Michael Sandel (nascido em Minneapolis, nos Estados Unidos, em 1953) é muito mais do que um filósofo ou intelectual. Professor de Direito de Harvard, ele é considerado por muitos uma espécie de estrela pop da filosofia.
E a verdade é que os números de suas palestras e conferências se aproximam dos grandes shows de música. Sandel encheu a St. Paul's Cathedral em Londres e a emblemática Opera House em Sydney, além de ter reunido 14 mil pessoas em um estádio em Seul...
E isso sem
falar nos números na internet. Suas palestras foram vistas dezenas de milhões
de vezes no YouTube e se tornaram virais.
O livro mais
recente de Sandel, A Tirania do Mérito (Ed. Civilização
Brasileira), analisa em profundidade esse conceito, tão em voga nos últimos
anos, segundo o qual quem chegou ao topo teve sucesso por seus próprios
méritos.
Sandel, no
entanto, ataca essa ideia e as muitas falácias que, na avaliação dele, esse
tema esconde.
Leia, a
seguir, os principais trechos da entrevista concedida à BBC News Mundo, serviço
em espanhol da BBC.
BBC News Mundo
- O que há de errado com a meritocracia?
Michael Sandel
- De certa forma, a
meritocracia é uma ideia atraente porque promete que, se todos tiverem
oportunidades iguais, os vencedores merecem vencer. Mas a meritocracia tem um
lado obscuro.
Existem dois
problemas com a meritocracia. Um é que realmente não vivemos de acordo com os
ideais meritocráticos que professamos ou proclamamos, porque as oportunidades
não são realmente as mesmas.
Os pais ricos
podem passar seus privilégios aos filhos, não (necessariamente) deixando
grandes propriedades, mas dando-lhes vantagens educacionais e culturais para
serem admitidos nas universidades.
BBC News Mundo
- Em seu livro, você conta, por exemplo, que a grande maioria dos alunos de
universidades de prestígio como Princeton ou Yale, nos EUA, pertencem a
famílias muito ricas.
Sandel - É assim. Na verdade, nas universidades da
chamada Ivy League (que inclui as universidades de Brown, Columbia, Cornell,
Dartmouth College, Harvard, Pensilvânia, Princeton e Yale, algumas das mais
prestigiadas dos Estados Unidos), há mais alunos que pertencem ao 1% das
famílias com maior rendimento do país do que aos 60% com menor renda.
Portanto, o
primeiro problema com a meritocracia é que as oportunidades não são realmente
iguais.
BBC News Mundo
- E o segundo problema?
Sandel - O segundo problema com a meritocracia tem a ver
com a atitude em relação ao sucesso. A meritocracia incentiva aqueles que são
bem-sucedidos a acreditar que isso se deve a seus próprios méritos e que,
portanto, merecem todas as recompensas que as sociedades de mercado concedem
aos vencedores.
Mas se aqueles
que são bem-sucedidos acreditam que o conquistaram com suas próprias
realizações, também tendem a pensar que aqueles que foram deixados para trás
são responsáveis por viverem assim.
É um problema
de atitude em relação ao sucesso que leva a uma divisão das pessoas em
vencedores e perdedores. A meritocracia cria arrogância entre os vencedores e
humilhação para os que ficaram para trás.
BBC News Mundo
- E se a meritocracia é realmente uma coisa tão perversa, por que nas últimas
décadas muitos políticos a abraçaram?
Sandel - É uma pergunta muito interessante. Durante as
últimas décadas, os partidos de centro, esquerda e direita adotaram uma versão
neoliberal da globalização que causou um aumento nas desigualdades.
E os partidos
de centro-esquerda responderam a essas desigualdades não procurando reduzi-las
diretamente por meio de políticas econômicas, mas oferecendo a promessa de que
era possível ascender socialmente, o que em meu livro chamo de "retórica
da ascensão".
A ideia é que,
se criarmos oportunidades iguais, não precisaremos nos preocupar muito com a
desigualdade porque a mobilidade pode permitir que as pessoas passem de
empregos com remuneração estagnada para empregos melhores.
Os partidos de
centro-esquerda ofereceram a retórica da ascensão em vez de responder
diretamente à desigualdade.
