Durante a Peste Negra que assolou a Europa no
século 14, os médicos recorreram aos mais diversos "tratamentos" para
lidar com as doenças. Alguns apostaram numa técnica de esfregar cebolas ou
carne de cobra nos furúnculos que apareciam na pele. Outros sugeriam que os
pacientes sentassem perto de fogueiras ou de fezes para expulsar a doença do
corpo.
Mais recentemente, quando a gripe espanhola de 1918 se espalhou pelos continentes, também não faltaram terapias milagrosas para lidar com a crise sanitária. Alguns especialistas lançaram fórmulas à base de formol, canela e até flores de jasmim amarelo para "curar" a doença que matou milhões de pessoas no mundo todo.
O mesmo cenário volta a se repetir agora, durante a
pandemia de covid-19. Em meio a um número crescente de casos e mortes, parte
dos médicos, parte da população e até o Ministério da Saúde defenderam um
suposto tratamento precoce contra o coronavírus cuja eficácia não foi
comprovada até o momento.
Segundo diversos estudos rigorosos realizados ao
redor do mundo, medicamentos que integram esse "kit covid" ofertado
nas fases iniciais da doença no Brasil já se mostraram inclusive ineficazes ou
até mais prejudiciais do que benéficos quando administrados nos quadros leves,
moderados e graves de covid-19.
Ao longo dos últimos meses, diversas entidades
nacionais e internacionais se posicionaram contra o coquetel de medicamentos
promovido pelo governo Bolsonaro, que inclui a hidroxicloroquina, a
azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e
das vitaminas C e D.
Atualmente, esse mix farmacológico não é
reconhecido ou chega a ser contra-indicado por entidades como a Organização
Mundial da Saúde (OMS), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados
Unidos e da Europa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a
Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Mas antes de entrar nos detalhes sobre como tantas
instituições chegaram a essa conclusão de que esses remédios não são eficazes e
de que não existe tratamento precoce que funcione contra a covid-19, é
importante explicar como surge um novo remédio contra determinada doença e como
esse processo pode ser acelerado durante uma pandemia.
Da bancada do laboratório à prateleira da farmácia
Geralmente, a descoberta de um novo tratamento se
inicia com a pesquisa básica. Um grupo de cientistas começa a estudar uma
molécula para entender suas características e seus potenciais de uso.
Essa substância, então, é testada num pequeno
conjunto de células na bancada do laboratório. O objetivo aqui é entender se as
coisas funcionam como o esperado e se aquele composto tem alguma ação
interessante dentro de um sistema biológico simples.
Se tudo der certo, a próxima etapa inclui testes
com cobaias. A nova molécula é administrada em camundongos, macacos e outros
animais que apresentam algumas características semelhantes ao que ocorre no
corpo humano.
Caso a candidata apresente bons resultados, ela
passa para a nova etapa: os testes clínicos. Esses estudos são divididos em
três fases, envolvem centenas ou até milhares de seres humanos e têm como
objetivo final garantir a segurança e a eficácia daquela nova formulação.
O teste clínico de fase 3 costuma ser o mais rígido
e amplo de todos. Para comprovar que aquele novo medicamento é realmente bom,
os cientistas dividem os voluntários em pelo menos dois grupos.
O primeiro deles toma doses do remédio de verdade.
Já o segundo vai receber uma substância placebo (sem nenhum efeito no
organismo) ou o melhor tratamento existente até aquele momento contra a doença
que o novo candidato a fármaco promete combater.
O ideal é que nem os cientistas, muito menos os
participantes do estudo, saibam quem integra qual grupo. Isso evita vieses ou o
chamado efeito placebo, quando a pessoa se sente melhor por acreditar que foi
tratada, mesmo quando recebeu um comprimido de farinha.
