Com base em preconceitos, a sociedade quer definir qual pobre merece receber auxílio do Estado, segundo a avaliação da socióloga Letícia Bartholo, especialista em programas de transferência de renda. É aí, diz a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que moram as armadilhas do debate sobre programas de combate à pobreza.
"É um tom
moralizante que caracteriza a sociedade brasileira e por isso está presente em
todos os setores. É você, baseado num preconceito sobre os pobres, definir qual
é o pobre meritório, que faz jus ao amparo do Estado, e qual é o pobre não
meritório", diz. "Não podemos fazer política de combate à pobreza com
os olhos da riqueza."
A discussão sobre
programas de combate à pobreza no Brasil aumentou depois que a crise gerada
pela pandemia do coronavírus levou o governo a criar o auxílio emergencial para
proteger a população mais vulnerável.
A equipe do
presidente Jair Bolsonaro tem falado com mais frequência sobre uma ampliação do
programa Bolsa Família. Embora não tenha apresentado formalmente uma proposta,
o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o novo programa chamará Renda
Brasil, reunirá programas sociais existentes e terá valor mais alto do que o
Bolsa Família.
O Bolsa Família
hoje atende 14,2 milhões de famílias, com benefício que varia em função da
renda, do número de pessoas na família e idade delas. O valor pago é, em média,
de R$ 188, segundo dados de junho de 2020.
Em entrevista à
BBC News Brasil, Bartholo, que foi secretária nacional adjunta de Renda de
Cidadania de 2012 a 2016, explica quais são os principais eixos que devem ser
levados em conta na hora desenhar ou reformar um programa de transferência de
renda e analisa o que considera armadilhas. Veja, a seguir, os principais
pontos:
Os eixos
Ao se pensar em um
novo programa de transferência de renda ou na ampliação do Bolsa Família,
deve-se levar em conta três eixos, segundo Bartholo.
O primeiro é a
definição do público: quem vai fazer jus ao benefício. Ela diz que, aí, é
necessário considerar a dinâmica da pobreza no Brasil. "A população pobre
é formada em grande parte por pessoas que entram e saem da pobreza com muita
facilidade", diz.
Para ilustrar esse
caráter volátil da renda dos mais pobres no Brasil, a socióloga aponta que,
considerando cinco trimestres, 65% da população brasileira enfrenta ao menos um
trimestre com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo.
O segundo eixo é a
definição do valor do benefício, que deve ser calculado, nas palavras dela,
para ser "efetivamente impactante" na redução da pobreza.
E o terceiro
ponto, diz ela, é dar segurança à população em relação ao benefício: garantir
que ele não será retirado de forma abrupta e que ele será atualizado de forma
periódica.
"O programa
deve ter uma atualização monetária das linhas de pobreza e valores de
benefício. Essa atualização deve ser periódica, coisa que ainda não temos no
Bolsa Família, que tem suas atualizações feitas de forma discricionária."
Bartholo diz que
esse debate deve incluir não só economistas, mas também especialistas em
pobreza e desigualdade e em assistência social, saúde e educação que vêm
acompanhando a articulação do Bolsa Família com essas áreas ao longo dos
últimos anos.
Em artigo
publicado em junho, ela e outros três especialistas no assunto (Luis Henrique
Paiva, Rodrigo Orair e Pedro H. G. Ferreira de Souza) defendem que seja adotado
um programa temporário de transferência de renda (12 a 18 meses), como uma
transição do auxílio emergencial para um formato permanente. Eles argumentam
que isso permitiria aliar a urgência do tema com a necessidade de debate.
Fazer uma mudança muito rápida, segundo os autores, "é correr o sério risco de substituir um programa de reconhecido êxito como o Bolsa Família por algo mal desenhado e com implementação de baixa qualidade".
Questionada sobre
quais deveriam ser os parâmetros para um novo benefício, a pesquisadora defende
que seja, pelo menos, um benefício mensal de no mínimo R$ 100 para cada
indivíduo com renda familiar mensal de até meio salário mínimo per capita, sem
limite de pessoas na família.
Quão maior teria
que ser o orçamento em relação ao do Bolsa Família hoje para acomodar essa
proposta? Ela diz que pelo menos quatro vezes.
O grande problema,
geralmente apontado pela equipe econômica, é como arcar com novas despesas em
um orçamento já considerado apertado.
Bartholo diz que a
discussão de ampliação do benefício deve vir vinculada ao debate da reforma
tributária. E reconhece que, além disso, provavelmente teria que haver uma
revisão do teto de gastos, que é o mecanismo aprovado em 2016 que prevê que o
gasto máximo que o governo pode ter é calculado com base no orçamento do ano
anterior, corrigido pela inflação.
'Mundo
digital' e outras armadilhas
Um ponto que Bartholo
destaca como uma grande armadilha, quando se trata de um programa com foco na
população mais vulnerável, é o pensamento de que tudo deve migrar para o
digital.
