Esta semana deve ser decisiva para um dos projetos
mais defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro e de grande repercussão na
política brasileira: a mudança nas urnas eletrônicas, que passariam a imprimir
em papel os votos computados. Esses comprovantes em papel seriam então
colocados em uma urna separada.
A PEC do voto impresso deve ser aprovada na Câmara de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados — que avalia se a matéria é constitucional ou não. No entanto, acredita-se que Bolsonaro perdeu a disputa para implantar o voto impresso como queria.
E a derrota foi política. Onze partidos — incluindo
diversas siglas do Centrão, aliado do presidente — já avisaram que não
aprovariam a PEC caso ela fosse para votação na Câmara e no Senado. Com isso,
os bolsonaristas não teriam os 308 votos necessários para mudar as urnas
eletrônicas, e a questão sequer deve chegar aos plenários do Congresso.
Se confirmada, a derrota de Bolsonaro significa que
o Brasil seguirá em 2022 com a urna eletrônica funcionando exatamente nos
moldes das últimas eleições.
Para o professor Carlos Melo, cientista político do
Insper, em São Paulo, mesmo tendo perdido essa batalha política, Bolsonaro
seguirá com sua estratégia de deslegitimar a eleição de 2022 caso seja
derrotado nas urnas, com o argumento de que faltaria transparência no sistema
eleitoral brasileiro — o mesmo que conduziu o presidente ao mandato em 2018.
"O presidente está jogando. Ele está preparado
para ter o voto impresso e para não ter o voto impresso. Ele constituiu uma
narrativa e seus eleitores acreditam nisso. A questão é: qual é o resultado que
sairá das urnas? Ele vai contestar porque faz parte da estratégia dele",
diz.
Segundo Melo, existe ainda o risco de uma repetição
no Brasil do que se viu nos Estados Unidos após a derrota de Donald Trump para
Joe Biden, com contestação violenta de resultados. No dia 6 de janeiro,
manifestantes pró-Trump, seguindo a orientação do ex-presidente de questionar o
resultado das eleições, invadiram o Congresso americano, em um episódio que
resultou em cinco mortes.
Seis meses após a posse de Joe Biden, republicanos
ainda estão promovendo uma recontagem de votos em um dos condados no Estado do
Arizona, tentando provar que houve fraude na eleição que viu Trump derrotado.
Melo diz que uma mudança no sistema de votação no Brasil permitiria inúmeros
pedidos de recontagem, como acontece nos EUA.
Mesmo em meio à grande repercussão das
investigações sobre irregularidades na compra de vacinas, assunto que tem
dominado o noticiário e a agenda do governo nos últimos dias, Bolsonaro seguiu
se manifestando sobre o voto impresso.
"Estou me antecipando a problemas no ano que
vem. Como está aí, a fraude está escancarada. Fraude", disse Bolsonaro em
vídeo publicado na sua conta no Twitter na quinta-feira (1/7). "Tiraram o
Lula da cadeia. Tornaram elegível para ele ser presidente na fraude. Isso não
vai acontecer."
Confira abaixo a entrevista com o cientista
político.
BBC News Brasil — Está sendo enterrada a ideia do
voto impresso no Brasil? Ou ela tem chances de prosperar ainda?
Carlos Melo — Em política tudo pode acontecer, e no Brasil mais ainda. Uma vez o
[ex-ministro da Economia] Pedro Malan disse que no Brasil até o passado é
incerto, quanto mais o presente.
O voto em urna eletrônica foi instituído há décadas
e você teve alternância de poder. Se houvesse uma fraude, como essa fraude
favoreceria adversários? Faria alternância de poder? Venceram eleições o PSDB,
o PT, nos Estados houve variedade grande de partidos. O próprio Bolsonaro foi
eleito várias vezes por voto eletrônico. Na última eleição, ele chega a 47% dos
votos no primeiro turno. Que indícios concretos ele tem para dizer que tem
fraude no voto eletrônico?
É interessante que nos EUA o voto é em papel e o
ídolo dele, Donald Trump, também disse que havia fraude.
É muito mais questão de contestação antecipada do
resultado da eleição do que de evidências concretas de problemas com a urna
eletrônica. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, tem feito um
trabalho importante de conscientização e esclarecimento desse voto eletrônico
que é super-auditado. Me parece que existe antes de tudo uma tentativa de
contestar o resultado das urnas antecipadamente, seja pelo voto impresso ou
não.
Se for com voto impresso, ele [Bolsonaro] vai ficar
pedindo recontagens indefinidamente. Foi o que aconteceu nos EUA com o George
Bush e o Al Gore até o Gore desistir em nome da democracia americana em 2000. E
se for pelo voto eletrônico, como você não tem como ficar pedindo recontagem
sempre, seria uma bobagem porque a máquina daria o mesmo resultado sempre, ele
vai partir para desqualificar o sistema — dizendo que o sistema é fraudado. Mas
qual é o indício disso?
Hoje a Comissão de Constituição e Justiça é
controlada por uma deputada bolsonarista [Bia Kicis (PSL-DF)] que faz parte do
grupo do presidente que divulga essa versão de fraude do voto impresso — mas
tampouco apresentou provas disso. E a CCJ tem uma força-tarefa, digamos assim,
do Bolsonarismo.
Essa questão passa na CCJ, mas as articulações do
Barroso com vários partidos, inclusive da base do governo, partidos que vêm
elegendo deputados, senadores, governadores, deputados estaduais, prefeitos,
chegou a uma conclusão de que não faz sentido.