O que acabamos de descrever aqui é um estudo
randomizado (os voluntários são sorteados para entrar em um esquema terapêutico
ou no outro), duplo cego (os participantes e os cientistas não fazem ideia de
quem recebeu o quê) e controlado (uma parte do grupo tomou placebo ou a melhor
terapia disponível até então). É considerado o padrão-ouro das pesquisas.
Depois de todo esse rito, os resultados dos dois grupos são comparados. O esperado é que a turma sorteada para tomar o candidato à medicamento esteja melhor em relação a quem fez parte do grupo placebo. Também é essencial que a nova molécula não provoque efeitos colaterais graves demais.
Os relatos de todo esse esforço são então
publicados num jornal científico, onde eles passam por uma revisão de
especialistas independentes e, caso sejam aprovados, poderão ser lidos,
contestados e repetidos por outros grupos de pesquisa em qualquer lugar do
mundo.
Se os resultados forem bons, os donos daquele novo
produto entram com um pedido de aprovação nas agências regulatórias, como a
Anvisa no Brasil e o FDA nos Estados Unidos. Se essas entidades estiverem de
acordo com o que foi apresentado, elas liberam o uso do novo medicamento no
país.
Para você ter ideia como esse processo é complicado
e criterioso, de cada 5.000 moléculas testadas em células e cobaias, apenas uma
consegue passar por todas as etapas e chegar às farmácias e aos hospitais. Esse
processo dura, em geral, 12 anos e exige um investimento de US$ 2,6 bilhões.
Dá pra acelerar esse processo?
É claro que, durante uma pandemia que ceifa
milhares de vidas todos os dias, torna-se impraticável esperar mais de uma
década para encontrar uma solução.
Uma estratégia que permite agilizar as coisas é o
chamado reposicionamento de fármacos. Em resumo, os cientistas começam a
avaliar um monte de remédios já disponíveis para tratar outras doenças. Quem
sabe eles também não podem ajudar num contexto diferente?
"É possível pegar vários medicamentos
aprovados e utilizar uma plataforma automatizada para fazer testes com culturas
de células. Assim já se descartam aquelas que não mostraram efeito algum e se
delimita um grupo de moléculas que apresentam algum potencial", explica o
microbiologista Luiz Almeida, coordenador de projetos educacionais do Instituto
Questão de Ciência.
Esse processo funciona como uma peneira: o objetivo
é descartar o material que não tem serventia e selecionar, mesmo que
grosseiramente, aqueles que podem ajudar de alguma maneira.
O reposicionamento traz algumas vantagens. O
principal deles é o fato de trabalhar com produtos que já estão aprovados pelas
agências regulatórias e, portanto, já se mostraram relativamente seguros à
saúde humana.
Importante mencionar que, para comprovar o seu
valor diante de qualquer enfermidade, os remédios (mesmo os reposicionados)
precisam passar por aqueles estudos randomizados, duplo cegos e controlados que
explicamos um pouco acima.
E isso tudo aconteceu com intensidade a partir de
fevereiro e março de 2020: quando diversos especialistas notaram a gravidade da
covid-19, houve uma verdadeira corrida para conferir se algum produto
farmacêutico já aprovado poderia servir como solução.
Foi assim que hidroxicloroquina, azitromicina,
ivermectina e tantas outras candidatas entraram na história da pandemia de
covid-19.
Hidroxicloroquina, uma droga apadrinhada por Trump
e Bolsonaro
O potencial da hidroxicloroquina contra a covid-19
começou a ser explorado a partir de um pequeno trabalho publicado na China. Mas
ela só ganhou as manchetes com a publicação de um estudo feito pelo médico
francês Didier Raoult e por sua equipe.
Divulgada em março de 2020, a pesquisa envolvia 36
pacientes e afirmava que o remédio, usado no tratamento de doenças como
malária, lúpus e artrite reumatoide, era capaz de diminuir a carga de
coronavírus no organismo.
E mais: de acordo com as conclusões do experimento,
esses benefícios eram ainda maiores se a azitromicina (um antibiótico) fosse
administrada em conjunto.
