"Na gravidez da minha filha, eu passei fome e ela já nasceu desnutrida. Não sabia que o pai dela usava drogas. Depois, descobri que ele gastava o dinheiro com o vício e deixava a gente com fome", conta Vitória em entrevista à BBC News Brasil.
Durante a gestação,
Vitória passava o dia em busca de reciclagem para vender e comprar comida. A
alimentação dela sempre foi baseada principalmente em embutidos, como salsicha
e linguiça, além de refrigerante, salgados e iogurte. Hoje, a rotina é quase a
mesma e frutas e legumes são raridade na casa da família.
Os alimentos
mais saudáveis são consumidos na casa apenas quando Vitória consegue comprar
mais barato ou ganha na xepa da feira livre.
Dados
compilados pela Fundação Abrinq revelaram que, nos últimos cinco anos, aumentou
em mais de 2 milhões o número de crianças que têm renda familiar de até um
quarto do salário mínimo no Brasil. Isso significa que, assim como a filha de
Vitória, 10,5 milhões de pessoas com menos de 14 anos têm menos de R$ 303 para
se alimentar, comprar roupas, medicamentos e gastar com momentos de lazer por
mês.
Isso ocorre
porque uma criança inserida em uma família que se encontra nessas condições não
consegue ter acesso a uma alimentação saudável.
Sem comida de
qualidade, ela não se concentra nos estudos e precisa começar a trabalhar mais
cedo para complementar a renda da casa.
A tendência é
que esse ciclo de fome, desnutrição e baixa renda leve à perpetuação da pobreza
desta criança e da família dela.
Hoje, Vitória
se separou do homem que era viciado em drogas e mora com a filha e o atual
marido em uma casa alugada. Somando o Auxílio Brasil e o salário dele, a
família tem uma renda mensal de R$ 1400.
"No mês
passado, fiquei sem nada dentro de casa. Aqui tem um bar que a gente pega fiado
para depois pagar, mas é caro. Esses dias eu fiz até pouca comida. Minha mãe me
deu uma cesta básica para ajudar porque é muito difícil", diz.
Mas essa
situação não é nova na família dela.
"(Na
minha infância), meu padrasto estava preso e minha mãe ficava com sete filhos
em casa. Ela fazia de tudo para criar a gente", lembra.
Base do
desenvolvimento
"É nessa fase que você forma
todas as bases do desenvolvimento. Nessa fase, o cérebro faz 1 milhão de
conexões por segundo e forma 90% dele. É o que a gente chama de desenvolvimento
integral, composto por três dimensões: física e motora, cognitiva e a
socioemocional", diz Luz.
Ela explica
que, para desenvolver essas conexões de maneira plena, a criança precisa
receber estímulos e ter uma base sólida de crescimento.
"Tem que
olhar a educação, saúde e assistência social. É necessário que essas pastas do
governo trabalhem juntas para que a criança não passe fome, tenha acolhimento e
amparo social adequado, tratamento de saúde e vacina. A mãe precisa compreender
o que acontece com a criança e acompanhar a educação dela. Também é necessário
que ela frequente a creche e a pré-escola para que os pais trabalhem e tenham
renda", afirma.
Segundo
Mariana Luz, há 20 milhões de crianças no Brasil e uma em cada três vive na
extrema pobreza. Para ela, esse problema só vai ser combatido efetivamente
quando for tratado de maneira sistêmica.
"Não
adianta ter ações pontuais e não endereçá-las de uma forma mais completa. É
algo complexo, mas viável. Cidades no Brasil têm compreendido essa abordagem,
como São Paulo e Boa Vista. Ao mesmo tempo em que estamos no topo da produção
de alimentos do mundo, a gente desperdiça até oito vezes o que poderia
alimentar essa população que passa fome", diz.
Hoje, a filha
de Vitória, que mora em São Miguel Paulista, no extremo leste de São Paulo,
recebe atendimento do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren) e
ganhou peso nos últimos meses. No local, ela recebe atendimento médico,
nutricional, recebe dicas de alimentação saudável e ainda é auxiliada para se
inscrever em programas do governo.