Colocando de
outra forma: em vez de abordar diretamente a desigualdade, ofereceram a mensagem
de que a mobilidade individual pode ser alcançada por meio do ensino superior;
eles disseram que para vencer na economia global você tinha que ir para a
faculdade e obter um diploma universitário, porque o dinheiro que você ganharia
dependia do que você aprendeu e estudou, e se você se esforçasse, poderia
alcançá-lo.
Todas essas
ideias fazem parte da retórica da ascensão, e os partidos de centro-esquerda
pensaram que era uma forma inspiradora de encorajar as pessoas a melhorarem
suas próprias condições de indivíduos, obtendo um diploma universitário.
E, de certa
forma, essa mensagem é inspiradora. Todos querem acreditar que se você
trabalhar duro, pode melhorar sua condição.
Mas embora
possa ser uma mensagem inspiradora de alguma forma, por outro lado é um
insulto, porque implica que se você não foi para a universidade e está passando
por momentos difíceis na nova economia, a culpa do seu fracasso é só sua. E
isso, insisto, é um insulto para muitos trabalhadores.
O que as
elites políticas e meritocráticas esquecem é que a maioria das pessoas não
possui um diploma universitário. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, quase 2
em cada 3 pessoas não têm diploma universitário.
É um erro
criar uma economia em que a condição para o sucesso seja um diploma
universitário, que a maioria das pessoas não possui. E isso também se aplica à
Europa.
E assim os
partidos de centro-esquerda perderam muitos dos eleitores da classe
trabalhadora que tradicionalmente eram sua base de apoio. Vimos isso com o
Partido Democrata nos Estados Unidos, com o Partido Trabalhista na
Grã-Bretanha, com os partidos social-democratas na Europa...
Esses partidos
têm se tornado cada vez mais partidos das classes profissionais, das elites com
formação universitária, e vêm perdendo apoio entre os trabalhadores sem
formação universitária.
BBC News Mundo
- E para onde foram esses eleitores?
Sandel - Esses eleitores passaram a apoiar políticos e
partidos populistas autoritários, apoiaram Donald Trump nos EUA, o brexit na
Grã-Bretanha e partidos populistas autoritários na França, Espanha e outros
países.
BBC News Mundo
- O que exatamente a meritocracia tem a ver com a chegada de Donald Trump à
Casa Branca após as eleições de 2016 ou com a ascensão do populismo?
Sandel - Nas últimas décadas, a divisão entre
vencedores e perdedores se aprofundou, envenenando nossa política e nos
separando. Essa divisão tem a ver em parte com as crescentes desigualdades das
últimas décadas.
Mas também tem
a ver com como as atitudes em relação ao sucesso mudaram com o aumento da
desigualdade. Aqueles que chegaram ao topo na era da globalização passaram a
acreditar que seu sucesso era todo deles porque o conquistaram por seus
próprios méritos, e que os perdedores não tinham ninguém para culpar por seu
fracasso, exceto eles próprios.
Isso reflete a
ideia meritocrática, pois se as possibilidades forem iguais para todos, os
vencedores merecem seus ganhos.
À medida que
essas atitudes se firmavam, a arrogância meritocrática levou os vencedores a
acreditar que seu sucesso era o resultado de seus próprios talentos e trabalho árduo,
e levou à desmoralização e humilhação dos perdedores. E uma das formas mais
poderosas de reagir contra isso é a ação violenta e populista contra as elites.
Muitos
trabalhadores sentem que as elites os desprezam, que não os respeitam, não
respeitam o tipo de trabalho que fazem. E isso criou raiva e ressentimento cada
vez maiores entre os trabalhadores, que sabiam que estavam trabalhando duro,
mas recebendo menos dinheiro, porque os salários dos trabalhadores estão
estagnados há quatro décadas.
Os partidos
populistas autoritários apelam para as queixas das pessoas que se sentem
desprezadas por esse sistema, um ressentimento que as atitudes meritocráticas
em relação ao sucesso alimentaram.
A maior parte
dos ganhos da globalização foi para os 20% mais ricos, e a metade inferior dos
trabalhadores não recebeu nenhum desses ganhos, nenhum. Mas não foi apenas
exclusão econômica.
Também aquela
sensação de humilhação que vem de sentir que as elites te menosprezam, que
consideram você o culpado do seu próprio fracasso e que se têm sucesso é porque
o mereceram. Isso criou a raiva e o ressentimento para os quais figuras
populistas autoritárias, como Donald Trump, apelaram.