Apesar da esperança inicial, os cientistas
rapidamente começaram a notar que havia algo muito estranho nessa história.
"A publicação do artigo foi muito criticada, pois estava cheia de erros
metodológicos e coisas sem explicação", relembra o médico Jose
Gallucci-Neto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São
Paulo.
Em setembro, Raoult foi denunciado pela Sociedade
de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF) por "promoção indevida
de medicamento". Agora em janeiro, o médico admitiu numa carta ter
excluído alguns voluntários do resultado da pesquisa.
"Ao avaliar esses dados completos, com esses
participantes que ficaram de fora do artigo original, o resultado da
hidroxicloroquina é negativo e não houve redução de mortalidade, necessidade de
UTI ou oxigenação", completa Gallucci-Neto.
Mesmo com essas suspeitas iniciais e as correções posteriores,
o estrago já estava feito. Ainda no primeiro semestre de 2020, o então
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bancou a ideia de Raoult. O então
presidente escreveu que a hidroxicloroquina "deveria ser colocada em uso
imediatamente, pois pessoas estão morrendo".
As convicções de Trump encontraram ressonância em
outro ponto do continente americano, mais especificamente no Brasil. O
presidente Jair Bolsonaro também fez ampla defesa do uso da hidroxicloroquina
contra a covid-19.
No dia 21 de março, ele publicou um vídeo no Twitter
intitulado "Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com o
covid-19", em que anuncia que o laboratório químico e farmacêutico do
Exército Brasileiro iria ampliar a fabricação desse medicamento.
Ao longo dos meses, não faltaram demonstrações de
apoio à hidroxicloroquina. Bolsonaro levou o fármaco a tiracolo em diversos
vídeos e transmissões ao vivo.
A hidroxicloroquina também foi um dos motivos
centrais da queda de dois ministros da Saúde. Os médicos Luiz Henrique Mandetta
(que dirigiu o ministério entre 1º de janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020) e
Nelson Teich (que liderou a pasta de 17 de abril a 15 de maio de 2020) saíram
após pressões e discordâncias sobre o uso amplo desse medicamento para combater
a pandemia no país.
Mas o que diz a ciência sobre a
hidroxicloroquina?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem
que era até compreensível usar a hidroxicloroquina nos momentos iniciais da
pandemia, em meados de março, abril e maio de 2020 — afinal, os médicos estavam
tateando no escuro e lidavam com uma doença sobre a qual não havia experiência
nenhuma.
A partir de junho e julho, porém, começaram a ser
publicados estudos mais robustos a respeito do tema. Eles mostravam que esse
remédio realmente não funcionava em qualquer estágio da doença, seja antes do
início dos sintomas, seja no leito de uma UTI.
"Atualmente, temos uma enorme quantidade de
evidências mostrando que a hidroxicloroquina não é efetiva como tratamento da
doença nos quadros graves, nos leves ou como profilaxia, para impedir que o
vírus invada nossas células", afirma a pneumologista brasileira Letícia
Kawano-Dourado, que faz parte do painel da Organização Mundial da Saúde (OMS)
que desenvolve diretrizes de tratamento contra a covid-19.
Nos últimos meses, vários estudos foram publicados
a respeito do tema. Um dos mais importante deles foi feito no Reino Unido e é
conhecido como Recovery Trial. Numa
análise de mais de 4.500 pacientes hospitalizados, o uso de hidroxicloroquina e
azitromicina não trouxe benefício algum.
O mesmo resultado foi observado na pesquisa da Coalizão Covid-19
Brasil, com cerca de 500 voluntários brasileiros com a infecção pelo
coronavírus em estágios leves ou moderados. Mais uma vez, a dupla de fármacos
não mostrou o efeito desejado.
Além disso, os tratamentos testados foram
associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do
chamado intervalo QT, um sinal de maior risco para arritmia detectado por
eletrocardiograma; e aumento de enzimas TGO/TGP no sangue, alteração que pode
indicar lesão no fígado.
