O protesto que
elas realizaram nesta segunda-feira (04/05), porém, teve como alvo um tipo de
empreendimento raramente associado a danos ambientais: um complexo de energia
eólica.
"Não
somos contra energias renováveis", diz à BBC News Brasil a agricultora
Roselita Victor da Costa Albuquerque, uma das coordenadoras da 13ª Marcha pela
Vida das Mulheres e pela Agroecologia na Borborema.
"Somos
contra o modelo industrial de produção de energias renováveis que está se
expandindo pela nossa região, um modelo que agride a natureza e as
mulheres", afirma Albuquerque.
O objeto de
preocupação do movimento - que diz ter levado 4 mil mulheres às ruas de Solânea
(PB) nesta segunda - é o Complexo Eólico Serra da Borborema.
A cargo da
empresa EDP Renováveis, que em 2019 obteve uma licença prévia para realizar o
empreendimento, o complexo ocupará uma área de 7,6 mil hectares - ou 7,6 mil
campos de futebol - e terá capacidade de 302,5 MW, o suficiente para abastecer
cerca de 36 mil casas. Será composto por oito parques eólicos com 55 turbinas
(aerogeradores). A EDP Renováveis disse ter o "compromisso de garantir o
mínimo impacto ambiental" de seus parques eólicos e solares.
A obra se
insere num contexto de rápido avanço da energia eólica pelo Brasil e pelo
mundo.
Por um lado, o
movimento é visto como positivo por ajudar a reduzir as emissões de gases
causadores do efeito estufa; por outro, a expansão está associada a uma série
de conflitos e danos ambientais no Nordeste brasileiro (leia mais abaixo).
Principais
fontes de energia elétrica no Brasil
Segundo o
Ministério de Minas e Energia, as usinas eólicas, que em 2000 respondiam por
menos de 1% da matriz elétrica nacional, passaram a responder por 11% em 2021 e
se tornaram a terceira principal fonte do país, atrás das hidrelétricas (57%) e
das usinas térmicas (12%).
Boa parte
desse crescimento ocorreu na região Nordeste, que abriga 90% da capacidade
instalada de energia eólica no país. E a participação dessa fonte deve crescer
nos próximos anos, conforme obras em curso ou planejadas sejam entregues.
O avanço de
fontes energéticas renováveis, como a eólica e a solar, é considerado crucial
para a redução do uso de combustíveis fósseis, cuja queima acelera as mudanças
climáticas.
Para as
agricultoras da Borborema, no entanto, a forma com que essa fonte de energia
tem se expandido pelo Semiárido brasileiro ameaça as mulheres e põe em risco os
modos de vida locais.
Roselita
Albuquerque, agricultura assentada da reforma agrária e uma das coordenadoras
do movimento contra o complexo eólico, diz que o tema entrou no radar das moradoras
em 2018, quando empresas começaram a fazer estudos sobre os ventos da região.
Um grupo de
agricultoras então viajou para o interior de Pernambuco para verificar o
impacto da construção de parques eólicos nas comunidades locais. Albuquerque
diz ter se deparado com vários problemas causados pelas usinas.
Segundo ela, o
ruído constante das turbinas estava afetando a saúde mental dos moradores.
"Vimos mulheres com problema de pressão alta, ou mesmo depressivas, porque
não conseguiam dormir com o barulho do aerogerador", afirma.
Diz ainda que
muitos agricultores que haviam arrendado suas terras para as usinas tiveram de
reduzir o tamanho de suas roças ou abandonar a agricultura, já que muitas
propriedades no Semiárido são pequenas e ficaram sem áreas para produzir.
"Diminuiu
muito a área de produção, porque você não pode trabalhar debaixo dos geradores
pelo desconforto do barulho e pelo risco de acidentes", afirma.
'Filhos dos
ventos'
Outro impacto,
segundo ela, afeta especialmente mulheres jovens e diz respeito à mão de obra
especializada contratada para construir as usinas - em sua maioria
trabalhadores homens, vindos de outras regiões do país.
