Se o
desenvolvimento das primeiras vacinas contra a covid-19 foi uma conquista
histórica, a distribuição das doses de forma igualitária entre todo o mundo
representa um enorme desafio.
Além disso, é
essencial que os testes clínicos dos novos imunizantes sejam absolutamente
rigorosos e controlados para evitar qualquer prejuízo às campanhas de vacinação
em massa.
Esses são alguns dos pontos defendidos pelo médico americano Gregory Poland, referência mundial no estudo das vacinas.
Professor da
Clínica Mayo, nos Estados Unidos, Poland trabalha com o conceito de
"vacinômica".
Em resumo, seu
grupo de pesquisa se debruça no desenvolvimento de imunizantes personalizados e
com características únicas para atender pessoas que não podem tomar as doses já
disponíveis por causa de alergias ou outras doenças.
Além da
atuação acadêmica, o especialista também atuou no Comitê de Defesa em Saúde
criado pelo governo George W. Bush em 2007 e foi consultor de epidemiologia das
Forças Armadas americanas durante dez anos.
Nesta
entrevista para a BBC News Brasil, Poland faz comentários sobre o atual estágio
de evolução das vacinas contra a covid-19 e como o mundo precisa se organizar
para lidar com futuras pandemias.
BBC News
Brasil - Que avaliação o senhor faz sobre o progresso feito com as vacinas
contra a covid-19 nos últimos meses?
Gregory Poland
- É um progresso tremendo,
um feito histórico sem precedentes na história da humanidade. Isso é algo
magnífico. Nós saímos da descoberta de um novo vírus causador de uma pandemia
para a chegada das primeiras vacinas em menos de um ano. De qualquer maneira que
isso seja analisado, é uma conquista humana enorme.
BBC News
Brasil - E como foi possível ter essa conquista num espaço tão curto de tempo?
Poland - Em certo aspecto, nós fomos afortunados. O
que quero dizer com isso é que estamos lidando com um coronavírus que não é
muito diferente daquele que provocou as epidemias de Sars e Mers em 2003 e
2011. Naquele período, as primeiras vacinas de RNA, plataforma usada nos
imunizantes criados agora por Pfizer/BioNTech e Moderna, estavam começando a
ser desenvolvidos. Mas daí essas epidemias foram controladas e essa tecnologia
foi colocada na prateleira.
Só que, a
partir do fim de 2019, apareceu o novo coronavírus, o causador da covid-19. Os
cientistas então tiraram a tecnologia de RNA da prateleira, que pode ser rapidamente
adaptada para o desafio atual.
Os governos e
outras instituições também colocaram bilhões de dólares no desenvolvimento das
vacinas, pensando no bem do mundo. Isso certamente acelerou as coisas.
Outro ponto
importante foi que as agências regulatórias de vários países procuraram
conversar com os produtores de vacina para que esse processo fosse o mais
eficiente possível. Logicamente não podíamos demorar quatro anos para encontrar
uma solução para a pandemia.
BBC News
Brasil - Falando sobre a tecnologia do RNA, o que as vacinas de Moderna e
Pfizer/BioNTech têm de positivo?
Poland - A primeira vantagem é que elas podem ser
desenvolvidas rapidamente a partir de um pedaço do código genético do vírus. Em
segundo lugar, até agora elas apresentam pouquíssimos efeitos colaterais, que
na vasta maioria são bem leves.
Terceiro,
esses imunizantes se mostraram altamente eficazes nas análises preliminares.
Estamos falando de números acima dos 90%, o que é incrível. Por último, eles
podem ser adaptados rapidamente, em questão de dias ou poucas semanas, depois
que a gente sabe o código genético do vírus.
Tudo isso
permitirá usar essa tecnologia para lidar com várias doenças infecciosas e
provavelmente até em outras áreas da medicina, como no tratamento de alergias
ou do câncer. É algo que muda paradigmas na ciência.
BBC News
Brasil - Mas como que uma vacina de RNA poderia ser utilizada contra o câncer
ou alergias?
Poland - A tecnologia de RNA pode ser aplicada em qualquer
doença que gera uma resposta imune. Vamos pegar as alergias como exemplo. Um
indivíduo alérgico ao amendoim, por exemplo, tem uma reação imune ao consumir esse
alimento. Nós conseguimos usar então esse princípio das vacinas de RNA para
prevenir a reação alérgica ou suscitar uma resposta mais branda e menos danosa.
O mesmo vale
para o câncer. Uma célula cancerosa expressa substâncias de uma maneira similar
ao que acontece numa doença infecciosa. Se você encontra um elo fraco, uma
proteína em que é possível intervir, você consegue através de um imunizante
estimular uma resposta do próprio sistema imunológico e, assim, atacar o
câncer.
BBC News
Brasil - O senhor citou os pontos positivos da vacina de RNA. Mas quais são os
negativos?
Poland - O primeiro ponto negativo que vejo é a necessidade
de temperaturas muito frias para armazenamento e transporte. Isso aumenta
bastante a complexidade logística, impacta o custo e abre a possibilidade de
que a manipulação das doses cause estragos ou diminua sua efetividade. Um
desafio para a próxima geração das vacinas de RNA é manter a estabilidade em
temperaturas mais altas.
O segundo
ponto é que ainda não temos dados de segurança dessas vacinas no longo prazo.
Mas é preciso ter cuidado aqui. No campo da imunização, os efeitos colaterais
costumam ocorrer nos primeiros minutos da aplicação da dose até, no máximo,
seis semanas. Nós nunca observamos eventos adversos de vacinas muito depois
desse período. E vale destacar que aquelas que estão sendo aprovadas têm mais
de oito semanas de observação nos estudos.