Segundo documento da Sociedade Brasileira de Infectologia,
outros efeitos adversos são retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade
cardíaca. Por isso, é "exigido contínuo monitoramento médico dos
indivíduos em uso da cloroquina ou hidroxicloroquina". E outros efeitos
colaterais possíveis são diarreia, náusea, mudanças de humor e feridas na pele.
Numa nota informativa publicada em seu
site, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) também orienta
sobre ineficácia do uso desse esquema terapêutico:
"As evidências disponíveis sobre benefícios do
uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das
pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas
sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências
científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses
medicamentos, a Opas recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de
estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis."
Kawano-Dourado conta que o uso do fármaco contra o
coronavírus é um assunto superado na maioria dos lugares. "A
hidroxicloroquina e outras representantes do tratamento precoce seguem em pauta
apenas em alguns países subdesenvolvidos, como Brasil, Índia, Costa do Marfim e
Filipinas."
Ivermectina, o antiparasitário que virou a bola da
vez
A partir do segundo semestre, a ivermectina passou
a disputar espaço como outra promessa contra a covid-19. Tudo começou a partir
de um estudo experimental com células, em que esse remédio usado contra
infestações de vermes, parasitas e ácaros mostrou ter poder de fogo contra o
coronavírus.
O problema, mais uma vez, estava em sua origem. A
dose utilizada neste trabalho inicial era absolutamente irreal. Alguns cálculos
posteriores mostraram que, para obter o mesmo efeito visto na bancada do
laboratório, seria necessário dar a seres humanos dosagens de ivermectina dez
vezes superiores ao limite considerado seguro.
Em outras palavras, tudo indica que a quantidade
necessária de ivermectina para "matar" o coronavírus num cenário real
de infecção representaria um risco de efeitos colaterais gravíssimos e overdose
nas pessoas.
Porém, ao contrário da hidroxicloroquina, cuja
ineficácia contra a covid-19 está bem demonstrada pelos estudos publicados até
o momento, a situação da ivermectina é de incerteza.
Por aqui, ainda inexistem aqueles estudos
randomizados, duplo-cegos e controlados por placebo sobre os quais falamos mais
acima.
Os resultados das pesquisas feitas até agora ficam,
então, contraditórios. Uma delas, do Centro Internacional de Doenças
Diarreicas de Bangladesh, por exemplo, até revela uma diminuição da
carga viral dos pacientes com covid-19, sem que isso resulte numa
melhora significativa dos sintomas.
Um trabalho do Instituto de Saúde
Global de Barcelona, na Espanha indica que o uso da ivermectina
aliviou um pouco os incômodos da infecção num grupo de voluntários tratados.
Mas os próprios autores admitem a necessidade de testes clínicos maiores para
confirmar as observações.
Como pode ser visto, essas investigações são muito
pequenas, com poucos participantes, e não têm significado prático. Tanto que as
principais entidades de saúde do mundo, como os Institutos Nacionais de Saúde
dos EUA, não indicam o uso dessa droga como tratamento da covid-19.
Isso porque os estudos sobre o papel do
antiparasitário são inconclusivos e os cientistas estão conduzindo
investigações maiores para descartar ou recomendar seu uso durante a pandemia.
Portanto, não se recomenda que esse medicamento
deva ser usado no atual estágio.
Azitromicina, sem efeitos em pacientes
graves e risco de superbactérias
Em setembro de 2020, um estudo de pesquisadores
brasileiros publicado na Lancet, a segunda revista médica mais influente do
mundo, afirmou que a azitromicina não leva a melhoras em pacientes
hospitalizados e, portanto, não tem indicação de uso para casos graves.
Os pacientes foram divididos aleatoriamente em dois
grupos — 214 deles receberam azitromicina mais o tratamento padrão, e outros
183 receberam apenas o tratamento padrão, sem azitromicina. O tratamento
padrão, feito em ambos os casos, incluía a hidroxicloroquina, pois naquela
época — entre março e maio — seu uso estava sendo bastante frequente.
