A gripe espanhola não é conhecida como a mãe
de todas as pandemias por acaso. No mundo, estima-se que a doença tenha matado
mais de 50 milhões de pessoas.
No Brasil, os números mais confiáveis da época vêm do Rio de Janeiro, a então capital da República, onde foram contabilizados cerca de 15 mil óbitos entre os meses de setembro e novembro de 1918.
"A gripe espanhola era muito rápida, matava em poucos dias. Há notícias de famílias inteiras que morriam em casa e só eram descobertas por vizinhos que notavam a falta de movimento", relata a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.
Num momento em que os recursos e o conhecimento científico sobre os vírus ainda eram escassos, o governo brasileiro demorou para tomar as primeiras medidas e patinou até conseguir coordenar as ações e criar políticas efetivas contra a "espanhola", como a doença era conhecida no período.
Entre 1918 e 1920, tempo em que a pandemia se manteve ativa no país e no mundo, o Brasil teve três presidentes: Wenceslau Braz (de 15 de novembro de 1914 a 15 de novembro de 1918), Delfim Moreira (de 15 de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919) e Epitácio Pessoa (de 28 de julho de 1919 a 15 de novembro de 1922).
Num cenário de grande incerteza e muitas
mortes, alguns personagens importantes da administração pública rapidamente
viraram bodes expiatórios e foram execrados pela imprensa.
E ninguém sofreu mais acusações do que o
médico Carlos Seidl.
Reputação arranhada
"Carlos Seidl era um médico muito famoso, quase um popstar. Ele chegou a ser capa da revista Fon-Fon, uma das mais populares do período", relembra João Malaia, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria.
Nascido em 1867 no Pará, Seidl foi presidente da Academia Nacional de Medicina entre 1911 e 1913 e até hoje é o patrono da cadeira número 17 da entidade.
O especialista era tão antenado ao seu tempo que foi autor de um dos primeiros artigos científicos da história sobre o uso dos raios-X na medicina.
Em 1912, Seidl assumiu como diretor-geral de Saúde Pública, cargo que hoje equivaleria ao de ministro da Saúde.
À época, não existia um Ministério da Saúde.
As questões relacionadas a esse tema eram centralizadas no Ministério de
Justiça e Negócios Interiores.
Tudo ia relativamente bem na gestão de Seidl
até o segundo semestre de 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil por
meio dos portos.
De piada a assunto sério
Os primeiros relatos de que uma doença nova começara a se espalhar pela Europa foram encarados com ceticismo e humor no Brasil.
Jornais e revistas fizeram piadas com a ameaça que ficava cada vez maior.
Um artigo publicado em A Careta é um exemplo disso. Num trecho, os autores chegam a dizer em tom de pilhéria que o vírus era invenção dos alemães para ganhar a Primeira Guerra Mundial, que naquele ano de 1918 se encaminhava para o fim:
"Em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros".
Um fator que contribui para essa visão é o fato de a gripe sazonal, que aparece no outono e no inverno todos os anos, ser encarada com naturalidade pela população.
Um artigo de 2005 assinado pela historiadora Adriana da Costa Goulart revela que a doença era tão corriqueira no país que acabou conhecida no período como "limpa-velhos", pelo fato de acometer e matar principalmente a população idosa.
A situação foi encarada com um pouco mais de seriedade quando uma missão de militares brasileiros, que partiu de navio para ajudar nos esforços de guerra, foi acometida pela "espanhola" em setembro de 1918 ao aportar em Dakar, no Senegal.
Nesse mesmo mês, a doença chegou oficialmente ao país no navio Demerara, que partiu de Lisboa, em Portugal, e fez paradas nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Em cada uma dessas cidades, o desembarque de
pessoas infectadas fez com que o vírus causador da gripe se espalhasse país
adentro e causasse um estrago sem precedentes.
Ações instantâneas
Ao receber as primeiras notícias sobre a gripe espanhola, a primeira coisa que o governo brasileiro fez foi negar a gravidade dos fatos.
Poucos dias depois, porém, a realidade se impôs: nas última semanas de setembro de 1918, começaram a ser tomadas medidas preventivas, como revela esse artigo escrito pelo próprio Carlos Seidl em 1919:
"Antes do dia 26 de setembro [de 1918] o próprio ministro do Interior, de quem solicitei insistentes informações, não sabia dizer-me qual a natureza da epidemia - falava-me em cólera e peste bubônica. (...) na falta de documentação, tomei a deliberação de recomendar aqui e nos portos uma profilaxia que denominei de indeterminada, isto é, visando tudo que pudesse ser motivo de transmissão mórbida".
A historiadora Daiane Silveira Rossi, pós-doutoranda pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), destaca as primeiras medidas instauradas pela administração pública:
"Quando a pandemia estourou, as autoridades sanitárias recomendaram que as pessoas se mantivessem em casa e não fossem aos locais públicos. Houve decretos para extinguir algumas práticas bastante comuns no período, como o hábito de cuspir no meio da rua", conta.
A gravidade da situação também exigiu a
construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de
indivíduos infectados com o vírus.
As políticas restritivas, porém, não foram aceitas por parte da imprensa e, por consequência, pela população.
Em outra edição, a mesma revista A Careta reclamou da "ameaça da medicina oficial e da ditadura científica" e sugeria que as políticas feriam "os direitos dos cidadãos com uma série de medidas coercitivas, preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis".
O bode expiatório
Por mais necessárias que essas medidas de restrição fossem, elas não conseguiram conter a subida vertiginosa no número de mortes pela "espanhola".
E mais uma vez sobrou para Carlos Seidl.
Em editoriais, o médico chegou a ser chamado de "cretino, relapso e sedicioso" e acusado de deixar a população entregue à própria sorte.
No dia 11 de novembro de 1918, um artigo do Rio Jornal dizia que o então diretor-geral de Saúde Pública fez "pouco caso criminoso e abusou da paciência do povo".
Em certos veículos, a gripe espanhola passou a ser chamada de "mal de Seidl".
E o presidente? Em meio a tanta ira, Wenceslau Braz não foi alvo tão frequente assim dos ataques da imprensa.
"Em comparação com alguns de seus
sucessores, Braz era mais fraco e se escudou na figura de Carlos Seidl, um
profissional que era muito experiente e gabaritado para lidar com a
pandemia", avalia Schwarcz, que publicou em outubro de 2020 o livro A Bailarina da Morte: a Gripe
Espanhola no Brasil (Companhia das Letras), junto da também
historiadora Heloisa Murgel Starling.
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https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56031995
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