É uma tentativa de politizar o resultado da eleição
antecipadamente. Se ganhar ou se perder, eu acho que a contestação será a
mesma. Se perder com o voto impresso, você vai para recontagens indefinidas,
sempre tentando encontrar justificativas. E com o voto eletrônico isso é
resolvido instantaneamente, não teria muito por onde ir.
BBC News Brasil — Por que esses 11 partidos pularam
fora da ideia de haver voto impresso?
Melo — Você tem
muitos parlamentares que se elegeram e se reelegeram por essas regras do jogo
de hoje — ganharam e perderam eleições com essas regras. Para mudar essas
regras, você vai criar uma insegurança completamente desnecessária.
Interessa a quem? Interessa a quem acredita em
teorias conspiratórias, não necessariamente por má fé. Mas tem aquele que não
acredita em teoria conspiratória. Ele quer ter um instrumento para tumultuar a
eleição do ano que vem. É necessário separar essa discussão em grupos.
Tem os que acreditam no sistema do voto eletrônico.
Ponto. Tem aqueles que se elegeram constantemente com esse sistema e que não
têm razão para duvidar. Tem aqueles que acreditam em conspiração. E tem aqueles
que têm uma visão de tumultuar o processo eleitoral do ano que vem.
BBC News Brasil — A eleição de 2022 já não está
tumultuada desde já? Porque com o voto impresso derrubado, um dos lados vai
argumentar que não foi aprovada uma forma mais transparente de contagem.
Melo — Vai,
assim como ocorreu nos EUA também. O Trump fez isso o tempo todo depois que se
ampliou o voto pelo correio por causa da questão da covid. A questão é se as
instituições e o eleitorado caem nessa ou não. Você tem pesquisas dizendo que a
maior parte dos pesquisados tem confiança no voto eletrônico.
Para resumir tudo em uma gíria, isso chama-se SPP —
se pegar pegou. Vai depender de instituições e do esclarecimento da maioria da
população. O que TSE tem feito, através do ministro Barroso, é tentar
esclarecer a credibilidade da urna eletrônica. Foi votado no Congresso? Perdeu?
Então resta ao TSE fazer uma grande campanha nos meios de comunicação de
esclarecimento, reforçando a credibilidade no sistema.
Vai haver aqueles que vão questionar [o resultado
das eleições], mas que questionariam com qualquer argumento, que foi o que
vimos nos EUA. É uma colagem aqui do que vimos da alt.right americana. Houve
várias contestações lá e as cortes estaduais negaram todos os pedidos do
trumpismo. E a Suprema Corte também. Isso provavelmente vai acontecer aqui. O
que temos que ver é se teremos instituições com a mesma clareza que houve lá.
BBC News Brasil — Na sua opinião, Bolsonaro sai
enfraquecido nesse episódio por não emplacar o voto impresso? Ou não?
Melo — O
presidente está jogando. Ele está preparado para ter o voto impresso e para não
ter o voto impresso. Ele constituiu uma narrativa e seus eleitores acreditam
nisso. A questão é: qual é o resultado que sairá das urnas? Se há
questionamentos, que se faça como outros países fazem. Chamem observadores
internacionais. Ele vai contestar porque faz parte da estratégia dele.
BBC News Brasil — Se perdeu um certo tempo
discutindo o voto impresso. Houve alguma melhora no sistema eleitoral que se
deixou de discutir por causa desse debate?
Melo — Sim. Por
exemplo, em 2017 o Brasil fez mudança pontuais que foram importantes — acabar
com voto proporcional de coligação que deformava bastante o sistema. Há uma
tentativa de retrocesso em relação a isso — de se desfazer essa mudança
importante de 2017. Isso ficou obscurecido por essa discussão do voto impresso.
Também pode haver aí uma cortina de fumaça com o
voto impresso. Hoje, quando a CPI está discutindo coisas importantes sobre uma
eventual corrupção no governo Bolsonaro, o presidente fez novas declarações
sobre o voto impresso. Isso é tudo um problema do que virou a política
brasileira — um conflito constante, com falta de entendimento, com pelo menos
um dos lados querendo virar a mesa.
BBC News Brasil — Novas regras para as eleições do
ano que vem precisam ser aprovadas até outubro, um ano antes do pleito. Existe
tempo hábil ainda para essas mudanças acontecerem?
Melo — Quando a
política quer, a política faz. Você vota na Comissão, isso vai para o plenário
da Câmara e depois para o Senado. Se houver consenso, vontade política geral, você
aprova isso rápido. Mas não há. Temos julho, agosto e setembro. É um tempo
curto e não há consenso.
BBC News Brasil — Esse debate sobre o voto impresso
pode gerar violência na eleição do ano que vem, ou ataques a instituições?
Melo — Voltamos
ao caso dos EUA, o 6 de janeiro [a invasão do Congresso americano em janeiro
deste ano por apoiadores de Trump]. Estamos falando de uma democracia de 1776,
com constituição única desde 1787, com quase 50 presidentes eleitos pelo voto
direto. Nenhum momento de ruptura democrática. E ainda assim você teve o seis
de janeiro?
Se você olha para o Brasil, onde a democracia é
claudicante, tropeça, volta — ainda estamos tentando estabelecer isso.
Retomamos a democracia em 1985. Tivemos de lá para cá dois impeachments. Então
se houve [violência] lá, é evidente que pode haver aqui. E talvez alguns grupos
estejam investindo nisso. Vai depender da clareza da sociedade. Por isso que
campanhas de esclarecimento precisam ser feitas. Vai depender da firmeza e da
consolidação das instituições democráticas no Brasil. Está em aberto. Riscos
existem, é claro que existem. (BBC)
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