"Muitas vezes
se fala, por exemplo, que o mundo é digital. 'Vamos fazer de forma digital'. Aí
você pergunta: para quem o mundo é digital? Será que no interior do Brasil o
mundo é digital como pensamos aqui de Brasília? Num país onde praticamente 70
milhões de adultos não completarem o ensino médio? E só conseguimos suplantar
isso indo até o local, conversando com a população, ou no mínimo conversando
com quem está de fato em comunicação constante com essa população."
Esse contato com
os beneficiários dos programas sociais é feito pela rede de assistência social
nos municípios brasileiros: 8 mil centros de referência atendem praticamente 70
milhões de pessoas vulneráveis à pobreza.
Da forma como
funciona hoje, é nesses locais que essas pessoas fazem seu cadastro, se
informam e são acompanhadas. "Para elas, esse encontro cara a cara com o
poder público faz toda a diferença", diz a pesquisadora.
Bartholo avalia
que, "se hoje o Bolsa Família conta com toda esta rede de atendimento e
tem qualidade reconhecida mundialmente, é porque optou por fortalecer as redes
de assistência locais".
"Construir um
programa de transferência de renda baseado completamente no acesso digital
pelas pessoas e centralizado no nível federal será, sem dúvida, um retrocesso e
um bom passo para o fracasso."
Bartholo publicou
em julho outro artigo com os sociólogos Pedro H. G. Ferreira de Souza, e Luis
Henrique Paiva e o economista Rodrigo Orair que aponta que outra armadilha
nesse debate está em acreditar que recursos poupados com os chamados
pentes-finos (a análise de quem recebe benefício sem ter direito) seriam
suficientes para construir um programa de transferência de renda realmente
efetivo na superação da pobreza. Eles apontam que não bastaria apenas um
"choque de gestão" para a política se tornar mais eficiente e efetiva
— embora, claro, seja dever do Estado fazer esse controle e corrigir eventuais
erros.
E o argumento
recorrente no Brasil de que benefícios como o Bolsa Família podem acomodar as
pessoas e eventualmente desestimular a busca por trabalho?
Bartholo diz que
essa colocação não se sustenta e também a define como armadilha. Ela afirma que
estudos com base em resultados do Bolsa Família demonstram que beneficiários do
Bolsa Família, comparados a pessoas do mesmo perfil não atendidas, têm mais
acesso ao mercado de trabalho formal.
"Do ponto de vista das pesquisas quantitativas sabemos que beneficiários do Bolsa Família não deixam de buscar inserção no mercado de trabalho formal. E os estudos qualitativos, principalmente aqueles feitos com mães beneficiárias do programa, é que o benefício fez com que elas pudessem achar que a miséria não era mais uma sina, que a miséria não é um destino, que os filhos e elas podem ter um novo futuro. Isso é você sair de uma condição de resignação completa e ir para um patamar de cidadania, em que tem expectativa de que as coisas podem mudar."
Outro erro, na
avaliação de Bartholo, seria mudar o nome do programa. O ministro Paulo Guedes,
contudo, chegou a mencionar que o próprio Bolsa Família foi uma união de outros
programas, ao defender o nome de Renda Brasil.
A pesquisadora
argumenta que "o Bolsa Família veio de um amadurecimento a partir dos
programas anteriores, mas teve amplitude de escala muito maior e formou, junto
dele, uma rede de acompanhamento nas áreas de saúde, assistência social e
educação que o caracterizam".
No artigo, os autores
dizem que batizar uma ampliação do Bolsa Família com outro nome "só
confundiria a população e causaria entre os mais pobres a sensação de que a
existência do benefício depende de manter no poder quem o criou — sentimentos
diametralmente opostos à noção de renda básica".
O Bolsa Família
foi criado no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT.
Impactos do
auxílio emergencial
Sobre o já
existente auxílio emergencial, de R$ 600, Bartholo diz que tem sido fundamental
para a proteção da população mais vulnerável durante a pandemia. Ela cita que o
benefício atinge 65 milhões de pessoas de forma direta e mais de 120 milhões de
brasileiros de forma indireta — ou seja, considerando as famílias dos
beneficiários. Isso representa mais de metade da população brasileira, de 209,5
milhões de pessoas.
O benefício foi
anunciado com duração de três meses, a ser pago a trabalhadores informais, microempreendedores
individuais (MEI), autônomos e desempregados que cumprem determinados
requisitos, como renda familiar per capita de até meio salário mínimo (R$
522,50) ou com renda total de até três salários mínimos (R$ 3.135). Em julho, o
governo anunciou prorrogação por mais dois meses.
A pesquisadora
aponta, no entanto, pelo menos dois pontos que considera ruins. O primeiro é
deixar de fora do benefício quem recebeu rendimentos tributáveis acima do teto
de R$ 28.559,70 em 2018. Por se tratar de um cenário de um ano e meio atrás,
ela aponta que a realidade financeira dessa pessoa pode estar diferente hoje.
O segundo tem a
ver, de novo, com o acesso à tecnologia. Os beneficiários que não estavam
inscritos no Cadastro Único só tinham a opção de fazer o pedido do auxílio por
site ou aplicativo. Para Bartholo, isso dificulta o acesso de parte do público
que teria direito ao benefício. (BBC)
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