Quando uma
empresa desenvolve um produto que ganha a preferência do público, isso
geralmente é encarado como sinal de sucesso. Porém, ao falarmos de vacinas,
essa "escolha" seletiva do consumidor pode trazer mais prejuízos do
que benefícios.
E isso é ainda mais perigoso quando estamos no meio de uma pandemia: muitos brasileiros estão deixando de ir ao posto de saúde quando as doses disponíveis naquele local são de determinado fabricante ou de outro.
Segundo relatos publicados nas redes
sociais, a vacina Comirnaty, desenvolvida por Pfizer/BioNTech, virou a
"queridinha" de muita gente, que se recusa a tomar a CoronaVac
(Sinovac/Instituto Butantan) ou a AZD1222 (AstraZeneca/Universidade de Oxford),
as outras opções disponíveis na campanha de imunização brasileira até o meio de
junho.
O fenômeno dos "sommeliers de
vacinas" está gerando reações nos próprios postos de imunização. Na
Unidade Básica de Saúde do Cambuci, em São Paulo, por exemplo, um cartaz fixado
na entrada apela:
"Enquanto você escolhe a marca da
vacina, o vírus pode escolher você. Vacine-se já!"
A mensagem foi flagrada pela repórter
Beatriz Manfredini, da Jovem Pan News:
O recado na porta da UBS Cambuci. 👇🏻 pic.twitter.com/eEiQgjxrAe
— Beatriz Manfredini (@B_Manfredini) June
23, 2021
Vale reforçar que esse tipo de escolha
num momento tão complicado como o que vivemos o faz sentido algum e pode até
ser perigoso. Quem diz isso é a própria líder médica de vacinas da Pfizer Brasil:
a pediatra infectologista Júlia Spinardi entende que não é hora de pensar
somente em si e nas próprias preferências, mas, sim, na proteção de toda a
comunidade.
"Precisamos entender que as vacinas
disponíveis se mostraram seguras e eficazes e o uso de todas elas, em conjunto,
é o que vai nos permitir controlar a covid-19", diz.
"Quando chegar a sua vez, vacine-se
com o imunizante que estiver disponível", resume a especialista.
Spinardi, que trabalha há cinco anos na
farmacêutica e tem mestrado em Ciências da Saúde pela Santa Casa de São Paulo,
concedeu uma entrevista exclusiva para a BBC News Brasil, na qual avaliou o
desenvolvimento das vacinas, o andamento das campanhas de imunização e as
perspectivas futuras de enfrentamento da pandemia.
Em meio a tantas perdas e sofrimentos, a
humanidade conseguiu um feito notável: desenvolver, testar e aprovar várias
vacinas contra uma doença nova num intervalo de menos de 12 meses.
Repare nas datas: a observação de que um
novo vírus estava provocando uma "doença misteriosa" na China começou
a ser feita entre o final de dezembro de 2019 e as primeiras semanas de janeiro
de 2020.
E os primeiros imunizantes para a
covid-19, como a própria Comirnaty e a AZD1222, já estavam aprovados para uso
em larga escala em dezembro de 2020.
Para Spinardi, a façanha só foi possível
graças ao investimento em biotecnologia e ao foco total dos laboratórios
públicos e privados em completar essa corrida contra o relógio.
"Aqui na Pfizer, tivemos um
redirecionamento total de nossas equipes e investimentos para que isso
acontecesse e nós criássemos vacinas no menor tempo possível", diz.
A pediatra destaca que a inovação se deu
também na forma como os estudos clínicos foram conduzidos: "Etapas que
antes eram feitas em sequência e demoravam meses para serem concluídas foram
realizadas em paralelo, para ganhar rapidez. E isso aconteceu, claro, sem que
os critérios de segurança fossem deixados de lado."
Ainda na seara das novidades, a atual
pandemia marcou a chegada de uma nova geração de vacinas (ao menos quando
pensamos no uso em larga escala): os imunizantes de mRNA, como os produtos
desenvolvidos por Pfizer/BioNTech e Moderna.
Eles são baseados num pedaço de código
genético sintetizado em laboratório que, ao ser injetado no corpo, instrui
nossas células a produzirem proteínas características do coronavírus.
Essas moléculas, por sua vez, são
reconhecidas pelo sistema imune, que cria anticorpos capazes de combater uma
infecção de verdade, caso o coronavírus tente invadir nosso organismo.
Essa nova plataforma tem vários pontos
positivos, como a fabricação rápida e uma flexibilidade maior na adaptação da
fórmula para fazer frente às novas variantes, por exemplo.
