Publicado há 30 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe avanços na abordagem dos direitos essenciais do público para o qual foi criado em diversas áreas, como saúde, educação e também no combate ao trabalho infantil. No entanto, a situação no país está longe de ser a ideal em alguns aspectos como o racismo, a violência doméstica e o abuso sexual.
Para o coordenador do Programa de Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Mario Volpi, o maior dos desafios para fazer valer esses direitos no Brasil é a desigualdade, e, entre as diversas formas em que ela se apresenta no país, destaca-se o racismo.
"Esse elemento do racismo, da
desigualdade racial, é um elemento que o país ainda não superou. E um dos
motivos é porque o Brasil é um país que demorou a admitir que existe
discriminação racial. Tivemos uma ideologia de uma pseudodemocracia racial,
quando todo os conteúdos escolares e referências de acesso a políticas públicas
são brancos."
O Unicef apresenta diversos dados que
corroboram essa avaliação: 64,1% das crianças e adolescentes em trabalho
infantil em 2016 eram negros, assim como 82,9% das vítimas de homicídios entre
10 e 19 anos e 75% das meninas que engravidam entre 10 e 14 anos. "Uma
criança negra tem três vezes mais possibilidades de abandonar a escola que
crianças não negras", acrescenta Volpi.
Ao contrário da maioria dos
indicadores, a taxa de homicídios de adolescentes teve uma alta preocupante nos
30 anos do ECA. O número de adolescentes assassinados mais que dobrou no país
entre 1990 e 2017, ano em que 32 brasileiros de 10 a 19 anos foram mortos por
dia. Somente entre 1996 e 2017, o número de vítimas chega a 191 mil, estima o
Unicef.
Vulnerabilidade
A letalidade infantojuvenil é
considerada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
um dos problemas mais urgentes. O secretário nacional, Maurício Cunha, conta
que a situação vem sendo discutida entre governo e Unicef, e uma das frentes de
atuação será a redução da evasão escolar. "Está provado que reduzir a
evasão escolar diminui a letalidade juvenil", disse o secretário, que
aponta ações de busca ativa de adolescentes fora da escola como uma das
estratégias.
Cunha destaca que as desigualdades são
um elemento que precisa ser observado para além dos indicadores gerais, mas
alerta que há problemas que afetam todas as classes sociais, como a violência
doméstica, os abusos sexuais dentro e fora da internet e o cyberbullying.
"Independentemente da classe
social, ser criança no Brasil é estar em situação de vulnerabilidade. Há uma
série de violações que independem da classe social, embora sejam muito maiores
na condição da pobreza", diz ele, que destaca a internet como um desses
desafios e cita a exploração sexual no meio virtual. "O Brasil,
infelizmente, não é só consumidor dessas imagens, é um exportador."
Pandemia e
violência
Esse conjunto de preocupações se
acirrou com a chegada da pandemia de covid-19. Entre os dados mais alarmantes,
sublinha Cunha, está a queda nos registros de violência contra crianças e
adolescentes no Disque 100, que recebe denúncias de violações aos direitos
humanos.
"Os registros de violência contra
crianças caíram 18% em março em relação ao mesmo mês do ano anterior. Como a
gente sabe que 90% das violências contra a criança acontecem no ambiente
doméstico, o que está acontecendo é uma grande subnotificação. Os atores
sociais que fazem a denúncia não estão fazendo, porque são justamente os
professores, educadores e profissionais de saúde. É gravíssima a
situação", afirma ele, que acredita que as crianças serão as maiores
vítimas indiretas da pandemia no médio e longo prazo. "A criança está
sofrendo sozinha em casa. O abusador está lá, e ela não tem a quem
recorrer."
A secretaria fez campanhas
publicitárias estimulando a denúncia de abusos contra a criança e o adolescente
e planeja distribuir um material para alertar escolas sobre o acolhimento das
crianças no pós-pandemia. "Que a preocupação seja mais de acolhimento, de
escuta e criar um ambiente de confiança do que de recuperar conteúdo
perdido", diz Cunha.
Maioridade
penal e encarceramento
Diretora do Centro Internacional de
Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Irene Rizzini participou das discussões que geraram
o Artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Apesar dos avanços conquistados, a socióloga pondera que nenhuma lei é capaz de
corrigir problemas sociais crônicos. "Não é o estatuto que vai corrigir a
desigualdade social. Mas ele é uma lei que, com as várias que vieram depois e
com as políticas públicas criadas a partir do seu referencial, proporcionou uma
mudança positiva em inúmeros aspectos."
A pesquisadora considera como ameaças
a essa população iniciativas como reduzir a maioridade penal e aumentar o
encarceramento de crianças e adolescentes. "É extremamente grave que se
reduza o problema a encarcerar adolescentes. No Brasil, os adolescentes e
jovens são as principais vítimas de homicídios."
A socióloga alerta que haverá
retrocessos se as crianças e adolescentes não ocuparem uma posição de
prioridade no orçamento público. Irene Rizzini afirma que cortes em áreas como
a saúde, a educação e a assistência podem reverter ganhos em indicadores como
mortalidade infantil, analfabetismo e desnutrição.
Ela também defende o fortalecimento de
espaços para participação da sociedade civil, como o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que teve a composição reduzida
de 56 para 36 membros por decreto presidencial no ano passado, mudança suspensa
pelo Supremo Tribunal Federal. Em nota divulgada na época, o Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos explicou que a medida visava a
reduzir gastos com passagens e diárias dos conselheiros.
Diante de desafios históricos, como a
desigualdade, e contemporâneos, como questões ligadas à internet, Irene
acredita que as premissas do ECA continuam a apontar o caminho a seguir.
"A criança e o adolescentes são sujeitos de direito e têm proteção
integral. Essa semente não tem volta. Essa semente fica." (Ag. Brasil)
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