo?
O debate sobre imunidade coletiva no Brasil se concentra
principalmente sobre o que está acontecendo em Manaus e São Paulo. Como a
pandemia pode recuar se não há gente suficiente com anticorpos e se muitos não
aderem ao distanciamento social?
Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalha com uma taxa
de prevalência de anticorpos em cerca de 14% da população da capital do
Amazonas e pouco mais de 3% em São Paulo. Segundo o biológo Fernando Reinach,
um estudo na cidade de São Paulo apontou que regiões mais pobres da capital
paulista registravam 16% de infectados em junho.
"Em Manaus, o número de casos subiu rapidamente, não foram
adotadas medidas drásticas de isolamento social, os mortos foram enterrados em
valas comuns no pico, e logo em seguida o número de casos diminuiu. Qual a
causa dessa rápida queda do número de infectados em Manaus? Teria a cidade
atingido a imunidade de rebanho? Um modelo matemático demonstra que isso pode
ter ocorrido, e talvez esteja ocorrendo em cidades como São Paulo", escreveu
Reinach em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo no sábado.
(Estudos do projeto Monitoramento Covid-19, do qual Reinach é
membro, apontaram que no fim de junho 11% da população da cidade de São Paulo tinha
anticorpos contra covid-19. A taxa entre pessoas que não
concluíram o ensino fundamental era 23%, ante os 5% entre aqueles com diploma
universitário.)
A física Patricia Magalhães, pesquisadora da Universidade de
Bristol, no Reino Unido, e seus colegas do grupo de cientistas Ação Covid-19
apontam outra hipótese para a queda do contágio em São Paulo: um fenômeno
conhecido como bolha de proteção.
Essa hipótese é calculada por meio de um modelo matemático
multiagente, que simula a interação das pessoas na pandemia da vida real. Nele,
o espalhamento da doença em uma localidade é estimado a partir dos contatos
pessoais dentro de um espaço delimitado (como um bairro, por exemplo).
As “pessoas” são colocadas dentro desta grade e se movem
independente e aleatoriamente ao longo do tempo. Quando elas se encontram nesse
cenário hipotético, mas não estão infectadas, seguem o rumo. Quando uma delas
está infectada, pode passar a doença para a outra.
Com o tempo, o distanciamento (pessoas
paradas ou transitando menos) e a imunização crescente reduzem as
possibilidades de transmissão do vírus de uma pessoa para outra dentro de uma
bolha.
Mas a transmissão não é igual em todos
os bairros de uma cidade, e depende da vulnerabilidade dessas pessoas à
contaminação onde elas vivem.
Para traduzir isso em números, Magalhães e outros pesquisadores inserem nos cálculos o IDH (índice de desenvolvimento humano) ou o Índice de Proteção Covid-19 (IPC19), criado pelo grupo Ação Covid-19. Este indicador leva em conta fatores socioeconômicos para definir quão protegidas ou desprotegidas estão as pessoas de diferentes classes. Número de moradores na mesma casa, saneamento básico, densidade demográfica, renda familiar, raça ou cor de pele.
Além das condições sociais, há outros três grandes parâmetros
usados nesses cálculos: 1. a quantidade de pessoas que adere ao distanciamento
social; 2. a densidade demográfica de cada região; 3. o número de pessoas que
desenvolveram anticorpos. Quem quiser pode fazer as simulações neste link aqui.
“O nosso modelo mostrou que a taxa de
contaminação na cidade de São Paulo está caindo. E fomos surpreendidos por esse
resultado. Ao tentar entendê-lo a fundo, observamos que as pessoas tendem a
contaminar mais seu entorno, onde as pessoas ao seu redor não são mais
suscetíveis, ou porque estão isoladas ou porque já tiveram a doença. Isso leva
a uma redução da propagação da doença”, afirmou Magalhães à BBC News Brasil. O
mesmo pode estar acontecendo em Manaus.
A cientista ressalta, no entanto, que
esse equilíbrio é frágil porque o vírus não deixa de circular e não se sabe
exatamente onde regiões das cidades vivem essa situação porque há poucos testes
de covid-19 para identificar quem está infectado e quem já produziu anticorpos.
