Embora esse seja um episódio extremo,
especialistas consultados pela BBC News Brasil relatam que é possível notar um
aumento nas queixas que chegam até os consultórios relacionadas ao uso
excessivo de aparelhos eletrônicos.
Nesta reportagem, mostramos que
pesquisa com famílias brasileiras apontou que o uso de dispositivos eletrônicos
diminuiu a capacidade de comunicação, de resolução de problemas e de
sociabilidade de crianças até 5 anos. E o problema não se limita à primeira
infância — o contato excessivo com telas mexe com o cérebro de jovens, que
ainda não está suficientemente amadurecido para controlar impulsos, fazer
julgamentos, manter a atenção e tomar decisões.
"Faço parte de uma rede de
pediatras e médicos de adolescentes e nunca vi tantos relatos de problemas
causados pelo exagero na internet, seja nas redes sociais, seja pelos jogos
online", analisa a médica Evelyn Eisenstein, que coordena o Grupo de
Trabalho em Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
E uma pesquisa
feita em 2019 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil dá uma
ideia da popularidade das plataformas online entre os jovens do país. O
levantamento aponta que 89% da população de 9 a 17 anos está conectada, o que
representa 24,3 milhões de crianças e adolescentes. Desses, 95% (ou 23 milhões)
usam o celular como o principal dispositivo para acessar sites e aplicativos.
Mas os números que mais preocupam os
especialistas vêm a seguir: 43% dos jovens brasileiros já testemunharam
episódios de discriminação online. E as meninas são as mais impactadas por
conteúdos prejudiciais: 31% foram tratadas de forma ofensiva, 27% acabaram
expostas à violência e 21% acessaram materiais sobre estratégias para ficar
muito magra.
O levantamento ainda indica que um
quarto dos jovens brasileiros consideram que ficam muito tempo conectados e não
conseguem controlar muito bem esse período na frente das telas.
Por um lado, é preciso considerar que
os celulares fazem parte da rotina e é muito difícil viver sem eles. Inclusive,
quando utilizados na medida certa, esses dispositivos trazem mais benefícios
que prejuízos.
"Nem tudo é ruim quando falamos
dos smartphones. Eles também trazem coisas boas e fazem parte da
vivência do que é ser jovem hoje em dia", pondera o psicólogo Thiago
Viola, do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul.
Por outro, o exagero faz mal à saúde
da mente e do corpo — e os efeitos podem ser ainda mais danosos nas duas
primeiras décadas de vida.
"Como tudo, o problema está no
excesso e na falta de controle adequado", complementa Viola, que também é
professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Entenda a seguir como ficar muitas
horas grudado nas telas e nas redes faz mal à saúde de crianças e adolescentes
— e o que fazer quando o uso da internet ultrapassou todos os limites.
Problema que vem de berço
Uma cena que se torna cada vez mais
comum em shoppings centers, restaurantes e outros espaços públicos
é a de um adulto colocando vídeos cheios de estímulos sonoros e visuais na
frente de um bebê. A ideia é que a criança fique entretida enquanto os pais ou
os tutores fazem uma determinada atividade (como almoçar ou comprar algo, por
exemplo).
Os especialistas alertam que exagerar
nessa exposição às telas, ainda mais numa idade tão precoce, pode prejudicar o
desenvolvimento do recém-nascido.
"Quando os pais fornecem à
criança um vídeo no celular ou no tablet, isso ativa as vias de
processamento cerebral que são predominantemente passivas", explica o
médico Rodrigo Machado, do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
"E esse tipo de atividade
passiva ocupa um tempo em que o bebê poderia ser estimulado com atividades mais
ativas, que aperfeiçoam a capacidade de coordenação motora e outras habilidades
importantes nessa faixa etária."
A recomendação das entidades médicas é
que as crianças não tenham contato com as telas até completarem dois anos
Uma pesquisa
feita pela Universidade Federal do Ceará e pela Universidade
Harvard, nos Estados Unidos, em parceria com outras instituições, dá uma
dimensão do prejuízo que o acesso aos celulares e tablets nos
primeiros anos de vida pode trazer.