"Nós não precisamos fazer o cultivo
de vírus ou bactérias em laboratório, que é algo mais complicado e que exige
uma série de medidas. O fato de ser uma vacina 100% sintetizada facilita muito
a produção como um todo", avalia Spinardi.
Entre as desvantagens, vale citar a
pouca experiência na plataforma de mRNA em larga escala e as dificuldades
tecnológicas em montar fábricas capazes de fabricar esse produto: hoje em dia,
o mundo depende da expertise de poucas farmacêuticas (como Pfizer e Moderna)
para obter milhões e milhões de doses dessas vacinas.
Outro ponto que gerou muita preocupação
nos primeiros meses após a aprovação da Comirnaty foi a necessidade de
armazenamento em temperaturas muito frias (abaixo de -75 °C), o que demandava
equipamentos rebuscados e pouco acessíveis.
Essa seria uma dificuldade enorme num
país tão grande e diverso como o Brasil: lugares com menos acesso a
congeladores superpotentes poderiam ficar sem esse imunizante.
Mas essa barreira caiu por terra mais
recentemente: já existem caixas especiais que facilitam o transporte dos lotes
e novos estudos mostraram que essa vacina permanece viável se mantida a -20 °C
por algumas semanas.
Outra boa notícia foi a descoberta de
que as doses que serão utilizadas logo, nos próximos dias, podem ficar na
temperatura de 2 a 8 °C, que já se enquadra dentro da realidade dos mais de 30
mil postos de vacinação espalhados pelo Brasil.
"Isso foi fundamental para que a
gente conseguisse fazer a vacina chegar às diferentes regiões do nosso
país", comemora Spinardi.
Desafios em tempo real
A pediatra também chama a atenção para a
diferença entre eficácia e efetividade de um novo imunizante.
Enquanto a eficácia é medida a partir
dos estudos clínicos de fase 3, que conta com algumas dezenas de milhares de
voluntários, a efetividade mede os impactos de vida real da campanha de
vacinação, que envolve milhões de pessoas.
A Comirnaty, que já havia demonstrado
uma eficácia de 91% nas pesquisas, até superou os resultados quando aplicada em
larga escala em países como Israel e Estados Unidos.
"Os dados de efetividade que vemos
hoje das nações com a imunização mais adiantada confirmam essa taxa superior a
90% e corroboram a necessidade do esquema de duas doses para garantir o maior
potencial de proteção", informa.
A despeito das negociações com o Governo
Federal do Brasil e todos os e-mails e propostas não respondidos, que estão
sendo apurados pela CPI da Covid, Spinardi classifica como
"gratificante" poder acompanhar todas as etapas de estudos e ver a
vacina finalmente chegar ao Brasil.
"O desembarque das primeiras doses
no país foi um momento de muita esperança. A gente passou efetivamente a
entender que podíamos fazer parte da solução para o problema que estamos
vivendo", admite.
Mas é claro que essa esperança fica
muito próxima de outros sentimentos, como o estado de alerta constante com os
boatos e as notícias falsas.
E essas teorias da conspiração vêm de
todos os lados: o exemplo mais notório foi o próprio presidente Jair Bolsonaro
(sem partido) que, em dezembro de 2020, se envolveu numa polêmica ao comentar
sobre as negociações com a Pfizer:
"Lá no contrato da Pfizer, está bem
claro: nós (a Pfizer) não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral.
Se você virar um jacaré, é problema seu", discursou.
Embora essa relação entre a vacina e
"virar jacaré" possa parecer piada e até tenha gerado muitos memes, a
verdade é que não se sabe o quanto uma fala dessas pode abalar a confiança da
população, que precisa estar engajada e convencida da importância de ir até o
posto de saúde para se proteger.
Sem citar nenhum exemplo específico,
Spinardi atesta que a melhor maneira de lidar com as notícias falsas é apostar
na informação.
"As pessoas têm o direito de fazer
perguntas e precisam encontrar respostas. Há muito medo, por exemplo, com os
efeitos colaterais. Então é necessário que todos saibam o que podem sentir após
tomar a vacina", aposta.
De forma geral, os imunizantes já
testados e aprovados contra a covid-19 podem provocar dor no local da
aplicação, que se resolve após alguns dias. O aparecimento de febre baixa,
calafrios, dor de cabeça e outras manifestações leves e moderadas também é
frequente, mas isso não é nada fora do esperado.
Caso apareçam outros sintomas, ou esses
incômodos mais comuns persistam após três ou quatro dias, vale conversar com o
médico ou voltar ao posto de saúde para relatar o caso e receber orientações
mais personalizadas.
