A mãe das garotas, Joana, uma mulher negra de 24 anos, tinha sido presa duas semanas antes, em março deste ano, dentro do estacionamento de um supermercado de uma cidade de Minas Gerais. Segundo a polícia, a jovem foi pega depois de tentar sair com dois pedaços de picanha e uma lâmina de barbear em sua bolsa - ela negou o crime, dizendo que os produtos foram colocados na mochila por uma colega que também estava no mercado, mas que fugiu no momento da prisão.
Desempregada, Joana ficou por quase três meses na cadeia, sem contato
com as filhas, que ficaram com seu companheiro. "O namorado dela me ligou
só duas semanas depois da prisão da minha filha, contando o que tinha
acontecido. Disse que eles estavam envergonhados. Fui buscar minhas netas, e
elas estavam sozinhas e trancadas", conta Maria.
Casos como o da jovem, em que pessoas são presas por furtar comida ou
pequenas quantias, são conhecidos como furto famélico. Embora ainda não existam
dados específicos, defensores públicos ouvidos pela reportagem dizem que a
quantidade desses processos está aumentando em tribunais pelo país, um sintoma
da pandemia de covid-19 e do aumento da fome no país.
Em 2020, cerca de 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no
país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto
da Pandemia da covid-19 no Brasil. Em 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, em dois
anos houve uma alta de 27,6% (ou quase 9 milhões de pessoas a mais).
Muitas das
ações de furto famélico estão chegando a instâncias superiores da Justiça
brasileira, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal
Federal (STF). Desde 2004, existe um entendimento do STF de que casos como esse
devem ser arquivados, seguindo o princípio da insignificância.
A norma,
que não é obrigatória, orienta juízes a desconsiderar casos em que o valor do
furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, sucata,
produtos de higiene pessoal e ínfimas quantias em dinheiro, por exemplo, são considerados
insignificantes pela Justiça.
Mas nem
sempre.
Defensores
ouvidos pela BBC News Brasil apontam que juízes e desembargadores de diversos
tribunais pelo Brasil estão mantendo a custódia e condenando à prisão pessoas
acusadas de furto famélico ou de pequenos valores.
Com os
recursos dos advogados, esses processos - considerados de simples resolução na
primeira instância - acabam abarrotando os tribunais superiores e causando mais
lentidão à Justiça.
'Uma
família inteira presa'
A jovem
Joana, presa pelo furto de dois pedaços de picanha em Minas Gerais, trabalhava
como faxineira, mas estava desempregada. Sua mãe, Maria, conta que a filha
começou a passar necessidade ao se mudar para a casa do companheiro, em outra
cidade.
"Ela
não me falava o que estava acontecendo, talvez por vergonha. Só soube da
situação quando descobri que ela havia sido presa", diz Maria, por
telefone.
Segundo o
Boletim de Ocorrência (BO), ao tentar sair do mercado sem pagar pela carne,
Joana foi parada por seguranças, que a monitoraram por meio de câmeras. Os
objetos foram devolvidos, mas a moça acabou presa em flagrante. Em seguida,
policiais deixaram suas duas filhas com uma vizinha.
Joana
deveria ter passado por uma audiência de custódia para ser ouvida por um juiz
até 24 horas depois da detenção, como manda a lei. Porém, na pandemia, o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais não está realizando essas sessões na cidade
- nem mesmo de maneira virtual. Um juiz de plantão determinou a prisão
preventiva da jovem sem ouvir sua história, apenas com base na descrição do BO.
"Se
ela tivesse passado pela audiência, tenho certeza que teria sido solta
imediatamente. Acredito que um juiz teria se sensibilizado ao ouvir a
história", diz a defensora pública Alessa Veiga, que soube do caso ao
receber um bilhete de Joana durante uma visita à penitenciária. Ela pediu a
liberdade da jovem como custus vulnerabilis (protetora dos
interesses dos necessitados).
O juiz de
plantão argumentou que Joana era reincidente e, por isso, decretou prisão
preventiva pelo furto da carne e da lâmina de barbear. "Ela já estava
respondendo outro processo por furto, mas ainda não foi julgada na primeira
instância. Pela lei, ela ainda é ré primária, mas o juiz não considerou esse
fato", diz Veiga.