Os cientistas acompanharam 3.155
crianças cearenses desde o nascimento até elas completarem 5 anos de idade.
Eles descobriram que, em média, 69% de todos os participantes foram expostos a
um tempo excessivo de tela.
Nos primeiros 12 meses de vida, 41,7%
dos recém-nascidos tiveram acesso a vídeos e outros estímulos visuais passivos
além da medida, porcentagem que aumenta e bate os 85,2% quando eles chegam aos
4 e 5 anos.
O trabalho ainda apontou que cada
hora de uso desses dispositivos eletrônicos diminuiu consideravelmente a
capacidade de comunicação, de resolução de problemas e de sociabilidade dos
pequenos.
Os autores concluem que "o
excesso de exposição às telas é altamente prevalente e esteve associado de
forma independente aos problemas de desenvolvimento em crianças menores de 5
anos".
Uma cabeça em construção
Mas o problema não se limita à
primeira infância: mesmo crianças um pouco mais velhas precisam ter o acesso
limitado e supervisionado ao mundo digital, garantem os especialistas.
Para entender como o contato
excessivo com as telas afeta o bem-estar mental dos jovens, é preciso
considerar que o cérebro não nasce pronto: ele se desenvolve pouco a pouco ao
longo das primeiras três décadas de vida.
Algumas partes desse órgão vital só
amadurecem completamente quando chegamos lá pelos 25 ou 30 anos.
É o caso, por exemplo, do córtex
pré-frontal. Essa região cerebral é responsável, entre outras coisas, por
controlar impulsos, fazer julgamentos, resolver problemas, manter a atenção e
tomar decisões.
"É por isso que os adolescentes
são mais impulsivos e têm esse comportamento típico de explorar e
experimentar", relaciona Machado.
"Com o córtex pré-frontal ainda
imaturo nessa faixa etária, ficamos mais propensos a buscar o prazer sem pensar
em todas as consequências", complementa o psiquiatra.
Agora, imagine o que acontece quando
esse cérebro em formação é exposto a um turbilhão de estímulos prazerosos,
disponíveis facilmente em qualquer plataforma online.
"Os estudos que analisam o
funcionamento cerebral mostram que algumas regiões relacionadas à aceitação do
convívio em sociedade ficam muito ativas quando os jovens usam as redes
sociais", detalha Viola.
"Se um adolescente posta algum
conteúdo, como uma foto ou um vídeo, e começa a receber respostas em formas de
curtidas, comentários e compartilhamentos, isso estimula um circuito cerebral
relacionado à sensação de prazer e recompensa", continua o especialista.
E uma característica comum de todos
os mamíferos, incluindo os seres humanos, é sempre querer mais. Quando somos
expostos a uma fonte de prazer e sensações boas, vamos buscar aquilo de novo,
numa frequência cada vez maior.
Ou seja: o retorno positivo que recebemos
quando compartilhamos algo nas redes sociais é um incentivo para postarmos mais
e mais, numa espécie de círculo vicioso marcado por uma busca constante por ser
relevante e influente na internet.
E hoje em dia já é consenso entre
especialistas de que é possível criar uma dependência não apenas de substâncias
químicas, mas também de comportamentos, como os jogos de azar ou o uso de
dispositivos eletrônicos.
"Do lado oposto, quando somos
rejeitados, criticados ou cancelados nas mídias sociais, isso ativa circuitos
cerebrais relacionados ao medo e à agressividade, o que pode ter proporções
imensas no estado psicológico de um indivíduo mais jovem", observa Viola.
Mais repercussões na cabeça (e no
resto do corpo)
Além desse balanço delicado entre
estímulos positivos e negativos, o cérebro de crianças e adolescentes pode ser
impactado pelo uso excessivo dos celulares por outros meios.
"A luz emitida pelas telas inibe
a produção da melatonina, um hormônio essencial para a indução do sono",
exemplifica Eisenstein.
"E nós sabemos que os mais
jovens precisam dormir, no mínimo, entre 9 e 10 horas por dia",
acrescenta.
