Uma empregada doméstica foi a primeira vítima fatal
da covid-19 no Rio de Janeiro, em março.]
De lá para cá, os dados só fizeram confirmar: a doença causada pelo coronavírus no Brasil mata mais as pessoas negras e pobres. Com a evolução da epidemia no país, morreram pobres na linha de frente do tratamento à covid-19, trabalhadores de serviços essenciais e informais, trabalhadores que não puderam deixar de trabalhar, além de pessoas pobres idosas e com comorbidades, com acesso desigual ao sistema de saúde.
O fenômeno reflete o que se vê também em outros
países, como o Reino Unido e os Estados Unidos.
"O que a pandemia tem evidenciado é o que
vários estudos já mostravam em relação ao maior prejuízo da população pobre e
negra ao acesso da saúde. A covid-19 encontra um terreno favorável porque essas
pessoas estão em um cenário de desigualdade de saúde e de precarização da
vida", afirma Emanuelle Góes, doutora em saúde pública pela Universidade
Federal da Bahia e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz sobre desigualdades raciais e
acesso a serviços de saúde.
"Isso tudo tem relação com o sistema em que a
gente vive, com o racismo", explica ela, apontando como, por causa do
racismo estrutural, pessoas negras têm piores condições de vida.
Os pobres são atingidos de forma "muito
violenta" em relação aos "remediados e ricos", afirma o médico
sanitarista e professor de saúde pública da USP Gonzalo Vecina Neto.
Resultados de um estudo do Núcleo de Operações e
Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirmam que pretos e pardos morreram
por covid-19 mais do que brancos no Brasil. O grupo analisou a variação da taxa
de letalidade da doença no Brasil de acordo com variáveis demográficas e
socioeconômicas da população. Cerca de 30 mil casos de notificações de covid-19
até 18 de maio disponibilizados pelo Ministério da Saúde foram levados em
conta.
Considerando esses casos, quase 55% de pretos e
pardos morreram, enquanto, entre pessoas brancas, esse valor ficou em 38%. A
porcentagem foi maior entre pessoas negras do que entre brancas em todas as
faixas etárias e também comparando todos os níveis de escolaridade.
O estudo também concluiu que, quanto maior a
escolaridade, menor a letalidade da covid-19 nos pacientes. Pessoas sem
escolaridade tiveram taxas três vezes superiores (71,3%) às pessoas com nível
superior (22,5%).
Cruzando escolaridade com raça, então, a coisa
piora: pretos e pardos sem escolaridade tiveram 80,35% de taxas de morte,
contra 19,65% dos brancos com nível superior.
"A desigualdade social tem impacto direto nos
óbitos entre os mais pobres e com menor escolaridade", diz, por e-mail,
uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo, Paula Maçaira, pesquisadora do
Departamento de Engenharia Industrial do CTC/PUC-Rio e integrante do NOIS.
"Quanto mais desfavorável a situação do paciente, mais chances ele tem de
falecer."
O fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Nos
Estados Unidos, dados levantados pelo APM Research Lab mostra que negros
morreram a uma taxa de 50,3 por 100 mil pessoas, comparado com 20,7 para
pessoas brancas. Mais que o dobro.
No Reino Unido, números do Office of National
Statistics mostraram que homens negros da Inglaterra e de Gales têm três vezes
mais chance de morrer por covid-19 do que homens brancos.
"É um fenômeno mundial. Esse vírus mata mais
pobres e negros - não porque são negros, mas porque são pobres", diz
Vecina Neto. Para Góes, os contexto são semelhantes. "As pessoas negras
nos EUA e no Reino Unido também são as que vivem em locais periféricos de menos
acesso, menos fornecimento de serviços e com maior prevalência de comorbidades.
O que muda são os sistemas de saúde."
Mas por que isso acontece?
Góes e Vecina Neto citam algumas razões para as
taxas de mortalidade maiores para a população negra e pobre - no Brasil e no
mundo.
