"Nesses poucos dias que eu estou aqui, a impressão que eu tenho é que a gente precisa ser muito mais eficiente do que a gente é hoje. A gente está falando de logística, de compra, de distribuição, e ele é uma pessoa muito experiente nisso, vem trazer uma contribuição no momento que a gente corre contra o tempo."
Foi assim que o então ministro da Saúde, Nelson Teich, anunciou em abril
o novo secretário-executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, quando este
assumiu a vaga deixada por João Gabbardo.
Oito meses depois, o "especialista em logística" é agora
ministro da Saúde e as primeiras vacinas contra a covid-19 começam a ser
aplicadas em alguns países.
No Brasil, o programa de imunização divulgado
no fim de semana pelo governo e reapresentado nesta quarta-feira (16/12) tem
uma série de lacunas.
Não há um cronograma concreto de vacinação — segundo Pazuello, porque nenhuma
vacina foi aprovada ainda pela Anvisa — e, até o momento, a previsão é de
cobertura de 25% da população do país, cerca de 50 milhões de brasileiros,
incluídos na primeira fase.
Há também um temor de que possam faltar insumos como agulhas e seringas
— o processo de licitação para compra desses materiais foi aberto apenas nesta
quarta.
Mundo afora, dezenas de países vinham há meses se preparando para o
momento em que as vacinas fossem de fato aprovadas. Alguns deles, inclusive,
contam com a experiência dos militares na área de logística para planejar a
distribuição — é o caso de Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Suíça, entre
outros.
Soldados também ajudam a rastrear contatos e realizar testes
Nos EUA, o chefe de operações da força-tarefa lançada em maio para
desenvolver, produzir e distribuir a vacina — a Operação Warp Speed — é um
general: Gustave Perna.
O diretor de Suprimentos, Produção e Distribuição, por sua vez, é um
tenente-general aposentado, Paul Ostrowski.
Os militares têm trabalhado nos bastidores, a partir das diretrizes
apontadas pelas autoridades de saúde, especialmente na aquisição de insumos —
agulhas, seringas, swabs, curativos, gelo seco — e no planejamento da distribuição,
conforme detalhou o vice-chefe de gabinete para políticas do departamento de
Saúde e Serviços Humanos, Paulo Mango, em uma teleconferência em outubro.
"Nós temos os maiores especialistas em logística no Departamento de
Defesa trabalhando em conjunto com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de
Doenças) para dar as diretrizes de todo detalhe logístico que você possa
imaginar", disse, conforme noticiado
pela pasta.
Os EUA, país com maior número de mortos por covid-19 no mundo, começaram a
vacinar sua população nesta semana.
Na Alemanha, os militares estão envolvidos na força-tarefa para tentar
conter a pandemia desde o início e, de acordo com o governo, também devem
participar do planejamento do programa de vacinação, que começa no próximo dia
27 de dezembro.
Hoje, cerca de 6 mil soldados têm auxiliado em tarefas administrativas,
trabalhado no rastreamento de contatos, realizado testes diagnósticos em
aeroportos.
Em Portugal, militares também têm sido usados para reforçar o
rastreamento de contatos — uma das estratégias apontadas pela OMS (Organização
Mundial de Saúde) como fundamentais para desacelerar a curva de infecção.
Como a covid-19 é transmissível mesmo por aqueles que não apresentam
sintomas — ou seja, quem nem sabe que está doente pode estar contaminando
outras pessoas —, uma política de testagem em massa e rastreamento dos casos
positivos, para que estes sejam isolados, é fundamental para dificultar a
disseminação do novo coronavírus.
Conforme o plano divulgado pelo governo português no dia 4 de dezembro,
as Forças Armadas também auxiliarão no desenvolvimento da operação logística
que distribuirá as vacinas.
Militares brasileiros
Os militares brasileiros também têm sido usados nas ações do governo de
combate à pandemia. Segundo um balanço divulgado em junho pelo ministro da
Defesa, Fernando Azevedo, a atuação teve início com a operação que repatriou em
fevereiro os brasileiros de Wuhan, na China.
Segundo ele, até o meio do ano haviam sido mobilizados 34 mil homens e
mulheres das Forças Armadas em ações que envolveram a entrega de material e de
cestas de mantimentos em áreas remotas, transporte de insumos, campanhas de
conscientização e desinfecção de locais públicos.
Ainda conforme o balanço, a Operação Covid-19 conta com um centro de
operações conjuntas para coordenar e planejar o emprego das Forças Armadas no
combate à pandemia.
O uso dos militares, entretanto, não impediu que o país chegasse à
posição de segundo país com maior número de mortes, superior a 182 mil.
Na solenidade em que divulgou o programa, na quarta, o ministro Pazuello
pediu que os brasileiros não se preocupassem com a questão logística.
"A logística é simples. Apesar de o nosso país ser deste tamanho,
temos estrutura, temos companhias aéreas, Força Aérea Brasileira, temos toda a
estrutura já planejada e pronta."
O professor Hani Mahmassani, diretor do Transportation Center da
Northwestern University, pondera, contudo, que a vacinação contra a covid-19 é
um grande desafio logístico em todo o planeta.
"Ao contrário de outros episódios, em que houve desenvolvimento da
vacina primeiro e sua administração depois, desta vez tudo acontece ao mesmo
tempo, as etapas se sobrepõem", destaca.
Além disso, acrescenta, alguns imunizantes requerem condições especiais
de armazenamento. A vacina da Pfizer, por exemplo, são conservadas a 70ºC
negativos, o que requer um planejamento minucioso de seu transporte e estoque.