Boas noites de sono são essenciais
para o desenvolvimento do corpo e da mente. Se o descanso noturno não é
adequado logo nesses primeiros anos de vida, as consequências à saúde podem
perdurar por toda a vida.
"Quem não dorme bem têm mais
transtornos de irritabilidade e de comportamento e pode apresentar dificuldades
de aprendizagem", lembra a pediatra.
A representante da SBP também chama a
atenção para os efeitos que o uso prolongado desses aparelhos pode trazer para
outras partes do corpo em desenvolvimento nas crianças e nos adolescentes.
"O excesso de telas pode levar à
inatividade física, que está relacionada com sobrepeso e obesidade. Na direção oposta,
o acesso a conteúdos sobre emagrecimento e a busca de um corpo idealizado
aumenta o risco de transtornos alimentares", lembra.
"Fora a maior frequência de
problemas auditivos, pelo uso de fones de ouvido num volume alto, e de visão,
pela falta de vivência em espaços abertos, que estimulam uma visão de longo
alcance", lista a pediatra.
Como desatar esse nó?
Considerando o fato de que os
celulares são parte da rotina da vasta maioria das pessoas, será que é possível
ter uma relação mais saudável com a tecnologia? E como identificar as situações
em que o uso desses dispositivos ultrapassou os limites, especialmente na
infância e na adolescência?
"A primeira coisa é estabelecer
limites. A criança e o adolescente precisam saber que podem entrar na internet
por um determinado número de horas por dia", sugere Viola.
A recomendação de tempo varia de
acordo com a faixa etária. Em diretrizes
publicadas recentemente, a SBP indica que crianças menores de dois
anos não tenham nenhum acesso às telas.
Dos três aos seis anos, é possível
ofertar atividades em dispositivos eletrônicos por 30 minutos a uma hora,
sempre com a supervisão de um adulto.
E, entre o sexto e o décimo ano de
vida, é possível ampliar um pouquinho esse limite, desde que exista um acompanhamento
de alguém responsável.
"É muito importante mesclar as
atividades online com outros momentos de lazer, brincadeiras e
conversas presenciais entre familiares e amigos", continua o psicólogo.
"Já os pais de crianças menores
não podem usar o celular ou o tablet como bengala, para deixar
a criança entretida enquanto eles fazem outras atividades", acrescenta.
Eisenstein também joga a
responsabilidade no colo das grandes empresas de tecnologia. "Elas ganham
bilhões todos os anos e querem justamente fisgar esse público mais jovem, para
que eles se transformem em novos consumidores", critica.
"É preciso pensar na
responsabilidade social de companhias como Google, YouTube, Facebook, entre
outras, que só estão começando a se preocupar com esse aspecto mais recentemente",
cita.
A pediatra também entende que os
governos devem criar leis para proteger melhor a população mais jovem de todos
os malefícios do abuso das plataformas digitais.
Por fim, vale reforçar que existem
formas de identificar e tratar os quadros de vício no uso de celular e outros
dispositivos eletrônicos.
"A primeira coisa é observar se
a prática está prejudicando algum aspecto da vida daquele indivíduo. Se ele
apresenta dificuldades nos âmbitos social, profissional, educacional ou
familiar, é necessário buscar a avaliação de um profissional de saúde",
orienta Machado.
Alguns exemplos práticos desse
prejuízo são a queda no rendimento escolar, a substituição do dia pela noite, a
ausência do jovem nas refeições e a falta de uma rotina estabelecida.
Para os casos em que há diagnóstico
de um transtorno, é possível intervir por meio da terapia
cognitivo-comportamental, uma abordagem da psicologia que busca analisar,
racionalizar e propor intervenções nos hábitos e nos pensamentos do paciente.
"Nesse contexto, a primeira
intervenção é se desconectar aos poucos. De nada adianta castigar ou tirar o
celular da criança ou do adolescente de forma brusca e definitiva", aponta
Eisenstein.
"E, claro, esse ato de se
desconectar da internet precisa envolver todos os integrantes da família, não
apenas os jovens", destaca a pediatra.
