Antonio Batista é um engenheiro de 67 anos. Há 22, ele faz plantões entre as 3h e as 7h no Centro de Valorização da Vida (CVV) em São Paulo. O horário é disputado.
"Nunca foi tão importante falar sobre suicídio", diz Batista à BBC News Brasil por telefone, em referência aos impactos da pandemia do novo coronavírus na saúde mental das pessoas.
Segundo o
voluntário, estudos apontam que cerca de 35 milhões de brasileiros em algum
momento da vida pensarão no assunto, por diversos motivos. Com o novo
coronavírus, ele conta, o perfil destes homens e mulheres ganha novos
contornos.
A voz de
Batista é tranquila, amigável e todo tempo ressalta a importância de atos
simples. Escutar. Falar. Entender.
A entrevista que duraria 15 minutos acaba se estendendo por mais de
uma hora. O papo flui com serenidade.
"Pensar em suicídio faz parte da vida. Agora, pensar em suicídio
não significa necessariamente pensar em morte", ele diz, tranquilizando
aqueles que se veem em situação de desespero. "É pensar que às vezes a
vida está muito difícil. E, então, não ver sentido na vida."
Aí entra o poder muitas vezes subestimado do diálogo sem julgamentos.
"Quando você consegue desabafar em um ambiente de compreensão, de
acolhimento, sem crítica, sem julgar, sem condenar, muito menos desvalorizar o
que a pessoa está fazendo, ela se alivia. Ela tem um olhar para o seu interior
e pode ver seus recursos para lidar com situações que não são nada fáceis. O
voluntário atende a todas as ligações com a maior importância. A pessoa que nos
procura é a protagonista. Nós não avaliamos o tamanho da dor. Uma história que
pode parecer simples para alguém para aquela pessoa é de suma
importância."
Desde meados de março do ano passado, quando a pandemia foi declarada
pela Organização Mundial da Saúde, "o assunto está presente em grande
parte desses contatos", conta o voluntário do CVV.
Fundada em 1962 e que hoje tem 4,2 mil voluntários atendendo a mais de
3,5 milhões de contatos por ano - entre chamadas telefônicas pelo número 188
(ligação gratuita para telefones fixos e celulares), chats (pelo site https://www.cvv.org.br/) e e-mail (https://www.cvv.org.br/e-mail/).
À reportagem Batista descreve a matéria-prima de seu trabalho.
"Conversar é saber ouvir e poder falar. Ouvir é estar atento. Nunca foi
tão importante saber ouvir e se aproximar de quem está sofrendo. Entender que
as pessoas estão sofrendo."
Da ansiedade pelo fim da pandemia que não chega aos novos conflitos
domésticos que o coronavírus trouxe, Batista relata como as mudanças de comportamento
impostas pela doença se refletem nos chamados ao CVV em diferentes temas.
Confira a seguir os principais:
Hiperconvivência em casa
Em maior ou menor grau, famílias em todo o mundo estão passando muito
mais tempo juntas em tempos de coronavírus.
"A convivência nos lares (mudou): nas famílias saíam a esposa e o
marido para trabalhar, o filho ou a filha, para estudar, e de repente eles
estão convivendo agora muito mais próximos. E os sentimentos ficam muito mais
presentes", diz Batista.
Assim, a interação que antes se restringia às manhãs e noites, em
muitos casos, passa a ocupar todo, ou quase todo, o dia. Muitas vezes em lares
pequenos, apertados, sem opção de "fuga".
"Assim começam a surgir tensões."
Se isso afeta você ou pessoas próximas, aponta o especialista, tente
não se preocupar: nada mais comum.
"É preciso que haja um rearranjo de tarefas e funções, que antes
eram mais ou menos estruturadas e agora precisam ser rediscutidas", diz
Batista.
Por exemplo, quem faz a comida. Quem lava a louça. Quem cuida dos mais
novos ou dos pets. Quem faz faxina. "No caso das mulheres, além das vezes
do trabalho profissional, elas muitas vezes têm também o trabalho da casa. Isso
se acumula. É preciso negociar uma nova redistribuição de tarefas."
O caminho é conversar sobre o tema com a família em busca de um
arranjo que seja mais confortável para todos. Ou falar com alguém de confiança:
parentes, amigos, profissionais de saúde ou voluntários do CVV.
Você não precisa esperar a situação se complicar ou estar pensando em
suicídio ou para buscar ajuda.
O luto incompleto
A covid-19 se espalhou pelo mundo e já matou quase 2 milhões de
pessoas.
Em média, cerca de 5.000 pessoas morreram por dia, 35 mil por semana e
150 mil por mês.
