Conduzido por pesquisadores da britânica Lancaster University, da
Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da
Universidade do Pará, o estudo, já revisado, e recém-publicado pela Scientific
Reports (do grupo Nature) expõe um paradoxo: o avanço do desmatamento na
floresta amazônica, impulsionado pela criação de áreas de pastagem para bois,
tende a reduzir a oferta de carne de caça para indígenas, ribeirinhos e
comunidades tradicionais amazônicas, grupos socialmente vulneráveis.
Enquanto o pasto avança, no entanto, a possibilidade da carne bovina
chegar ao prato dessa população segue sendo remota. Com menos carne disponível,
as crianças da região ficam sujeitas à anemia.
"Vale a pena deixar claro que as pessoas na zona rural na Amazônia
praticamente nunca consomem carne bovina. Em média, essas famílias comem bife
uma vez a cada dois meses. Portanto, a carne bovina não está apoiando a
segurança alimentar e nutricional dessas crianças", afirma o cientista
social Luke Parry, da Lancaster University.
O Atlas da Carne de 2021, elaborado pela Fundação alemã Heinrich Böll,
que se dedica ao rastreio das causas ecológicas, indica que 63% das áreas
desmatadas na Amazônia são convertidas em pasto para gado. Mas a carne
produzida ali não é, via de regra, consumida localmente.
Entre os motivos para que a presença de um filé de boi seja tão raro na
mesa de uma família ribeirinha estão não só o preço da carne, alto para a renda
familiar média nessas áreas, mas também a falta de energia elétrica e de
qualquer condição de refrigerar e estocar o alimento, altamente perecível. O
consumo de frango também é incomum.
Por outro lado, enquanto o Brasil bate recordes de desmatamento - com a
destruição de mais de 13 mil km2 só no ano passado (maior perda desde 2006) -
uma série de estudos já mostrou como a fauna é duramente afetada pela
devastação de seu habitat.
Não só muitos animais morrem no momento da queimada ou da derrubada da
vegetação, mas também predadores perdem suas melhores fontes de alimento,
espécies deixam de encontrar locais de acasalamento e os animais ficam mais
expostos e vulneráveis, o que, com o passar do tempo, provoca uma redução
significativa das espécimes pra caça.
"Na própria Amazônia, a população relata isso. Quando há uma
degradação do ambiente, animais cuja carne é muito valorizada, como a anta ou a
queixada, costumam sumir da região bem rápido. Outras espécies, como a paca,
parecem ser mais resilientes à devastação ou à caça predatória", afirma a
pesquisadora Patrícia Carignano Torres, da USP, uma das autoras do estudo.
Eventos extremos, como fortes secas ou cheias atípicas, que têm atingido
a região amazônica nos últimos anos, contribuem ainda mais para o desequilíbrio
ambiental nas áreas já degradadas por ação humana.
"Há boas razões para pensar que as mudanças climáticas e o
desmatamento da floresta aumentam os riscos para as crianças que hoje já
enfrentam insegurança alimentar e desnutrição", diz Parry.
De acordo com uma projeção feita pelos pesquisadores, uma perda
significativa na oferta de carne de caça disponível na região hoje levaria o
índice de anemia na primeira infância ali a aumentar em 10%. Isso significa
que, apenas no Estado do Amazonas, até 3,7 mil crianças da zona rural passariam
a sofrer de anemia.
Na Amazônia rural, seis em cada dez crianças têm anemia. No Brasil, uma
em cada dez
Os pesquisadores visitaram 1.100 domicílios, escolhidos de modo
aleatório, em 4 municípios do Amazonas, o mais distante deles a mais de 2 mil
quilômetros da capital Manaus. No total, os pesquisadores estiveram em 58
vilarejos amazônicos, 44 deles acessíveis apenas por barco.
Para entender o papel da carne de caça na saúde das pessoas, eles
cruzaram os hábitos alimentares da população local com a contagem da proteína
hemoglobina presente no sangue de 610 crianças - o indicador ideal para
diagnosticar a anemia.
Bastava uma gotinha de sangue, retirada do dedo da mão dos pequenos na
hora da pesquisa, para verificar em minutos se a criança estava ou não anêmica.