A resposta das empresas
A BBC News Brasil entrou em contato
com as principais empresas de tecnologia para saber como elas enxergam a
discussão sobre o uso das plataformas e das mídias sociais por crianças e
adolescentes.
Por meio da assessoria de imprensa, a
Meta, que é dona de Facebook e Instagram, disse que é proibido que indivíduos
com menos de 13 anos criem perfis nas plataformas. O único contexto em que as
crianças têm acesso a alguma ferramenta da companhia é no Messenger Kids,
lançado em 2017.
"Em setembro de 2021, passamos a
pedir a data de nascimento dos usuários do Instagram que ainda não a tinham
compartilhado como parte de nossos esforços para evitar que crianças tenham
acesso à plataforma", informaram.
"Mais recentemente, em fevereiro
deste ano, o Instagram lançou, globalmente, o 'Faça uma Pausa', um recurso
desenvolvido para ajudar as pessoas a terem maior consciência sobre o tempo que
passam conectadas. Após ativá-lo, as pessoas recebem lembretes para fazer uma
pausa no uso do aplicativo após determinado período de tempo navegando pela
plataforma — 10, 20 ou 30 minutos. Durante o período de testes da ferramenta,
mais de 90% dos adolescentes que configuraram o recurso o mantiveram
ativo."
"Semana passada, a Meta lançou,
nos Estados Unidos, a Central da Família, um novo espaço onde os pais podem
supervisionar as contas de seus adolescentes nas tecnologias, configurar e
utilizar recursos de supervisão parental, além de acessar informações sobre a
melhor forma de conversarem com os adolescentes sobre o uso da Internet em
um hub educacional. A ferramenta foi desenvolvida em conjunto
com especialistas, pais, tutores e adolescentes e deve chegar ao restante do
mundo até o fim do ano", finaliza o texto.
O Google declarou acreditar "que
as crianças devem poder experimentar o melhor da tecnologia, enquanto suas
famílias se sentem seguras em deixá-los explorar a vida digital."
"Por isso, estamos continuamente
criando e aprimorando ferramentas para que as experiências online das crianças
sejam de qualidade e educativas, e, principalmente, que ajudem as famílias a
construir hábitos digitais saudáveis", escrevem os representantes da
empresa.
Alguns exemplos dados como resposta
desse aprimoramento contínuo do Google foram lançamentos como o Family
Link (que permite gerenciar as experiências online das crianças) e
o Kids Space (um espaço de aprendizado pela internet).
Clarissa Orberg, gerente de parcerias
de conteúdo para entretenimento infantil, educação e saúde no YouTube e
responsável pelo YouTube Kids no Brasil, salientou que o objetivo da plataforma
"sempre foi promover um ambiente saudável e apropriado para as crianças,
adolescentes e famílias".
"Entendemos que, hoje, os jovens
estão se conectando cada vez mais cedo e por longos períodos, por isso, ao
longo dos últimos anos, lançamos novas funcionalidades e adotamos medidas que
ajudam na conscientização sobre o uso dos aplicativos, tanto para as crianças,
quanto para seus pais e responsáveis", disse.
"Muitas vezes, as crianças e
adolescentes não têm consciência dos limites de conteúdo e tempo de uso. Por
isso, acreditamos que ferramentas que desenvolvemos como a de timer,
desativar pesquisa, desativar a reprodução automática, ou a de lembretes para
pausas, são fundamentais para criar um ambiente mais saudável",
exemplifica Orberg.
Por fim, o Twitter respondeu dizendo
que "tem como prioridade oferecer um ambiente seguro às pessoas e, para
isso, estabelece parcerias com organizações em segurança online para
o aprimoramento contínuo dos mecanismos de segurança na plataforma".
"Os serviços do Twitter não são
direcionados a crianças e não podem ser usados por pessoas com menos de 13 anos
de idade. Qualquer conhecimento sobre um usuário abaixo da idade permitida pode
ser denunciado por meio da Central de Ajuda", conclui a nota, enviada à
BBC News Brasil. (BBC)
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