Nas próximas
semanas, a família deve deixar a casa onde vive hoje por não conseguir arcar
com o valor do aluguel.
O marido dela
pediu R$ 2 mil emprestado para o patrão dele, usou o dinheiro para comprar
madeiras e está construindo um barraco para a família numa ocupação a poucos
metros da casa dela. O local foi atingido por um incêndio no último mês, mas
Vitória diz que essa é a única saída, pois não consegue mais pagar o aluguel.
Ela agora
planeja deixar a filha na creche e aos cuidados da mãe dela para conseguir
voltar a trabalhar.
Pediatra e
nutróloga do Cren, Maria Paula de Albuquerque integrou o Grupo de Trabalho de
Saúde e Nutrição da Agenda 227, que produziu 148 propostas de políticas
públicas a serem implementadas no próximo governo. Ela afirma que a pobreza
carrega consigo diversos fatores que afetam diretamente toda a vida daquela
criança e a sociedade onde ela vive.
"Junto
com uma renda inferior, existe a questão da escolaridade e o comprometimento ao
acesso a alimentos de qualidade. O problema é muito complexo. Num contexto
urbano como o de São Paulo, as famílias consomem mais alimentos
ultraprocessados, de péssima qualidade, mas de consumo rápido e fácil preparo.
Essas famílias vivem nas periferias, com vazios assistenciais e gastam quatro
horas no transporte", afirma.
Ela define
esse cenário como "devastador para a primeira infância".
"Isso
perpetua a pobreza e impacta até três gerações. Tornar esse país menos desigual
pede soluções sistêmicas, que não podem ser determinadas pelo acesso. Famílias
recebem transferência de renda, mas se eu não qualifico esse processo e as
trago para o centro da discussão, vai ficar somente o acesso pelo acesso",
afirma.
Albuquerque
assinala que a pandemia da covid-19 e as mudanças climáticas ampliaram a
desigualdade social e, consequentemente, a insegurança alimentar entre os mais
pobres. Ela diz que esse cenário pode acelerar o surgimento de uma cadeia de
problemas.
"Sem
dinheiro na gestação, a mãe troca uma carne por uma salsicha ou uma fruta por
suco em pó. Isso aumenta a chance de doenças crônicas para ela e restringe o
crescimento intraútero do bebe. Se ela passa fome, isso reduz o tecido nervoso
do bebê, dificulta a formação dos rins e ele já nasce desnutrido", afirmou.
A médica
afirma que esse fator aumenta as chances de as crianças desenvolverem um quadro
de ansiedade e depressão, além de infecções. Uma criança desnutrida, conta ela,
tem 16 vezes mais chance de morrer de pneumonia quando comparada a uma com o
peso normal. Ela terá problemas de aprendizado por conta de dificuldades
cognitivas e neurológicas.
"O
organismo dela vai se programar para a falta de alimento e, por conta desse
fenótipo poupador, quando entrar na vida adulta, ela terá grande chance de
desenvolver obesidade. Isso ocorre porque o corpo dela foi feito para poupar
energia. Ela acumula gordura no fígado e no abdômen. Isso eleva o risco de
diabetes e hipertensão. A criança vai sendo programada para ser um adulto
doente", afirma
A médica, que
também faz parte de um grupo de estudos da Universidade de São Paulo (USP) diz
que isso gera "um ônus enorme" para o indivíduo e para a sociedade.
Albuquerque defende que o governo deveria subsidiar a produção de alimentos
mais saudáveis e pequenos produtores, em vez de grandes indústrias de alimentos
industrializados.
"Não faz
sentido um refrigerante ser subsidiado pelo Estado. É um absurdo os
ultraprocessados serem mais acessíveis. Mas isso acontece porque há uma lógica
de mercado. A agricultura faz uma monocultura e aumenta o custo. Isso favorece
o grande produtor e a monocultura", diz ela
(BBC)
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