Ainda assim, para boa parte da população local, o exame - e o resultado - foi
uma grande novidade, já que o atendimento à saúde na região é precário.
Os pesquisadores descobriram que nas cidades amazônicas, onde o consumo
médio de carne de caça não chega a duas vezes por mês, parece haver pouco
impacto dessa fonte de proteína na saúde na primeira infância. Já nas zonas
rurais e remotas, onde o consumo de carne de caça médio por família varia entre
4 e 8 vezes por mês, pacas, antas, bugios, jabutis e queixadas são
indispensáveis no crescimento e desenvolvimento das crianças. O consumo de
peixes, abundante nos dois grupos, não demonstrou efeito sobre a prevalência da
doença sanguínea nas crianças.
A anemia é uma doença que surge pela falta de ferro no organismo e se
caracteriza pela baixa quantidade de hemoglobina no sangue. A hemoglobina, que
dá ao sangue sua tonalidade vermelha característica, é a responsável por levar
oxigênio para todas as partes do corpo. Se o sangue de uma criança não consegue
abastecer o organismo com a quantidade necessária de oxigênio, seus órgãos e
músculos terão dificuldades de se desenvolver de modo saudável. É como se
faltasse ar para que as células possam respirar e trabalhar - e até por isso
alguns dos sintomas típicos dessa doença são o cansaço, a fraqueza e a palidez.
A prevenção da anemia é feita por meio de uma alimentação rica em ferro (carnes
vermelhas, vegetais de cor escura, ovos, leguminosas).
"A anemia, especialmente até os 5 anos de idade, costuma acarretar
em déficit no desenvolvimento físico e cognitivo dessas pessoas, que vai se
traduzir numa dificuldade de aprendizagem na idade escolar e terá efeitos até a
vida adulta, na qualidade do trabalho que aquela pessoa poderá desempenhar e, por
isso mesmo, nos empregos que vai obter. Estudos no mundo todo têm apontado para
o papel da anemia no ciclo da pobreza: a criança, anêmica por estar em família
vulnerável, se torna um adulto de baixa remuneração que tende a repetir o
processo de constituir uma família vulnerável, com filhos com anemia e assim
por diante", explica Torres.
Nesse sentido, embora a carne de caça represente alguma segurança
nutricional para essas crianças, os pesquisadores apontam que ela não é uma
"bala de prata" para salvar a infância da Amazônia. E provam isso com
dados: segundo o Ministério da Saúde, em 2020, a taxa de anemia medida
nacionalmente em crianças entre 6 meses e 5 anos de idade foi de 10%. Ou seja,
uma em cada dez crianças brasileiras na primeira infância vive com a doença. Já
nas áreas rurais amazônicas visitadas por Torres, Parry e seus colegas, o
índice salta para 60%: a cada dez crianças de até 5 anos nessas localidades,
seis estavam anêmicas.
"Sequer sabemos hoje quais micronutrientes esses animais selvagens
possuem, nunca houve estudos disso. Essas crianças vivem com privação de uma
série de vitaminas e minerais. E sabemos que se a carne de caça segura um pouco
esses índices de anemia, ela não resolve por completo o problema, como vemos
pela quantidade de crianças anêmicas", afirma Torres.
Embora o tratamento da anemia seja relativamente simples - a ingestão
regular de cápsulas de ferro ou de farinha enriquecida com o metal, por exemplo
-, é difícil o acesso dessa população a profissionais de saúde que possam
orientar os pais ou responsáveis e garantir a regularidade da distribuição
gratuita do suplemento.
Durante o estudo, com frequência os pesquisadores foram interpelados a
fazer exames em pessoas na comunidade que sequer faziam parte da amostra
pesquisada, mas viam na presença dos profissionais uma rara oportunidade de
obter informações sua condição de saúde.
A Amazônia tem 1,1 médico para cada mil habitantes, enquanto no Sudeste
do Brasil há 2,8 médicos para cada mil residentes. E dentro da própria Amazônia
há desigualdade: em Manaus, há 2,8 médicos para cada mil habitantes em
comparação com média de 0,2 médico nos municípios amazonenses com até 50 mil
habitantes. "Os cuidados de saúde das crianças são particularmente irregulares.