BBC News Mundo
- Donald Trump, de fato, sempre criticou as elites. Mas ao mesmo tempo ele se vê
como fruto da meritocracia, como um homem que se fez. É um pouco contraditório,
não acha?
Sandel - Donald Trump foi um empresário que ganhou muito
dinheiro. Mas a raiva e o ressentimento não são contra aqueles que aspiram a
riqueza e status.
Desta forma, e
apesar de ter muito dinheiro, Donald Trump manifestou o sentimento de
ressentimento contra as elites meritocráticas, pois ao longo da sua carreira
empresarial sempre se sentiu desprezado pelas elites financeiras, elites
profissionais e elites intelectuais de Nova York.
E há muita
verdade nisso, ele nunca foi aceito ou respeitado pelas elites de Nova York ou
elites meritocráticas.
É por isso que
sempre sentiu uma profunda insegurança, que vinha de se sentir desprezado. E,
paradoxalmente, isso permitiu-lhe, apesar de rico, expressar o ressentimento
que muitos trabalhadores sentiam em relação às elites meritocráticas.
BBC News Mundo
- E se a meritocracia não é boa, se não funciona bem, o que devemos fazer
para alcançar sociedades mais igualitárias?
Sandel - Acho que devemos nos concentrar menos em preparar
as pessoas para uma competição meritocrática e nos concentrar mais na dignidade
do trabalho.
Devemos promover
medidas e políticas que tornem a vida melhor e mais segura para os
trabalhadores, independentemente de suas realizações e qualificação acadêmica.
No livro,
apresento várias maneiras pelas quais podemos mudar o discurso político nessa
direção. E, nesse sentido, a eleição de Joe Biden como presidente dos EUA após
derrotar Donald Trump me parece muito interessante.
Biden é o
primeiro candidato democrata à Presidência em 36 anos sem um diploma de uma
prestigiosa universidade da Ivy League. O primeiro candidato democrata em 36
anos!
Isso mostra
como nas últimas quatro décadas o Partido Democrata tem sido um reflexo do
domínio das elites meritocráticas.
E acho que
parte do sucesso de Biden é precisamente que, por não vir da elite
meritocrática, ele foi capaz de se conectar de forma mais eficaz com os
eleitores da classe trabalhadora. Durante a campanha eleitoral, por exemplo,
Biden falou da necessidade de renovar a dignidade do trabalho.
Mas não me
interpretem mal: não estou dizendo que devemos abandonar o projeto de igualdade
de oportunidades. Esse é um projeto muito importante, moral e politicamente. O
erro é presumir que a criação de mais oportunidades iguais é uma resposta
suficiente às enormes desigualdades de renda e riqueza que a globalização
neoliberal trouxe.
BBC News Mundo
- A pandemia do coronavírus revelou a importância fundamental de muitos
empregos que, no entanto, são mal pagos para a sociedade. Você acha que isso
pode ajudar a mudar mentalidades?
Sandel - Potencialmente, sim. Pode nos ajudar a entender
que o dinheiro que muitas pessoas recebem por seu trabalho não é a verdadeira
medida de sua contribuição para o bem comum, um equívoco e que devemos mudar.
A experiência
da pandemia oferece uma possível abertura para um debate público sobre o que realmente
é uma valiosa contribuição para o bem comum, para além do veredito do mercado
de trabalho.
Aqueles de nós
que podem se dar ao luxo de trabalhar em casa perceberam o quanto dependemos de
alguns trabalhadores que muitas vezes esquecemos. Não se trata apenas de quem
trabalha heroicamente em hospitais cuidando de pacientes da covid, mas também
de entregadores, balconistas, funcionários de supermercados, motoristas de
caminhão, prestadores de cuidados de saúde ao domicílio, babás... Nenhum desses
empregos está entre os que têm salários mais altos.
E ainda assim
reconhecemos que são trabalhadores essenciais. Portanto, a experiência da
pandemia pode ser o início de um amplo debate público sobre como reconhecer a
importância do trabalho e das contribuições que essas pessoas fazem à
sociedade.
Depende de
nós, é uma questão em aberto. Mas acredito que a experiência da pandemia
evidenciou as desigualdades existentes em nossas sociedades e a importante
contribuição daqueles que, no entanto, não obtêm as maiores recompensas do
mercado.