O
magistrado também não considerou que Joana é mãe de duas meninas de três e
cinco anos. Em 2018, o STF decidiu que juízes podem substituir a prisão
preventiva por domiciliar em casos envolvendo mães de crianças de até 12 anos.
"Parece
que muitas vezes a Justiça se preocupa mais com um pedaço de carne do que com a
vida das pessoas, até de crianças. Por que os juízes não seguem as decisões e
entendimentos do próprio Judiciário? Dessa forma, fica muito difícil defender
as pessoas no Brasil", afirma Veiga.
"Quando
uma mãe é presa, não é somente ela que entra numa prisão. São seus filhos, sua
família. Muitas vezes, ela não recebe visitas porque o companheiro e a família
têm vergonha. As unidades prisionais também não são preparadas para atender as
mulheres, principalmente na questão de saúde e higiene."
Após o
pedido da defensora, outro juiz concedeu prisão domiciliar à jovem enquanto
corre o processo - ela foi solta na semana passada depois de quase três meses
na cadeia. Joana não quis dar entrevista à BBC News Brasil, mas autorizou sua
mãe a falar por ela.
"Ela
é uma pessoa boa, trabalhadora. Ela tem muito medo de ter de voltar para aquele
lugar horrível. Agora, ela está em casa, com a família, as meninas ficaram
muito emocionadas ao rever a mãe. Vamos ajudá-la a cuidar delas", diz
Maria, que contou ter arrumado um emprego para a filha em um supermercado.
Acúmulo de
processos
Embora o
processo de Joana ainda esteja na primeira instância, ações de furto famélico
estão ajudando a abarrotar tribunais superiores, aumentando a lentidão da
Justiça. A avaliação é de um membro do próprio Judiciário: o ministro Sebastião
Reis Júnior, do STJ.
Na semana
retrasada, ele reclamou publicamente que cortes inferiores não estão seguindo
entendimentos jurídicos já pacificados pelo STF e pelo STJ. A crítica foi dada
durante o julgamento do habeas corpus de um homem acusado de furtar dois steaks
de frango que valiam R$ 4.
"É um
absurdo nós termos de julgar a insignificância de um furto de R$ 4. Não são só
o Ministério Público (MP) e a advocacia que insistem em teses superadas, mas
também os tribunais, que se recusam a aplicar nossos entendimentos. Não tem
lógica isso. É uma brincadeira dizer que a política que estamos adotando no
país e o comportamento de todos nós, os chamados atores do processo, estão
diminuindo a criminalidade", disse.
O ministro
mostrou um levantamento com o número de ações criminais distribuídas ao STJ nos
últimos anos. Segundo ele, em 2017 foram 84.256 processos e, no ano passado,
124.276 - alta de 47%. Para este ano, ele projeta que serão 131.997 casos. O STJ
tem duas turmas de cinco ministros para a área criminal - ou seja, cada um
deles recebeu 12,4 mil ações só em 2020, em média.
"Isso
é inviável, é humanamente impossível julgar essa quantidade de processos. Não
vejo discussões sobre ressocialização e prevenção de crimes, só vejo criação de
novos crimes, aumento de penas e dificuldade de progressão (das penas). Estamos
vivendo num mundo totalmente irreal, estamos num caminho completamente
equivocado", criticou Reis Júnior.
O caso
citado por ele foi representado pelo defensor público Flávio Aurélio Wandeck
Filho, também de Minas Gerais. Ele conta que o réu era um homem pobre de uma
cidade do interior do Estado. Monitorado por seguranças, acabou preso ao tentar
sair do supermercado com os dois pedaços de frango.
A carne
foi devolvida ao comércio, mas o rapaz acabou levado à delegacia. O réu disse
que furtou o frango porque estava com fome. O delegado se recusou a prendê-lo,
porque, além do homem ser primário, considerou R$ 4 um valor insignificante.
Ainda assim, um promotor da cidade apresentou a denúncia contra o rapaz. O
juiz, conhecido na região por ser bastante duro, aceitou e abriu o processo.
A
Defensoria Pública entrou com pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, solicitando o arquivamento. Porém, desembargadores entenderam que
a ação deveria prosseguir, mesmo com um novo posicionamento do Ministério
Público a favor do trancamento.