Não houve diferença entre os dois grupos em relação
a número de óbitos nem ao tempo de internação.
"Gostaríamos muito que tivesse funcionado,
porque é um medicamento barato, conhecido e normalmente bem tolerado na questão
dos efeitos colaterais", disse Luciano Cesar Pontes de Azevedo, médico do
Hospital Sírio-Libanês e parte da equipe que assina o artigo no Lancet, em
entrevista à BBC News Brasil na época da publicação.
Ele esperava que, com os resultados, pelo menos a
azitromicina deixasse de ser receitado indiscriminadamente no tratamento para
covid-19, o que poderia levar a falta do medicamento para quem precisa e também
aumento da resistência de bactérias. Isto porque a função original da
azitromicina é de antibiótico, muito usado em infecções bacterianas nas
chamadas vias aéreas superiores, como no nariz e garganta.
Nitazoxanida: da fama instantânea ao ostracismo
imediato
De um dia para o outro, o vermífugo nitazoxanida
ganhou os holofotes no Brasil como uma possível solução contra a covid-19.
No dia 19 de outubro de 2020, Bolsonaro e o
ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, anunciaram um
estudo que mostrava que essa droga poderia ser útil como tratamento precoce.
Alguns dias depois, os resultados dessa pesquisa
foram publicados no periódico científico European Respiratory Journal. De
acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, as conclusões do teste
foram consideradas muito fracas e sem nenhuma aplicação prática.
Prova disso é que, hoje em dia, a nitazoxanida nem
faz parte do protocolo do já questionável tratamento precoce que foi encampado
pelo Ministério da Saúde brasileiro.
Dexametasona, um dos poucos que vingaram
Nem só de fracassos vive a estratégia de
reposicionamento de fármacos contra a covid-19. Há pelo menos um medicamento já
conhecido que mostrou seu valor nos quadros graves da infecção pelo
coronavírus.
Falamos aqui da dexametasona, representante da
classe dos corticoides, muito usada contra doenças de pele, enfermidades
reumatológicas, asma e alergias.
Um estudo capitaneado pela Universidade de Oxford,
na Inglaterra, revelou que esse medicamento é um aliado valioso para os quadros
que necessitam de internação.
"Em alguns pacientes, a infecção pelo
coronavírus desencadeia uma forte reação inflamatória do organismo. Isso, por
sua vez, passa a afetar diferentes órgãos e pode até causar a morte",
contextualiza o médico Momtchilo Russo, professor sênior do Departamento de
Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo
(USP).
A dexametasona entra justamente nessa situação. Ela
ameniza a pane inflamatória que se instala em parte dos quadros agravados de
covid-19.
Que fique claro: esse corticoide não é um
tratamento precoce e nem deve ser usado por todo mundo que se contamina. Os
médicos avaliam caso a caso e prescrevem esse fármaco de acordo com critérios
muito bem estabelecidos.
Um grupo anti-'kit covid' que só cresce
O avanço da ciência ao longo dos últimos meses
permitiu que muitas entidades adotassem posturas contundentes contra a adoção
do tratamento precoce ou do "kit covid".
No Brasil, um dos primeiros órgãos a se posicionar
foi a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Em junho de 2020, a entidade
produziu o primeiro documento analisando a pouca evidência científica
disponível de alguns remédios, como a hidroxicloroquina.
Ao longo dos meses, a SBI atualizou esses pareceres
e adotou uma posição muito firme contra o tratamento precoce. Em seu último
informe, publicado no dia 19 de janeiro, a sociedade reafirma:
"As melhores evidências científicas demonstram
que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no 'tratamento precoce' para
a covid-19 até o presente momento. Pesquisas clínicas com medicações antigas
indicadas para outras doenças e novos medicamentos estão em pesquisa.
Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de
saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com
medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil".
O médico Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI,
relata que a repercussão dos posicionamentos fez com que ele próprio e vários
membros da entidade fossem atacados pelas redes sociais e chegassem a receber
até ameaças de morte. "Isso exigiu muita resiliência de nossa parte e fez
com que nos uníssemos e nos apoiássemos ainda mais", diz.
Cunha também se incomoda com a falta de respaldo de
outras entidades ao longo de 2020. A Associação Médica Brasileira (AMB) e o
Conselho Federal de Medicina (CFM) não chancelaram os posicionamentos da
Sociedade Brasileira de Infectologia e não se manifestaram contra o tratamento
precoce e o "kit covid".
O Conselho Federal de Medicina chegou a dizer que
caberia a cada médico decidir individualmente se prescreveria ou não
hidroxicloroquina, ivermectina e afins.
Na última semana, o Conselho Federal de Medicina
soltou uma nota à imprensa afirmando que muitas dessas drogas "não contam
com reconhecimento internacional".
Já a Associação Médica Brasileira teve uma mudança
de diretoria a partir de janeiro de 2021. Os novos gestores da associação deram
indicativos de que terão uma postura mais ativa a partir de agora — seu novo
presidente, César Eduardo Fernandes, coassina o informe da Sociedade Brasileira
de Infectologia citado acima.
A BBC News Brasil tentou entrar em contato com CFM
e AMB, mas nenhuma das entidades respondeu aos pedidos de entrevista.
Posição sem respaldo científico do governo federal
A despeito de todas evidências científicas e do
posicionamento de entidades nacionais e internacionais, o Ministério da Saúde e
algumas secretarias estaduais e municipais de saúde insistiram no tratamento
precoce — embora o aplicativo do Ministério que recomendava o tratamento
precoce tenha saído do ar recentemente.
No dia 16 de janeiro, o Twitter colocou um alerta
de informação duvidosa em uma mensagem postada pelo Ministério da Saúde. O texto
dizia: "Para combater a covid-19, a orientação é não esperar. Quanto mais
cedo começar o tratamento, maiores as chances de recuperação. Então, fique
atento! Ao apresentar sintomas da covid-19, #NãoEspere, procure uma Unidade de
Saúde e solicite o tratamento precoce".
Ao ser perguntado sobre o assunto durante uma
coletiva de imprensa, o ministro Eduardo Pazuello disse que era preciso
diferenciar o tratamento precoce do atendimento precoce.
"Nós defendemos, incentivamos e orientamos que
a pessoa doente procure imediatamente o posto de saúde. Que procure o médico e
ele faça o atendimento clínico e o diagnóstico precoce dos pacientes.
Tratamento é uma coisa, atendimento é outra", respondeu o general.
No entanto, uma breve análise de outras falas de
Pazuello confirma que ele insistiu no tratamento precoce diversas vezes e nos
mais variados contextos.
Poucos dias antes de o sistema de saúde de Manaus
entrar em colapso, o ministro esteve na cidade com assessores e um comitiva de
médicos justamente para falar com as autoridades locais a respeito do assunto.
Numa análise sobre a crise sanitária na capital
amazonense, Pazuello afirmou: "Manaus não teve a efetiva ação no
tratamento precoce com diagnósticos clínicos, no tratamento básico. Isso
impactou muito a gravidade da doença".
Cunha, da SBI, rebate: "Eles levaram o kit
ilusão, o kit covid, que desde junho todas as sociedades médicas científicas e
autoridades sanitárias do mundo sabem que não funciona. Eles deveriam oferecer
oxigênio, UTI e mais pessoas para tratar o querido povo de Manaus. Isso foi a
gota final de quão errado o ministério estava."
Na última semana, o lançamento do aplicativo
TrateCov também gerou uma série de polêmicas. A plataforma do Ministério da
Saúde serviria para orientar profissionais da saúde sobre as melhores condutas
nos pacientes com sintomas sugestivos de covid-19.