Alguns desses
homens, segundo Albuquerque, assediam mulheres e meninas locais ou têm
relacionamentos amorosos com elas. "Depois elas ficam grávidas, os homens
vão embora, e as mulheres ficam com os filhos para criar", diz
Albuquerque.
Ela afirma que
as crianças nascidas desses relacionamentos são conhecidas na região como
"filhos dos ventos".
"É uma
questão social grave", diz.
Como
alternativa à construção dos parques eólicos, ela defende um "modelo
descentralizado de produção de energia a partir de placas solares" nas
casas dos moradores.
"Assim
poderíamos consumir o que precisamos e vender o excedente", afirma.
Contratos
confidenciais
A construção
do complexo eólico na Borborema ainda não começou, mas Albuquerque afirma que
várias famílias já assinaram contratos para arrendar suas terras à empresa a
cargo das obras.
O número exato
de famílias é desconhecido, já que os contratos têm cláusulas de
confidencialidade.
Albuquerque
afirma que as empresas de energia eólica negociam diretamente com as famílias
em vez de procurar associações de moradores.
"Se esse
debate passasse por dentro dos sindicatos e das associações, poderíamos fazer
essas reflexões coletivamente e dizer se queremos o complexo ou não", diz.
Albuquerque
afirma que, apesar das cláusulas de confidencialidade, alguns contratos
chegaram às associações.
O advogado
Claudionor Vital, que assessora organizações de trabalhadores no interior da
Paraíba, diz à BBC que já analisou vários contratos de arrendamento de terras
para geração de energia eólica na região.
Segundo ele,
os documentos costumam seguir um mesmo padrão e definir que a remuneração das
famílias será proporcional à energia gerada nas propriedades.
"Quando
as empresas procuram as famílias, elas usam o discurso de que elas ganharão de
R$ 3 a 4 mil por mês, mas esse não é um valor concreto, elas não escrevem isso
no contrato", afirma o advogado.
Para Vital, os
contratos deveriam estipular o pagamento de uma renda mínima às famílias para
que não fiquem sujeitas à oscilação dos ventos.
Ainda segundo
o advogado, os documentos têm longos prazos de vigência (de 30 a 50 anos)
"com possibilidade de prorrogação a critério das empresas e multas
unilaterais que inibem as famílias de repensar ou desistir do negócio".
"Já as
empresas podem desistir sem pagar multa", afirma.
Outro problema
dos contratos, segundo o advogado, são cláusulas definindo que a propriedade
passa a ter como prioridade a geração de energia eólica.
Na prática,
diz o advogado, isso significa que a realização de outras atividades econômicas
no território, como o cultivo de alimentos, fica sujeita à aprovação da empresa
e não pode afetar a geração de energia.
"As
empresas passam a ter controle do que pode e não pode ser produzido, o que
impacta na forma de ocupação das terras onde o empreendimento é
instalado", diz Vital.
Problemas
ambientais e sociais ligados à expansão de parques eólicos no Nordeste têm sido
documentados por vários pesquisadores nos últimos anos.
Em 2020, a BBC
News Brasil publicou reportagem sobre o impacto de parques eólicos em
populações de onças na Caatinga.
Em 2019, a
Universidade Federal do Ceará (UFC) lançou o livro "Impactos
socioambientais da implantação de parques de energia eólica no Brasil",
com 16 artigos sobre o tema.
Entre os casos
detalhados pelo livro estão o de pescadores que deixaram de pescar em lagoas
soterradas pela construção das usinas; comunidades que perderam o acesso a
mangues onde coletavam moluscos; e comunidades que passaram a ter dificuldades
para acessar áreas de extrativismo por causa da construção de estradas e do
desmatamento associados a um empreendimento.
O livro cita o
caso de uma comunidade em Camocim (CE) que, em 2009, mostrava-se unanimemente
contrária à construção de um parque eólico.
No entanto,
diz a obra, após a empresa investir em um fundo habitacional,
"aproximadamente metade dos membros da comunidade mudou sua visão do
parque eólico de negativa para positiva".
Outro trecho
do livro compara as posições majoritariamente negativas a um parque eólico em
uma comunidade no Ceará à avaliação positiva a um empreendimento desse tipo
entre moradores de uma região do Texas (EUA).