Como essas bolhas não são isoladas, no momento em que o
distanciamento social cai ou uma pessoa infectada de outro bairro ou município
adentra uma área em “equilíbrio instável”, a doença pode voltar a se espalhar
com força novamente.
Vale lembrar que o número de infecções tem caído nas capitais de
São Paulo e do Amazonas, mas crescido nas cidade do interior desses Estados.
O que são as células T e por que são
associadas à queda de mortes na Suécia?
Imunidade é o conjunto de mecanismos do corpo que nos protegem de
infecções. É uma complexa rede de células, órgãos e tecidos que trabalham
juntos para se defender contra microrganismos e substâncias tóxicas que podem
nos deixar doentes.
Existem dois tipos de imunidade: a
inata (ou natural) e a adaptativa.
A primeira está sempre pronta para agir quando qualquer invasor é
detectado no corpo. Ela inclui a liberação de substâncias químicas que causam
inflamação e células brancas capazes de destruir células infectadas. Mas esse
sistema não é específico para o coronavírus. Ele não irá aprender e tampouco
lhe dará imunidade contra a covid-19.
A segunda, a resposta adaptativa, é dividida em dois ramos:
imunidade derivada de anticorpos, também denominada imunidade humoral, e
imunidade celular exercida por células chamadas linfócitos T (ou células T),
conhecida como resposta celular. Esta pode atacar apenas as células infectadas
com o vírus, por exemplo.
E o que isso tem a ver com o debate sobre imunidade coletiva,
bolhas de proteção e distanciamento social?
O caso da Suécia pode ser ilustrativo para explicar essa relação.
O país nórdico, como dito anteriormente, decidiu não adotar medidas duras de
restrição à circulação de pessoas como forma de combater a covid-19.
Em relação aos países vizinhos, a média de mortes por 1 milhão de
habitantes na Súecia por covid-19 chegou a ser quatro vezes a da Finlândia e
sete vezes a da Noruega. Desde meados de maio, nenhum país da região passa de
15 novos casos diários por 1 milhão de habitantes, exceto a Suécia, atualmente
com 40.
Mas a doença não se espalhou de forma descontrolada em território
sueco, com hospitais lotados e milhares de mortos. O número de infecções e
mortes em território sueco tem caído.
A principal explicação é que, mesmo sem quarentenas ou lojas
fechadas, a maioria da população circulou menos na rua. Dados de celulares
coletados pela Apple e pelo Google apontam isso, por exemplo.
Mas o debate sobre o recuo da pandemia na Suécia passa também pelo
impacto da quantidade de pessoas imunes. No fim de abril, pico da doença na
Suécia, estudos oficiais apontavam que apenas 7,3% da população na região de
Estocolmo haviam produzido anticorpos contra a doença.
Por outro lado, um estudo liderado pelo instituto sueco Karolinksa
apontou que pessoas que testaram negativo para anticorpos contra o coronavírus
ainda podem ter alguma imunidade.
Para cada pessoa que testou positivo para anticorpos, o estudo
encontrou duas que tinham células T específicas que identificam e atacam
células infectadas pelo Sars-CoV-2. Ou seja, a quantidade de pessoas imunes ao
novo coronavírus pode ser muito maior do que apontam os estudos que quantificam
pessoas com anticorpos.
Essa presença das células T foi observada também em pessoas que
tiveram casos leves ou sem sintomas de covid-19. Mas ainda não está claro se
isso apenas protege esse indivíduo ou se também pode impedi-lo de transmitir a
infecção a outras pessoas.
Uma característica particular do segundo tipo de imunidade do
corpo humano, o adaptativo, é que ele deixa memória. Mas o novo coronavírus,
Sars-CoV-2, não é conhecido há tempo suficiente para se saber o quanto dura
essa memória de imunidade contra ele.
Há relatos preliminares de pessoas que parecem ter sido infectadas
mais de uma vez pelo novo coronavírus em um período curto de tempo. Mas o
consenso científico é de que a questão eram os testes, com os pacientes sendo
incorretamente informados de que estavam livres do vírus. (BBC)
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