"Gelo seco virou uma commodity valorizada", brinca.
No caso específico dos EUA, que não conta com um sistema público de
saúde como o Brasil, uma parte do processo está sob responsabilidade dos
Estados e municípios, que estão usando de hospitais e farmácias a centros
comunitários e tendas improvisadas como locais de vacinação.
A distribuição pelo país, também de proporções continentais, está sendo
feita em parceria com empresas como UPS e Fedex.
Para o especialista em logística, um bom indicador de como o programa de
imunização vai se desenrolar é a forma como o país lidou com a questão dos
testes diagnósticos ou mesmo os equipamentos de proteção individual.
No início, eles eram escassos em todo o planeta. À medida que o tempo
foi passando, alguns países conseguiram encontrar caminhos para solucionar
esses gargalos.
É o caso dos EUA, diz ele. A restrição na capacidade de processamento
dos testes, contudo, segue sendo um problema e mantém o ritmo de novos
diagnósticos aquém do desejável.
No Brasil, que segue testando menos que o recomendável pela OMS,
soube-se em novembro que 6,8 milhões de testes diagnósticos para covid-19 com
vencimento em dezembro não haviam sido distribuídos, estavam estocados no
Ministério da Saúde. Alguns dias depois, a Anvisa estendeu por quatro meses o
prazo de validade.
'Seleção de craques sem técnico'
O médico sanitarista Adriano Massuda, professor da FGV-Saúde, um centro
de estudos em planejamento e gestão de saúde, acrescenta ainda como um
precedente negativo a ineficiência do governo federal na centralização da
compra de produtos essenciais, como respiradores.
"O Brasil tem um poder de compra enorme (a nível federal), que não
foi usado."
Como resultado, muitos Estados e municípios tentaram negociar por conta
própria, alguns ensaiando consórcios regionais, como no caso do Nordeste.
"Isso provoca inflação a nível local, municípios competindo entre
si", acrescenta.
Uma das razões para os problemas de gestão no Ministério da Saúde, em
sua avaliação, é o processo de "militarização" pelo qual a pasta vem
passando, com a substituição de quadros técnicos por militares sem experiência
no planejamento ou execução de políticas públicas de saúde.
"Isso tem afetado vários programas, inclusive o Programa Nacional
de Imunização. Os programas estão perdendo capacidade operacional", diz
ele, relembrando o caso recente envolvendo testes para diagnóstico de HIV.
O Ministério da Saúde deixou vencer o contrato da empresa que realizava
exames de genotipagem no SUS, usados em diagnósticos de HIV e hepatites virais,
e os procedimentos na rede pública foram suspensos, com expectativa de retomada
em janeiro, após conclusão da nova licitação.
Massuda, que foi secretário-executivo substituto no Ministério da Saúde
entre 2011 e 2012 e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em
2015, ressalta que os militares foram usados recorrentemente no passado em
campanhas de imunização no país, mas como um "braço operacional",
atendendo áreas de difícil acesso, por exemplo.
Agora, assumiram a coordenação, sem, entretanto, terem dimensão da
complexidade do sistema de saúde. A logística à qual estão habituados, ele
acrescenta, é bem diferente.
O especialista lembra que o Brasil tem a vantagem de ter um sistema de
saúde descentralizado, no nível dos municípios, que permitiu uma "enorme
capilarização da infraestrutura assistencial" e abriu espaço para o país
atingisse uma ampla cobertura vacinal, uma das maiores do mundo.
"A gente tem uma infraestrutura que já deveria ter sido utilizada
para ações preventivas (para evitar o aumento exponencial de casos)",
afirma.
"São 260 mil agentes comunitários de saúde, mais de 40 mil equipes
de saúde da família. É como se fosse uma seleção com os melhores craques, mas
com técnicos que não sabem organizar o time", compara.
Para além do desafio logístico, há uma última — porém imprescindível —
etapa em que a atuação do ministério também deixa a desejar: convencer as
pessoas da importância da vacina. Nesse caso, diz ele, o governo erra ao dar
ênfase a supostos tratamentos precoces sem evidência científica de eficácia; ao
não passar uma mensagem clara à população sobre a imunização.
Um governo de militares
O antropólogo Piero Leirner, que estuda os militares desde os anos 1990, concorda que a logística dos quartéis é bastante diferente daquela necessária para coordenar um sistema de saúde.
Durante a formação, de maneira geral, os militares brasileiros aprendem sobre a logística aplicada a fins militares, "voltada para ideia do que deveria ser a proteção do território", por exemplo.
Para ele, parte da resposta ineficiente do governo à pandemia se deve também à crença entre a alta cúpula do Exército de que o uso da cloroquina seria de fato um caminho para a solução.
"Eles estavam apostando as fichas nisso, tanto que o Exército começou a produzir cloroquina em massa", diz o professor UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor de O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida, lançado em setembro, que analisa a relação dos militares com a política nos últimos anos.
O pesquisador chama atenção ainda para o fato de que a "militarização" do ministério da Saúde não é um caso isolado no governo. Conforme o TCU (Tribunal de Contas da União), o total de militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo dobrou na gestão Bolsonaro — até julho, eram mais de 6 mil, segundo a instituição.
Segundo Leirner, os militares aos poucos ganham "controle das informações do Estado e dos orçamentos", e o fazem por meio de uma "abordagem indireta", que tenta preservar a imagem das Forças Armadas e poupá-las de críticas. (BBC)
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