Como já mencionado no início da
reportagem, a diretora da Pfizer atesta que a imunização é uma estratégia
coletiva e não estamos na posição de escolher a vacina A, B ou C — seja por
medo de eventos adversos ou pela busca de uma eficácia maior.
"Precisamos entender que as vacinas
disponíveis se mostraram seguras e eficazes e o uso de todas elas, em conjunto,
é o que vai nos permitir controlar a covid-19", diz.
"Quando chegar a sua vez, vacine-se
com o imunizante que estiver disponível. E incentive as demais pessoas da sua
família, da sua rua e da sua comunidade a fazerem o mesmo", completa.
Ainda no universo dos fenômenos
recentes, não dá pra ignorar como as vacinas contra o coronavírus viraram
assunto popular e hoje aparecem em abundância nos memes.
O mais famoso deles foi produzido pelo
humorista e roteirista Esse Menino: num
vídeo que já conta com mais de 18 milhões de visualizações e 93 mil comentários
no Instagram, ele aborda a falta de respostas do Governo Federal aos
e-mails da Pfizer.
Termos como "beijinhos
científicos" e "Pifáizer" caíram no gosto popular e geraram
milhões de figurinhas de WhatsApp, fotos e outros vídeos.
No geral, a diretora da Pfizer vê essa
repercussão toda com bons olhos.
"Eu acredito muito no poder da
comunicação, de passar uma informação correta e cativar as pessoas, de modo que
elas façam a coisa certa para seu próprio bem", diz.
"Mas é importante entender que os
memes podem até chamar a atenção para o assunto, mas eles não devem ser a única
fonte de informação: as pessoas precisam buscar materiais mais completos e
contextualizados", pondera.
O que o futuro nos reserva
Passados os seis primeiros meses de
vacinação contra a covid-19 em várias partes do mundo, a discussão sobre o fim
da pandemia começa a tomar forma — ainda que esteja bastante longe de nossa
realidade.
Mas, para que isso venha a acontecer de
fato no futuro, alguns pontos-chave precisam ser resolvidos com urgência.
O primeiro deles é a desigualdade na
distribuição das doses: os imunizantes de Pfizer, AstraZeneca, Janssen e outras
farmacêuticas chegaram muito mais rápido e em maior quantidade aos países mais
ricos, enquanto alguns dos lugares menos desenvolvidos do planeta sequer
iniciaram suas campanhas.
Até abril, os países ricos já haviam
vacinado uma a cada quatro pessoas. Nas nações mais pobres, apenas um a cada
500 indivíduos havia recebido as doses contra a covid-19.
O diretor-geral da Organização Mundial
da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a classificar essa situação
de "chocante" e "grotesca".
Spinardi considera que a empresa onde
trabalha está tentando ajudar a resolver essa questão. "A Pfizer tem feito
um esforço muito grande para negociar com os governos de todos os países, sejam
eles ricos ou pobres", defende.
"E também temos parcerias com a
Covax Facility, para ampliar o acesso às doses", acrescenta.
Uma alternativa para facilitar a chegada
das vacinas e descomplicar as campanhas é a intercambialidade dos produtos de
diferentes laboratórios.
Em outras palavras, alguns especialistas
propõem misturar as vacinas: a pessoa poderia tomar eventualmente a primeira
dose da vacina da Pfizer e a segunda da AstraZeneca, por exemplo.
Isso, inclusive, está sendo avaliado por
estudos científicos em alguns países, como o Reino Unido.
Por ora, as farmacêuticas parecem não
levar em conta essa possibilidade.
"Neste momento, não temos nenhum
programa oficial para analisar a intercambialidade e nossa recomendação é
seguir com o esquema que temos hoje, de usar a mesma vacina nas duas
doses", esclarece a pediatra.
"É claro que isso pode acontecer no
futuro, mas os dados que temos por enquanto ainda são muito limitados",
avalia.
Um terceiro e último front que começou a
ser atacado nas últimas semanas é a ampliação dos públicos que poderão receber
as vacinas — a Comirnaty, por exemplo, recebeu aprovação para ser usada em
indivíduos de 12 a 18 anos no Brasil recentemente.
"A gente entende que a prioridade
agora são os adultos, especialmente aqueles com risco de desenvolver as formas
severas da doença. Mas, com o passar do tempo, só iremos conseguir controlar a
circulação do vírus quando incluirmos todos os grupos etários", explica.
"Os mais jovens representam 25% da
população mundial e em algum momento precisaremos pensar neles também",
finaliza.
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