A primeira, segundo Góes, é o acesso a serviços de
saúde. "Pessoas negras em geral estão nas regiões mais marginalizadas,
mais periféricas e esses lugares em geral são lugares que têm baixa oferta de
serviço de saúde", diz a pesquisadora. "Elas precisam se deslocar
para o centro, onde ficam os serviços de saúde públicos e privados."
Um segundo motivo são as condições de vida da
população mais pobre. Vecina Neto diz que "pessoas pobres moram em lugares
piores, com pior acesso às condições de moradia mais decente" e que, com
um número maior de pessoas por metro quadrado, a propagação da doença é
facilitada.
A terceira explicação é a falta de acesso a
saneamento básico. "No caso do Brasil, principalmente em São Paulo, a
periferia não tem oferta de saneamento semelhante às zonas residenciais com
distribuição de renda maior", diz Vecina Neto. "A falta de acesso à
água é uma coisa muito grave nessa epidemia."
Um quarto motivo possível: a fome, ou necessidade
de trabalhar para ganhar o dinheiro para a comida do dia. "Quem mora na
periferia em grande medida faz parte do mercado de trabalho informal, portanto
ganha o dinheiro do dia para comer a comida do dia. Se o sujeito não sair todo
dia para ganhar alguma coisa para levar dinheiro para casa, vai ter fome na
casa dele", afirma.
Mesmo com a ajuda do governo federal de R$ 600
mensais para trabalhadores informais, que considera "insuficiente",
"as pessoas têm que sair para arrumar comida, e ao sair, se contaminam
mais facilmente". A realidade é completamente distinta à situação de quem
pode ficar isolado ou trabalhando de casa.
"Essas pessoas negras e pobres são as pessoas
inseridas mais informalmente no mercado de trabalho, e que estão no front na
área de saúde, enfermagem, serviços gerais, do trabalho doméstico", afirma
Góes. "Esse cenário só agudiza a situação."
Por fim, a pesquisadora sobre acesso desigual a
sistemas de saúde destaca condições relacionadas ao bem-estar, como
alimentação, exercícios físicos, lazer. Uma população mais pobre tem menos
acesso a boa alimentação e consome mais alimentos industrializados. Também está
sujeita a mais estresse pela "falta de estrutura da cidade, transporte,
moradia", diz ela. "São fatores modificáveis, que poderiam ser
alterados para dar melhores condições de vida às pessoas."
Isso leva a mais um fator, e um fator grave no
contexto da covid-19: a prevalência de comorbidades, como hipertensão e
diabetes, que também afetam negros e pobres desproporcionalmente, nessa
população. Essas comorbidades contribuem para a mortalidade por covid-19, e
estão mais presentes na população negra e pobre "não por uma questão
hereditária, mas porque ela está mais exposta a situações precárias", diz
Góes.
O que fazer?
Para resolver esse problema, os especialistas dizem
ser preciso endereçar o problema da desigualdade no Brasil em geral,
enfrentar o racismo e investir no SUS, o sistema universal de saúde brasileiro.
"O Brasil é um dos países mais desiguais do
mundo. A sociedade brasileira considera a desigualdade um problema? Eu acredito
que grande parte da população não acha que a desigualdade é um problema",
diz Vecino Neto. Mas, para ele, essa é a "patologia social" mais
importante que se tem. "É um quadro que a sociedade tem que buscar
corrigir. Não dá pra conseguir se defender de epidemia como essa com nossa
desigualdade."
Para ele, é necessário "melhorar o SUS".
"Estamos colocando o SUS à prova e ele está respondendo de maneira mais ou
menos adequada. Vamos sair dessa epidemia com uma lição importante que é buscar
melhorar o funcionamento do SUS."
Já Góes diz que a solução deve passar por
"repensar e refazer estratégias colocando a questão do enfrentamento ao
racismo no centro do debate", para que pessoas negras tenham o mesmo
acesso ao mercado de trabalho e serviços de educação e saúde.
"Enquanto não refletirmos sobre isso e não
tivermos uma sociedade preparada para reconhecer o racismo como estrutural e
reconhecer as desigualdades, será bem difícil fazer mudanças estruturais."
(BBC)
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