O Estado do Amazonas cobre 1,6 milhão de km2 e tem 3,8 milhões de pessoas, mas
apenas 344 pediatras, predominantemente localizados na capital do estado.
"A negligência a que as populações ribeirinhas têm sido relegadas
faz com que o índice de desenvolvimento humano dessas áreas seja menos parecido
com o do Brasil e mais similar ao da Zâmbia", diz Luke Parry.
Caça e conservação
Um dos aspectos mais controversos da importância da carne de animais
silvestres para a saúde de crianças em famílias vulneráveis e em áreas de
floresta é que a prática da caça pode também se mostrar destruidora do
ecossistema de que essas populações dependem para viver.
Esse é um problema enfrentado não só na Amazônia, mas também na África.
Antes do artigo de Torres e Parry, uma pesquisa de menor monta em Madagascar já
havia indicado que menores de 12 anos em uma das vilas da ilha dependem da
carne de caça para afastar a anemia. O mesmo parece ser verdade para países
como o Congo, Nigéria e Equador, embora faltem pesquisas definitivas.
Ao mesmo tempo, cientistas têm descrito o que chamam de "bushmeat
crisis" ou "crise da carne de caça", um processo de predação
massiva de espécies nos países da África Ocidental e na bacia do Rio Congo, que
representa hoje a maior ameaça de extinção para os grandes primatas, outras
espécies de macacos, elefantes e antílopes.
Já no Brasil, é crime o ato de "matar, perseguir, caçar ou
apanhar" espécies da fauna silvestre - nativas ou migratórias - estejam
elas em extinção ou não. Estão vedadas a ação de caçadores comerciais,
profissionais ou esportivos, embora a fiscalização seja frequentemente
insuficiente.
Quem for apanhado, mesmo que com um único animal capturado, está sujeito
à pena de prisão de 6 meses a 1 ano, e ao pagamento de uma multa. Como exceções
à regra estão os caçadores que obtêm licenças especiais junto aos órgãos
ambientais ou autorizações temporárias de caça de uma determinada espécie para
controle de população - como no caso recente dos javalis/ javaporcos em São
Paulo.
A lei diz ainda que não é crime abater um animal se o caçador estiver
"em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua
família". Mas o texto é criticado por ambientalistas e sociólogos porque
não define parâmetros para proteger a caça científica - quando os animais são
coletados para estudo - e a de subsistência. "A lei brasileira é confusa e
a caça de subsistência fica em um limbo. Na prática cabe ao agente, na hora da
fiscalização, definir o que é fome e o que é necessidade dessas famílias e se
elas estariam cometendo crimes ou não", nota Torres.
Segundo Parry, que estuda a região amazônica há anos, as populações que
mais dependem da caça para seu bem-estar - as em zonas rurais e vulneráveis -
são também aquelas com menos probabilidade de fazer uma caça predatória,
massiva e destrutiva, apesar da falta generalizada de instruções de manejo.
"Em muitas áreas, a caça é bastante sustentável, principalmente em
comunidades mais remotas, quando temos poucas famílias e muita floresta ao
redor. Quanto mais perto das cidades, maiores os riscos de caça excessiva,
porque há uma maior densidade populacional e uma área florestal já mais em
risco", diz o cientista social britânico.
Os dados sugerem que não basta a conservação ambiental para salvar
espécies de extinção e crianças da anemia. "A Amazônia precisa de um
desenvolvimento econômico sustentável, que mantenha a floresta em pé ao mesmo
tempo em que gere mais renda para que a população local tenha acesso a melhores
alimentação e práticas de saúde", resume Torres.
Enquanto isso não acontece, no entanto, ela é categórica em dizer que o
Estado brasileiro não deve criminalizar quem caça para comer.
"Nossos resultados deixam claro que não se deve proibir o acesso da
população à carne de caça, não só por questões culturais e sociais, mas porque
parte do bem-estar e desenvolvimento dessas crianças dependem disso", diz
Torres. (BBC)
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