O Brasil foi um dos países mais atingidos. A primeira morte foi
registrada em São Paulo no dia 12 de março. Desde então, mais de 200 mil
pessoas morreram.
O total de mortos só é menor do que o dos Estados Unidos, com 375 mil
óbitos.
A presença da morte mudou — e a forma como nos relacionamos com ela
também.
"O luto também mudou", diz Batista. "Pessoas que
perderam pessoas e comparecem aos enterros, que agora são limitados. Assim, as
pessoas não conseguem oferecer apoio de forma presente e de alguma forma não se
despedem (como antes) da pessoa que perderam."
Segundo o voluntário do Centro de Valorização da Vida, "o luto
hoje acontece de forma diferente".
"Parece que falta a despedida", diz. "É uma despedida
que você tem sem ver. Ela acontece pela notícia que você recebe, mas muitas
vezes você não pode estar junto oferecendo o seu apoio."
"São formas diferentes de luto e nós precisamos nos
adaptar."
Falta de separação entre profissional e doméstico
O sonho do "home-office", ou trabalho de casa, se tornou, na
prática, um pesadelo para muitos.
A mesa de jantar vira escritório, a cadeira é desconfortável, o
vizinho (ou o quarto ao lado) é barulhento, as contas ficaram mais caras, as
refeições acontecem em meio a computadores e documentos.
"Às vezes, a pessoa está realizando seu trabalho profissional em
sua casa e de repente acontece uma invasão com um assunto familiar",
exemplifica Batista.
Essas experiências vão se acumulando e podem chegar ao ponto de gerar
sofrimento real entre familiares.
Ele recomenda cuidado.
"É preciso cuidar para que os horários estejam organizados para
que se possa ter foco profissional, ou nos afazeres domésticos."
Muitas vezes as coisas se "atropelam" e as pessoas não
pensam com clareza no impacto dessa falta de limites claros.
Mais uma vez, a sugestão é conversar — seja entre familiares ou com
chefes e colegas de trabalho.
"Quando se está em família, é negociar de forma aberta. Para os
pais, se aproximar dos filhos e negociar com eles. Perguntar como está sendo
esse momento, como podem, juntos, criar um ambiente onde todos se sintam
valorizados. A conversa de forma compreensiva, estabelecendo acordos, horários,
limites, pode fazer a diferença", diz o voluntário.
"É preciso encontrar equilíbrio."
Falta de privacidade e saudade da vida lá fora
Transversal aos itens anteriores, a falta de privacidade é um dos
temas recorrentes nas chamadas que Antônio Batista atende no CVV.
"O jovem, que estava acostumado a ter sua privacidade em alguns
momentos, vê que isso alguma forma mudou. Ele tinha as atividades dele na
escola, e agora a escola está dentro de casa. Os contatos são virtuais. Então,
é como se não tivesse um tempo para recarregar, para fazer novos contatos, para
que a proximidade (com outras pessoas) ocupe um lugar adequado", diz o
voluntário.
Ele diz que a redução da privacidade, "que é tão importante para
o amadurecimento de cada um", é uma das principais fontes de tensões.
A melhor resposta, nesse caso, é o respeito.
"É preciso estar atento e também respeitar a privacidade de
filhos, dos cônjuges e , às vezes, até a privacidade com relação ao trabalho. E
isso não é tão fácil, já que em algumas famílias se convive durante todo o
período em que se está acordado, o dia todo", ele lembra.
Batista aponta que, a partir de sua experiência, "essa alteração
de privacidade causa conflitos e inseguranças".
"Desabafar em um ambiente de calor humano, de contenção, é como
se fosse um antídoto", diz Batista. "A pessoa 'esvazia', organiza
seus sentimentos, seus pensamentos, e pode procurar caminhos. Às vezes a pessoa
está tão fechada no seu mundo que não sabe da importância de pedir ajuda a
outras pessoas."
Ansiedade
Quando as primeiras notícias sobre o novo vírus chegaram, muitos
pessimistas lamentaram que a "vida mudaria nos próximos meses".
Mais de um ano depois, mesmo com o desenvolvimento promissor de
vacinas, a pandemia está longe de um desfecho e o que se entendia como
"vida normal" não deve voltar a acontecer tão cedo, segundo
especialistas.
"Depois de tomar a vacina, é preciso voltar para casa, manter o
isolamento social, aguardar a segunda dose e depois esperar pelo menos 15 dias
para que a vacina atinja o nível de eficácia esperado", explicou há
algumas semanas a bióloga Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de
Ciência, em entrevista à BBC News Brasil.
"E mesmo depois, é preciso esperar que boa parte da população já
tenha sido imunizada para a vida voltar ao normal."
Além disso, imunizar a maioria dos 7,8 bilhões de habitantes do mundo
será uma tarefa imensa. Nada nesta escala foi tentado antes.
