E o mesmo se pode dizer do período posterior, a
redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes
cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única
- e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina
Marina Franco, que pesquisa o tema.
Franco é professora da Universidade Nacional de San
Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del
Cono Sur y Sus Legados ("Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e
Seus Legados", em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras
no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira),
publicado em 2021.
A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países
a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder.
Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín
assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de
Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos
humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime.
O país levou à prisão perpétua o general Jorge
Rafael Videla, que governou o país entre 76 e 81 e, até março de 2022, a Justiça havia condenado outras
1.058 pessoas em 273 sentenças por crimes relacionados ao
terrorismo de Estado.
O Brasil é um exemplo do lado oposto. A lei de
anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 - o que significa que a grande
maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode
ser julgada.
O órgão instituído para investigar os crimes
relacionados à ditadura, por sua vez, foi criado apenas em 2011. Trata-se da
Comissão Nacional da Verdade, que, em seu relatório final, em 2014, apontou 377 nomes entre os autores
de graves violações aos direitos humanos.
A primeira condenação de um agente havia ocorrido
ano passado, quando um juiz federal responsabilizou o delegado aposentado
Carlos Alberto Augusto pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte nos anos 70 (o
entendimento foi de que o sequestro é um crime continuado e, portanto, não
coberto pela lei de anistia). Em fevereiro deste ano, contudo, o Tribunal
Regional Federal da 3ª Região acatou um recurso da defesa, que alegava
prescrição do caso, e extinguiu a punibilidade do ex-delegado.
Em entrevista à BBC News Brasil, a historiadora
explica por que considera, entre os vizinhos do Cone Sul, o Brasil como um caso
"extremo" da chamada justiça de transição, sendo o que menos
investigou, julgou e puniu crimes da ditadura.
Fala ainda sobre a importância dos áudios revelados
nesta semana em que membros do Supremo Tribunal Militar admitem a prática de
tortura durante a ditadura militar e sobre como o processo de redemocratização
à brasileira explica o momento atual do país.
BBC News Brasil - Quando olhamos para os países da
região após o fim das ditaduras, a Argentina parece ser o que com mais afinco
se debruçou sobre a questão da justiça de transição. A revogação da lei de
anistia, a criação do Conadep, a prisão de Videla, os julgamentos que acontecem
até os dias de hoje. O país é um caso particular? Se sim, por quê?
Marina Franco - A Argentina é um caso particular em relação a
como se resolveu a saída da transição. É diferente do Uruguai, do Chile, do
Brasil. Se você olhar a partir do presente, é o melhor, é um modelo de como se
julgar e investigar esses crimes.
Agora, isso não se deve ao fato de que a Argentina
em si seja um país modelo ou de que nós argentinos sejamos mais justos, com
mais memória ou mais democráticos. Não tem nada a ver com isso.
O que aconteceu na Argentina foi que existiram as
condições políticas para que pudesse haver justiça transicional. Essas
condições políticas são três, para mim, muito claras.
As Forças Armadas saem de cena completamente
derrotadas e fracassadas. Deixaram o poder com um fracasso político terrível,
com um fracasso em uma guerra desastrosa - a Guerra das Malvinas -, com um
fracasso econômico e uma crise atroz.
Isso é o inverso do que aconteceu no Brasil.
Durante o governo militar no Brasil se produziu um milagre econômico - muito
questionado, mas houve um momento de crescimento.
Aqui, quando as Forças Armadas deixaram o poder
havia 300% de inflação mensal. Não há governo que resista a isso. E é o momento
em que se começam a descobrir os crimes. A debilidade absoluta das Forças
Armadas quando saem do poder cria as condições para que, se viesse um governo
disposto a investigar e julgar, se pudesse fazê-lo.
E o governo que veio [de Raúl Alfonsín,
representante do partido União Cívica Radical (UCR), rival histórico do
movimento peronista] efetivamente teve essa vontade. A outra força política que
poderia ter ganhado aquelas eleições, o peronismo, não pensava em investigar e
julgar.
Então o que se deu foi uma confluência de
elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se
julgasse.
O último elemento - e é importante que isso fique
claro - é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um
critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças
Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e
julgamento - ou seja, as políticas de Estado - criaram um consenso social sobre
o que havia acontecido.
BBC News Brasil - Às vezes parece que o caminho é
inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos
e punições…
Franco - Justamente, mas o que aconteceu foi que, no
final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido,
sobre o desaparecimento forçado de pessoas.
Naquele momento, a maioria acreditava que essas
pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os
efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da
sociedade.
E aqui me parece importante destacar, pensando no
caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A
ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para
entender algumas das coisas que acontecem no país.
As políticas de Estado de memória, de justiça, as
políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social,
e acredito que a Argentina seja um desses casos.
Acho que o mais notável no caso argentino são os
efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro,
também existe.
BBC News Brasil - O Brasil parece um exemplo no
sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão
da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora
vê esse processo - é também um caso particular?
Franco - Bom, todos os casos são particulares. Nesse
sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e
justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e
no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e
limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram.
O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei
de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um
consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma
vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida.
A Comissão da Verdade, como você mencionou, é
bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes,
que era o PT, demorou para fazê-lo.
E aí é importante agregar outro ponto. A lei de
anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores
ao regime - e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente.
Então há um interesse de todas as partes nessa
possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina,
porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou
faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos.
Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de
que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai,
por exemplo, com seu Frente Amplio.
Isso faz com que o jogo político posterior decida
como se vê a situação prévia.
Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de
forças.
BBC News Brasil - A ideia é de que poderia ser
"desconfortável" para esses grupos tocar em assuntos como os grupos
paramilitares de esquerda?
Franco - Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder,
por exemplo, é constantemente "acusada" de ser guerrilheira.
BBC News Brasil - Parece haver uma tensão
permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis
Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta
semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura,
desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, "só varrem
um lado, não varrem o outro".
Franco - Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos
julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha
sido a violência das organizações revolucionárias - que, aliás, na Argentina
foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a
violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas.
Em certa medida essa discussão está resolvida aqui.
Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do
Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível.
Acho que essa é uma diferença marcante, e é
resultado das políticas de investigação e justiça.
BBC News Brasil - Também comentando sobre os
áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de "coisa do
passado", que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a
julgamento.
Como historiadora e pesquisadora das ditaduras
latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse
período e da forma como tratá-los?
Franco - A importância dos áudios é absolutamente
crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento
sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha
havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso
aconteceu.
Me parece fundamental que isso seja divulgado, que
circule, que seja discutido.
Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as
vozes negacionistas e as vozes revisionistas.
Um historiador não precisa dessas provas hoje no
Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que,
socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória,
para que se entenda realmente o que aconteceu.
A verdade histórica não necessita de prova, mas, em
um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro.
BBC News Brasil - Que consequências práticas esse
processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no
pós-ditadura têm?
Franco - Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma
coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de
processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos
sociais massivos pró-democráticos.
Dificultam a criação de mecanismos de controle,
mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis.
Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que
as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública ["seguridad
interior"], que o
Estado seja militarizado, que exista alguém que
reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas
vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas - e socialmente
rechaçadas.
BBC News Brasil - Outra questão quando se fala em
redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na
Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante
diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como
chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo?
Franco - O processo de desmilitarização no Brasil foi
muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro
mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando
Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado.
E não só o Estado, mas também as concepções sobre
ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas.
Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente
repressivo.
E volto àquele ponto: a grande diferença é a
situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no
Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder
Executivo, mas não saem derrotadas.
O mesmo acontece com um outro grande caso, o do
Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e
controle de peso no jogo político. (BBC)
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