Mesmo assim,
não sabemos ainda a segurança de longo prazo das vacinas de RNA. Precisamos
sempre ficar atentos a coisas que a gente nem imagina e podem acontecer um
tempo depois.
Ainda não
sabemos também se esses imunizantes previnem quadros leves e a transmissão da
doença. Outro ponto que precisamos descobrir é a durabilidade dessa proteção e
se precisaremos de doses de reforço daqui a algum tempo.
BBC News
Brasil - Outra tecnologia que já está sendo utilizada é a vacina de vetor
viral, que foi adotada nos produtos de AstraZeneca/Universidade de Oxford,
Instituto Gamaleya e Johnson & Johnson. Como o senhor avalia essa outra
possibilidade?
Poland - Sabemos que as vacinas baseadas nessa tecnologia
são reatogênicas, ou seja, levam a uma reação do sistema imune. Essa é uma
plataforma um pouco mais difícil de trabalhar na criação de vacinas. Mas por
outro lado, em comparação com os imunizantes de RNA, elas são mais baratas e
não precisam daquela cadeia complexa de frio.
No caso da
vacina de AstraZeneca/Universidade de Oxford, aquela história do erro de
aplicar somente meia dose numa parcela dos pacientes dos testes clínicos foi um
problema que gerou repercussões negativas.
BBC News
Brasil - A propósito, sobre esse episódio da meia dose,
o que podemos tirar de lição deste e de outros erros que aconteceram durante os
ensaios clínicos das vacinas contra a covid-19?
Poland - O primeiro ponto é que nunca é demais ter
precaução. Todos os pequenos passos da vacina devem ser acompanhados com o
máximo de cuidado. E, quando erros ocorrem, temos obrigação de perguntar: o que
podemos aprender com isso?
No caso da
vacina de AstraZeneca/Universidade de Oxford, as doses pela metade resultaram
em algo positivo, pois houve uma resposta imune mais forte por motivos que
ainda estão sendo estudados.
Em terceiro
lugar, nós vivemos num mundo em que as pessoas estão desconfiadas da ciência,
das instituições e dos governos. E, em meio à desconfiança, precisamos ser
radicalmente transparentes e honestos sobre as vacinas.
BBC News
Brasil - Outro ponto que gera um intenso debate é o acesso às vacinas e como os
países mais pobres não poderão iniciar campanhas com rapidez. O que a pandemia
nos ensina sobre desigualdade em saúde?
Poland - O acesso a serviços de saúde é um grande
problema não só para a covid-19, mas para outras doenças como malária e males
cardíacos. E isso tem a ver com a responsabilidade de cada país em desenvolver
sua economia de maneira a dar suporte à população. É curioso como em todas as
nações existem palácios e carros de luxo para reis e presidentes. Para isso
sempre tem dinheiro...
Mas muitos não
pensam em como usar os recursos financeiros para o bem da própria população. O
governo só existe para prover aquilo que as pessoas não conseguem fazer por
conta própria. Então esse é o primeiro passo: cada país precisa assumir as suas
responsabilidades com a sua própria população.
O segundo
ponto envolve a assistência internacional, que precisa ser intermediada por
instituições como o Banco Mundial e a Organização Mundial da Saúde. São esses
órgãos que ajudam a definir quem deve pagar essa conta de forma igualitária. É
justo tirar dinheiro do Brasil para dar a outro país que optou por não
desenvolver ou pesquisar vacinas? Como isso é decidido? Quem deve bater esse
martelo?
É claro que
precisamos de gestos humanitários, mas há um limite do que pode ser feito. A
Europa, os Estados Unidos e o Brasil não podem suprir a demanda mundial. Por
isso que todos os países e governos precisarão ter responsabilidade e ajudar de
alguma maneira no desenvolvimento de vacinas. Esse raciocínio vale para a área
de saúde, mas se aplica também a outros setores, como habitação, educação...
BBC News
Brasil - Nós já temos uma série de vacinas contra a covid-19 aprovadas em
caráter emergencial. Faz sentido continuar estudando aquelas que estão nas
fases mais iniciais dos testes clínicos?
Poland - Eu penso que sim, por uma série de razões. O que
nós queremos são vacinas com preço baixo, que possam ser estocadas por longos
períodos, que sejam estáveis na temperatura ambiente, que não requerem
profissionais de saúde altamente capacitados para aplicar as doses… E esses
melhoramentos acontecem com a evolução das pesquisas.
Fora isso,
essas poucas empresas e fabricantes não serão capazes de suprir toda a demanda
mundial.
Por fim, nós
nunca sabemos quais mecanismos de aplicação e tecnologias surgem desta busca.
Pode ser que, a partir dos estudos feitos agora, apareçam inovações até para
outras doenças.
BBC News
Brasil - Que aprendizados nós podemos tirar dessa epopeia das vacinas contra a
covid-19?
Poland - Há uma frase famosa que diz: "A história
ensina que os governos e as pessoas nunca aprendem com a história."
Mas eu espero
sinceramente que governos e instituições ao menos invistam mais dinheiro em
prevenção biológica. Nos últimos 20 anos, três coronavírus diferentes surgiram
e causaram epidemias ou pandemias [Sars, em 2003; Mers em 2011 e
covid-19 em 2020]. E vão aparecer outros em breve. E não é só o
coronavírus, há outros vírus que preocupam.
Para lidar com
essa ameaça, precisamos estar preparados e ter infraestrutura. Necessitamos de
financiamento em ciência para desenvolver, estudar e melhorar as vacinas. Não
sabemos quando precisaremos dos imunizantes com rapidez.
A pesquisa,
aliás, pode nos ajudar contra doenças do presente e do futuro. Quem sabe desses
estudos não apareça uma vacina contra o HIV, por exemplo? Não seria
maravilhoso?
(BBC)
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