As vacinas e seus equipamentos — como os frascos para transportá-las —
precisam ser fabricados em grandes quantidades. O fornecimento de vacinas pode
não ser suficiente para atender a demanda por algum tempo.
"Está demorando muito para passar. Parece que no início havia uma
expectativa de que duraria alguns meses, mas não está passando. E as pessoas
começam a ficar irritadas", conta o voluntário.
"O jovem, por exemplo, está mais presente no chat e no email (em
comparação ao telefone). Ele se sente mais à vontade — quem tem 14, 15, 16, 20
anos. E eles falam sem esperança de vida. Tem um bom percentual que toca no
tema que a vida não tem sentido, toca no tema suicídio como uma coisa presente,
como se não vissem uma possibilidade de perspectiva", diz.
"É um sinal de desesperança. E, às vezes, o jovem fala das
dificuldades com a família e da própria agressividade interna com a qual eles
passam a conviver, às vezes por discussões com os pais. Quando iam para a
escola, eles tinham um fator atenuante. Eles sentem falta de retornar à escola,
de ter contato com seus pares, e com professores. No chat e no email, essa
linguagem é bem explícita", diz o profissional.
"É preciso falar de uma forma que valoriza a pessoa, não ter
receio de se aproximar e conversar com ela: "Olha a vida está tão difícil,
você já pensou em suicídio?". Mas no sentido de reconhecer que é uma
pessoa que está sofrendo e que às vezes não sabe que pode pedir ajuda. Para que
ela possa elaborar e falar. Isso pode fazer a diferença na vida dessas pessoas."
Economia
Já entre adultos, conversas sobre temas ligados à economia têm sido
frequentes no último ano.
"Não só o desemprego, mas também a perda de negócios", diz
Batista.
Ele dá exemplos. "Pessoas que estavam em um crescente, que
investiram e de repente têm que fechar. Ou, às vezes, sofrem por como se
relacionar com empregados e ter que dispensar empregados. Ou o sacrifício de
manter os empregados. A incerteza."
Até o fim do ano, o Ministério da Economia calculava que o impacto de
medidas econômicas adotadas na pandemia equivale a 8,6% do PIB (Produto Interno
Bruto), a soma dos bens e serviços produzidos neste ano.
Um baque recente e rumoroso aconteceu na segunda-feira (11/1), quando
a Ford anunciou que fechará suas três fábricas no país — em Camaçari (BA),
Taubaté (SP) e Horizonte (CE). Como resultado, quase 5.000 trabalhadores da
Ford perderão o emprego. Mas, segundo cálculos de governos locais, com as
empresas agregadas, que prestam serviços para a Ford, serão mais cerca de 7.000
empregos afetados: 12 mil sem empregos no total, fora o impacto no comércio que
girava em torno da empresa.
A ansiedade que o momento gera pode ser amenizada com uma simples
conversa, sugere o voluntário do CVV
"A gente não para dois minutos para falar sobre o trabalho. Abrir
um diálogo de um dois minutos sem interferir, e se mostrar interessado em como
a pessoa está naquele momento. É como regar uma planta — cada contato de bom
dia, uma conversa, é como um antídoto para a semente crescer, e ir
florindo."
Silêncio
Além de todos os temas anteriores, boa parte dos chamados recebidos
pelo voluntário não têm tema claro. São silenciosos.
"O CVV não tem trote. Muitas vezes, a forma de a pessoa se
comunicar é com uma brincadeira. E muitas pessoas ligam e ficam em silêncio."
Ele explica. "Nós entendemos que o silêncio é uma forma de
comunicação. E, nesse silêncio, eu preciso me fazer presente e compreender,
porque em silencio (o interlocutor) está dizendo algo: que mesmo ligando, ela
não consegue ainda falar sobre a dor ou o que motivou a ligar."
"Essas ligações silenciosas são um desafio porque eu preciso me
fazer presente e ao mesmo tempo respeitar o tempo da pessoa, que não consegue
nem se expressar."
É preciso ficar atento aos sinais, conta o experiente voluntário.
"Às vezes é uma respiração ofegante, às vezes se balbucia algumas
palavras não claras, às vezes vem o choro. O silêncio comunica algo — eu
liguei, tenho algo para falar e não consigo falar."
Ele conta que o caminho nessas horas é se mostrar presente e respeitar
o tempo do interlocutor.
"A gente não consegue puxar, a gente consegue acolher. Porque se
você puxa, a pessoa se fecha, desliga, vai embora. É como se eu não respeitasse
o tempo dela e todos nós para elaborar alguma coisa precisamos de um
tempo", ele diz.
"Eu me mantenho presente e disponível."
(BBC)
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