BBC News Mundo
- Então você acha que esses trabalhadores essenciais deveriam ter melhores
remunerações?
Sandel - Sim. Eu acho que eles deveriam receber mais como
medida de emergência durante esta pandemia. Mas também acho que eles deveriam
receber um salário melhor, mesmo quando superarmos a pandemia.
O
reconhecimento do papel importante dos trabalhadores essenciais durante esta
pandemia deve nos levar a estabelecer um salário digno para todos os
trabalhadores.
E também
devemos conceder licença médica remunerada a todos os trabalhadores durante a
pandemia, porque muitos deles estão colocando sua saúde em risco ao fazer o
trabalho que fazem, enquanto o resto de nós podemos proteger nossa saúde
ficando em casa.
Eles devem
receber um salário digno, licença médica remunerada e outras medidas para
mostrar o reconhecimento da sociedade sobre a importância de sua contribuição.
BBC News Mundo
- Um estudo da New Economic Foundation de 2009 revela que alguns dos empregos
mais bem pagos são socialmente muito destrutivos, que em nada contribuem para o
bem comum...
Sandel - É isso mesmo, e é disso que trato no capítulo 7
de A Tirania do Mérito. Por que, por exemplo, os executivos
altamente pagos do setor financeiro de Wall Street ganham tanto dinheiro?
Às vezes,
presumimos que as transações financeiras especulativas são de vital importância
para a economia e a sociedade. Mas estudos têm mostrado, e cito alguns desses
estudos no livro, que além de um certo ponto, engenharia financeira complexa e
especulação não só não contribuem para a produtividade da economia, mas são na
verdade um entrave à produtividade, algo que fere economia real.
E se for
assim, recompensar esses executivos financeiros pagando-lhes generosamente não
é consistente com a forma como se pagam as contribuições verdadeiramente
valiosas para a economia e o bem comum.
BBC News Mundo
- E o que você propõe?
Sandel - Proponho uma mudança na estrutura tributária.
Sugiro que consideremos a introdução de um imposto sobre transações financeiras
especulativas e atividade financeira especulativa: tributar essa atividade e
usar o dinheiro arrecadado para reduzir o imposto sobre o trabalho pago por
trabalhadores comuns nos EUA.
A mensagem do
meu livro é abrir um amplo debate público sobre o que é considerado uma
contribuição verdadeiramente valiosa para a economia e o bem comum, e revisar
nossa política fiscal e outras políticas do mercado de trabalho para que deem
maior reconhecimento e respeito àqueles que eles fazem contribuições valiosas
que atualmente são mal pagas e pouco reconhecidas.
BBC News Mundo
- Muitos pais, sejam eles ricos ou pobres, ensinam aos filhos que se eles se
esforçarem e trabalharem, eles atingirão seus objetivos, uma mensagem muito
meritocrática. É perigoso dizer isso a eles?
Sandel - Sim e não, depende. Obviamente, os pais
incentivarem os filhos a estudar e trabalhar muito é algo bom, que dá aos
jovens a inspiração e a motivação para se esforçarem.
Isso é bom,
mas até certo ponto. Os pais devem ser cuidadosos e combinar essa mensagem com
outra. Eles devem encorajar seus filhos a trabalharem duro, mas não apenas para
que eles consigam um emprego que lhes permita ganhar muito dinheiro. Devemos
também promover em nossos filhos o amor pela aprendizagem em si mesma.
Não devemos
fazer da educação apenas um instrumento de progresso econômico, porque isso
privará nossos filhos do amor de aprender pelo prazer de aprender.
E outro
aspecto importante que devemos incutir neles é que se eles tiverem sucesso
amanhã será em parte graças aos seus próprios esforços, mas também em parte
graças aos seus professores, à sua comunidade, ao seu país, aos tempos em que
vivem, às circunstâncias, as vantagens de que puderam usufruir…
Ensinar nossos
filhos que seu sucesso é apenas o resultado de seus próprios esforços pode
fazê-los esquecer que estão em dívida com os outros, incluindo sua comunidade.
Devemos criar filhos que tenham um senso de gratidão e humildade quando são
bem-sucedidos.
*Esta
entrevista faz parte da versão digital do Hay Festival Cartagena, encontro de
escritores e pensadores que aconteceu na cidade colombiana de 22 a 31 de
janeiro de 2021.
(BBC)
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