O problema era que o app, que já foi retirado do
ar, indicava as drogas do "kit covid" até diante dos sintomas mais
simples, que na maioria das vezes melhoram com o passar do tempo.
A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde
para entrevistas, mas até o fechamento da reportagem não recebeu nenhuma
resposta.
Efeitos imediatos (e para o futuro)
Mas qual o problema em usar esses medicamentos
todos como prevenção ou tratamento precoce contra a covid-19?
Em primeiro lugar, o uso desse coquetel dá uma
falsa sensação de segurança. As pessoas podem sentir que estão protegidas por
conta das medicações e relaxar nas medidas que realmente funcionam, como uso de
máscara, distanciamento físico e lavagem de mãos.
"Além disso, muitos desses comprimidos e
cápsulas podem provocar efeitos colaterais importantes se usados de forma
inadequada", alerta a médica Irma de Godoy, presidente da Sociedade
Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.
Há ainda uma preocupação específica com o uso
indiscriminado da azitromicina, um tipo de antibiótico usado em infecções
bacterianas como a gonorreia e a pneumonia.
Com tanta gente utilizando esse remédio sem
necessidade, isso pode acelerar o processo de resistência antimicrobiana —
quando os micro-organismos criam mecanismos para "driblar" o
tratamento e continuarem vivos.
Tudo indica que, no futuro, a azitromicina e outros
antibióticos não serão mais capazes de acabar com essas infecções e elas voltem
a ser mortais.
"Recentemente, a OMS soltou um alerta de aumento
de casos de resistência bacteriana pelo uso excessivo de antibióticos como a
azitromicina. Isso cria, por exemplo, quadros de 'supergonorreia' em que não há
tratamento", adverte a médica Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI
da BP-A Beneficência Portuguesa de São Paulo e participante da Coalizão
Covid-19 Brasil.
Cuidar na medida certa
Os especialistas relatam que, ao se posicionarem
publicamente contra o tratamento precoce, costumam ouvir sempre o mesmo
argumento: "Mas eu conheço pessoas que tomaram hidroxicloroquina ou
ivermectina e melhoraram".
O médico Leonardo Weissmann, do Instituto de
Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, esclarece que cerca de 80% das pessoas
que pegam covid-19 têm formas leves, que regridem em poucos dias
independentemente de qualquer tratamento.
Há um segundo contraponto comum nas redes sociais.
Muitos pacientes que estão com sintomas menos graves não se conformam com a
orientação de "só" ficar em casa isolados, sem necessidade de nenhum
comprimido específico. Eles temem uma piora, como o aparecimento de falta de ar
e uma posterior necessidade de intubação no hospital.
"Nos primeiros dias de covid-19, é importante
medir a oxigenação por meio do oxímetro, um aparelhinho facilmente encontrado
nas farmácias. Se acontecer uma diminuição do oxigênio no sangue, busque uma
orientação médica", indica Weissmann.
De resto, quadros leves da infecção pelo
coronavírus exigem repouso, boa hidratação e, se necessário, medicação para
sintomas como febre e dor no corpo. Caso os incômodos persistam ou apareça a
falta de ar, é hora de ir até o pronto-socorro.
O que se sabe hoje...
Por fim, vale mencionar que a ciência é o campo das
verdades provisórias. Isso significa que amanhã, ou daqui a um mês, podem
surgir trabalhos que comprovem a eficácia e a segurança de alguns medicamentos
em determinadas doses para os estágios iniciais da doença.
"Nenhum médico ou entidade é contra o conceito
de tratamento precoce, desde que ele realmente funcione", esclarece Godoy,
que também é professora da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade
Estadual Paulista (Unesp).
Enquanto não aparecem novidades farmacológicas
contra a pandemia (e não há uma boa parcela da população vacinada), nos resta
seguir respeitando as medidas de proteção, como o uso de máscaras, o
distanciamento físico, a limpeza das mãos e a preferência por ambientes bem
arejados.
(BBC)
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