O artigo
afirma que, entre outros pontos, as opiniões divergentes poderiam se explicar
pela diferença na remuneração de cada comunidade.
No Texas, em
2015, cada turbina rendia aos moradores o pagamento de cerca de US$ 6,7 mil em
royalties por ano, segundo o estudo. O valor, na cotação atual do dólar,
corresponde a cerca de R$ 33,9 mil.
Já no Brasil,
segundo um estudo de Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, os pagamentos costumam ser bem
menores.
Em artigo na
revista Ambiente & Sociedade, em 2021, Traldi estimou os pagamentos a
moradores de duas comunidades - uma na Bahia, outra no Rio Grande do Norte -
com base nos resultados das empresas que atuam nos locais e em contratos a que
teve acesso.
Os pagamentos
por torre eólica variavam de R$ 684,46/mês (R$ 8.213/ano) a 1.122,99/mês (R$
13.475/ano) e corresponderiam, segundo a pesquisadora, a 0,91% dos ganhos
brutos das empresas.
Os valores,
diz Traldi no artigo, indicam que a incorporação das comunidades no
"processo de acumulação capitalista está se dando de forma marginal".
A BBC enviou
as críticas e os temores das agriculturas à EDP Renováveis. Em nota, a empresa
respondeu que o projeto na Borborema está "em estágio inicial" e que
sempre busca desenvolver "parques com o maior consenso social
possível". A companhia disse ainda que promove "programas de educação
e capacitação" para "garantir que a agricultura familiar e os
projetos renováveis coexistam e prosperem".
Por fim, a EDP
Renováveis disse ter o "compromisso de garantir o mínimo impacto
ambiental" de seus parques eólicos e solares.
Já a
Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeel) disse à BBC que "o
arrendamento não exclui, normalmente, a possibilidade de permanência dos
moradores nas suas terras, inclusive praticando as suas atividades
tradicionalmente desenvolvidas, uma vez que a implantação de parques eólicos
costuma utilizar um percentual pequeno das propriedades arrendadas".
Sobre o
assédio às mulheres locais e o fenômeno dos "filhos dos ventos", a
organização diz que as empresas de energia eólica privilegiam a contratação de
mão-de-obra local e promovem "inúmeros treinamentos sobre relacionamentos
com as comunidades locais e programas de educação sexual".
Quanto às
queixas sobre o ruído das turbinas, afirma que as estruturas são implantadas
"respeitando uma distância de afastamento de residências definida pela
legislação pertinente".
A Abeel diz
ainda que empreendimentos eólicos geram renda para proprietários rurais
"em regiões usualmente bastante limitadas para a produção agropecuária e
marcadas pelo êxodo de população rural, incentivando, com isso, a fixação do
homem no campo".
"Vale
salientar, ainda, que há muitos programas de investimento social privado
desenvolvidos por empresas do setor, que buscam fomentar a geração de renda
pelas famílias residentes nas áreas dos parques", diz a associação.
Conjuntura
desfavorável
Para Roselita
Albuquerque, do movimento de mulheres na Borborema, a "conjuntura atual do
Brasil e da agricultura familiar" deixa muitas famílias locais tentadas a
aceitar os parques eólicos.
Ela afirma
que, nos últimos anos, agricultores do Semiárido tiveram várias perdas, como o
encerramento do Programa de Aquisição de Alimentos (compras governamentais de
alimentos da agricultura familiar), a paralisação do Programa de Cisternas e a
substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil (que aumentou o valor médio
do benefício, mas reduziu seu público alvo).
"Isso tem
um impacto na vida das famílias camponesas, as famílias estão em situação de
vulnerabilidade social grande", afirma.
Nesse cenário,
ela afirma que é desafiador convencer os moradores - muitos dos quais homens -
de que o parque eólico não é vantajoso para a região.
Uma das
estratégias das mulheres é discutir como os jovens serão afetados, já que os
longos prazos dos contratos afetarão as próximas gerações.
"Como
será a sucessão rural com um modelo de produção de energia que vai reduzir as
áreas de produção? Qual será a esperança dessa juventude?", questiona.
(BBC)
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