- Olha o amendoim. Um real.
Baratinho - grita a vendedora Luciana Azevedo, de 35 anos.
- Olha a bolsa. Olha a mochila
novinha - oferece Ambrósio Santos, de 49, à fila que se formou.
- Compro ouro, compro
ouro - clama Thiago Neri, de 21.
Todos
querem chegar à fila para o próximo ônibus. “Corre para não perder a vez”,
gritam da janela de um dos carros. “Olha a fila”. O ônibus aquece. A luz do dia
vai se apagando. “Olha a fila. Vamos! Quero ir pra casa, moço!”, diz a
padeira Claudia Azevedo, de 50 anos
Há
pressa nos olhares e nos passos. Chegadas e partidas nas caminhadas feitas
em filas, em linhas retas, em corridas curvas. Há pressa, mas também é preciso
moderar o passo, como em um cortejo, para não pisar o pé da frente.
Esses passos corridos fazem o som que compete com o barulho dos motores
dos ônibus. O cheiro da fumaça dos coletivos se mistura com o da pipoca, do
amendoim, do pastel, do tacho de cocada…
É a
volta para casa na terceira metrópole brasileira, de mais de 3
milhões de habitantes, onde transitam cerca de 1,9 milhão de veículos, segundo
estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
A
Rodoviária do Plano Piloto é um terminal de ônibus de pelo menos 284 linhas que
rodam no Distrito Federal e cidades do Entorno de estados vizinhos. É como
uma cidade por onde passam 700 mil pessoas por dia.
Fica
exatamente no coração da cidade, no centro das asas Sul e Norte, do Plano
Piloto fundado em 1960. Está no cruzamento do eixos Monumental e
Rodoviário, com vista para a Esplanada dos Ministérios. É como um espelho
que reflete corres e lutas que humanizam aquela que parece ser apenas
uma cidade administrativa. No anoitecer, o coração da capital pulsa forte.
O arquiteto Lucio Costa, que projetou a
“capital da esperança”, se surpreendeu quando voltou a Brasília, na década de
1980, e deparou com a rodoviária. “Ao invés daquele centro
cosmopolita requintado que eu tinha elaborado, [a plataforma] tinha sido
ocupada pela população periférica, a população daqueles candangos que trabalham
em Brasília”, constatou. “O povo dando vida, dando sangue, dando suor,
dando suas lágrimas. Esse foi um grande momento da criação do projeto e da
realidade que o próprio Lúcio Costa viu. Foi um tsunami de emoção do grande
urbanista”, contextualiza o professor de urbanismo Frederico
Flósculo, em entrevista à Agência
Brasil.
Hoje,
aos 62 anos de Brasília - completados nesta quinta-feira (21) -, Flósculo
entende que a periferia deva ser respeitada e reconhecida na história da
cidade. “Nós não temos uma periferia: aqui nós temos uma centralidade de
povo, que ergueu uma espécie de altar em sacrifício à essa coisa cotidiana
de fazer a cidade”.
Faz
a cidade de Brasília a paraibana Claudia Azevedo, de 50 anos, na fila à espera
pelo ônibus para a Asa Norte. Ela deixou João Pessoa para mudar de vida no
Distrito Federal - um sonho concretizado em 1986. Foi morar na Cidade
Ocidental, a 50 quilômetros da capital. Foi cuidadora de idoso. Foi doméstica.
Foi feliz. No último emprego, aprendeu a fazer pão artesanal e virou padeira.
Para isso, acostumou-se com a madrugada.
Para
chegar cedo ao trabalho, acorda às 4h. Vai para a rodoviária e ruma para a
padaria. “O pão demora dez horas para ser feito. É por fermentação natural.
Fazer pão é como uma terapia. Na verdade, Brasília me deu muitas
oportunidades”. Ela organiza-se para ir para casa às 19h.
Depois
de um dia inteiro na lida atento, o segurança pernambucano Antônio Silva, de 59
anos, também não vê a hora de chegar à sua casa. Está com os olhos
cansados e não quer saber de foto. Ainda está de paletó e gravata (agora um
pouco afrouxada de final de dia). Conversa baixo enquanto percorre o caminho à
escada do ônibus. Há 30 anos, deixou Betânia (PE). Hoje vive com os dois filhos
e três netos no Paranoá, região administrativa que cresceu ao redor do canteiro
de obras para a construção da barragem.
Dezenove
horas é o fim do expediente também para o vendedor de bolsas e mochilas
Ambrósio Santos, de 49. Em 2012, ele deixou a cidade de São Domingos do
Maranhão (MA), com a família. Foram 24 horas de ônibus ou 1,7 mil quilômetros,
para, sem arrependimentos, tentar a vida. Hoje, mora na Ceilândia, a maior região
administrativa do Distrito Federal, com 450 mil habitantes. No ônibus, carrega
a marmita para não pesar no orçamento gastos com restaurante. “Aprendi a
gostar daqui.
Meus
filhos são adultos e estão fazendo faculdade. Dependem ainda de mim”, explica,
na área do térreo da plataforma.
Lá
acima da escada rolante, a vendedora Luciana Azevedo, de 35 anos, também
não se arrepende de ter deixado a cidade de Patos (PB) há dois anos. Hoje,
vende canudos de amendoim no final da escada rolante “para completar a renda”.
Já trabalhou como doméstica e ainda tem sonhos. Quer ter o próprio salão de
beleza. Hoje, vende o amendoim por R$ 1, das 14h às 19h. “Confio porque é uma
terra de oportunidades. Meu marido é porteiro e um dia queremos viver melhor”.
O
cheiro do amendoim no alto da plataforma mistura-se ao da cocada e do
quebra-queixo no carrinho da comerciante brasiliense Milena Souza, de 21
anos. Mistura-se ainda o presente e o sonho de futuro: fazer um concurso
para a Polícia Civil. O estudo soma-se à rotina de preparo do coco com açúcar,
que dura até duas horas e precisa ficar pronto para a manhã seguinte. “Sonhar
não custa nada. Não vou desistir”
Com
também dois expedientes, a recepcionista brasiliense Lucineide Cardoso, de 39
anos, aproveita o horário de pico para fazer um bico até as 19h. Ela entrega
jornal gratuito na subida da escada rolante. “Quando termina essa montanha,
pego o ônibus para casa, baita trânsito para o Paranoá”. Chega às 20h, quando
busca as novidades que não estão no jornal que ela distribui nem na rádio que
toca no ônibus. “As minhas filhas me esperam para contar como foi o dia. Aí
passa até o cansaço”. (Ag. Brasil)
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