"Há
uma turma do TJ-MG que costuma não aplicar o princípio de insignificância
porque não concorda com ele, mesmo com o entendimento do STF. Os
desembargadores dizem que o princípio não está no Código Penal, que já tem um
parágrafo sobre pequenos furtos", analisa o defensor.
O caso só
foi resolvido no STJ, que decidiu pelo arquivamento da ação no início desse
mês.
"Um
processo como esse tem um custo para o Estado. Vários servidores públicos
participam da ação: promotores, juízes, desembargadores, ministros, defensores
públicos, escrivães, oficiais de Justiça. É muita gente e muito recurso público
para julgar um furto de R$ 4", diz Wandeck Filho.
Reincidência
Nos
últimos meses, o defensor público Pedro Naves Magalhães, de São Paulo, atuou em
um caso de furto que chegou até o Supremo Tribunal Federal, última instância da
Justiça.
Em abril,
um homem em situação de rua, de 44 anos, ficou quase 30 dias preso sob a
acusação de tentar furtar dois sacos de lixo reciclável em uma cooperativa de
catadores de São Paulo - os objetos, avaliados em R$ 30, foram devolvidos. O
réu disse que venderia o lixo furtado para comprar comida.
O
Ministério Público pediu a prisão por ele ser reincidente, "mesmo que o
agente não tenha logrado êxito em seu plano criminoso", escreveram os
promotores. Tanto o Tribunal de Justiça de São Paulo quanto o STJ aceitaram a
denúncia. Mas o morador de rua foi absolvido pela ministra Carmen Lúcia, do
STF, que considerou o valor do delito insignificante.
Segundo
defensores, a reincidência do réu também é um dos argumentos usados pelos
juízes para não aplicar o princípio da insignificância.
"Há
alguns magistrados, até no STJ e no STF, que acreditam que a insignificância
não deve ser usada se o réu já tiver condenações por outros crimes. Mas há
também ministros do STF, como Gilmar Mendes e Rosa Weber, que normalmente
arquivam os processos: a tese deles é que a reincidência não muda a
insignificância do delito", diz o defensor Flávio Aurélio Wandeck Filho,
de Minas.
Para o
defensor Pedro Naves Magalhães, o direito penal brasileiro tem um
"cliente" preferencial: pessoas negras, periféricas e marginalizadas
- essa parcela da população é a mais representativa dentro dos presídios,
segundo dados do próprio sistema penitenciário brasileiro.
"Muitas
vezes a Justiça criminaliza a pobreza, e a tendência é uma piora por causa da
pandemia. A Justiça escolhe de quem vai ser punido. Como comparação, se você
tiver uma dívida tributária de até R$ 20 mil, sequer é processado. Mas se você
furtar comida, pode ser condenado à prisão", diz Magalhães.
Segundo o
Depen (Departamento Penitenciário Nacional), o Brasil tinha, no primeiro
semestre do ano passado, 678.506 pessoas presas, a terceira maior população
carcerária do mundo, em números absolutos. O déficit no sistema era de 231.768
vagas.
Já Gustavo
de Almeida Ribeiro, defensor público federal com atuação no STF, acredita que
prender pessoas por causa de delitos não-violentos e sem prejuízos à vítima
pode ajudar facções criminosas que controlam os presídios.
"A
pessoa vai para um presídio superlotado e insalubre. Para sobreviver, é
cooptada por facções. Quando sai, tem uma dívida com o grupo e, para pagá-la,
comete crimes mais graves e violentos. Ela sai pior do que entrou, sem
assistência e ainda mais vulnerável. Nós vivemos num país pobre, e muita gente
acaba furtando por necessidade. Esse é um problema da sociedade, não só da
Justiça", diz Ribeiro.
Em março
deste ano, Ribeiro defendeu um homem condenado a 2 anos e 4 meses de prisão
(regime semiaberto) pelo furto de fios elétricos que valiam R$ 65, em Santa
Catarina. O réu alegou que venderia os fios para comprar comida. Mas
inicialmente a Justiça considerou que ele merecia a punição por ser
reincidente. Os recursos da defesa chegaram ao STF, e o ministro Gilmar Mendes
o absolveu, alegando que o valor do furto era insignificante. (BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário