Com juros
de até 79% ao ano, segundo instituições financeiras consultadas pela BBC News
Brasil, o valor a ser devolvido pelos beneficiários será quase o dobro do
emprestado.
Com renda
familiar mensal de até R$ 210 por pessoa, pelos critérios do Auxílio Brasil,
eles se dizem cientes dos riscos, mas apostam em uma melhora incerta das
condições de vida à frente para pagar parcelas que devem consumir até 40% do
benefício durante 24 meses.
E isso
num momento em que mais de 78% dos lares brasileiros estão endividados e 29%
têm contas em atraso, segundo dados da Pesquisa de Endividamento e
Inadimplência do Consumidor (Peic) referentes a julho desde ano. Ambos os
indicadores estão em patamar recorde, no nível mais alto registrado em 12 anos.
Quem já
decidiu que não vai tomar o crédito consignado cita o medo de se endividar
ainda mais e ficar em situação pior à frente como principais motivos por trás
da decisão de passar longe da nova modalidade de empréstimo.
"Eu
até pensei em pegar, mas depois fui analisar e pensei assim: a gente vai
contrair uma dívida de dois anos e o auxílio aumentou agora para R$ 600, mas
isso só vai até dezembro", diz a diarista Tamires Santos, de 33 anos e
moradora de Guaianases, na zona leste de São Paulo.
"Vem
o dinheiro agora, mas no mês seguinte você vai estar com mais uma dívida,
porque esse dinheiro não vai dar para resolver todas as dívidas que você já
tem. Então optei por não pegar, porque na realidade eu acho que é uma grande
ilusão, você só vai se endividar mais ainda."
O governo
publicou na sexta-feira (12/8) decreto no Diário Oficial da União
regulamentando o empréstimo consignado do Auxílio Brasil (Decreto nº
11.170/2022).
A liberação do crédito pelas instituições financeiras ainda depende, no
entanto, da regulamentação de normas complementares pelo Ministério da
Cidadania, ainda sem data definida.
Segundo o
ministro da Cidadania, Ronaldo Bento, a expectativa é de que a operação seja
iniciada até o início de setembro.
Enquanto grandes
bancos optam por não conceder o novo empréstimo temendo prejuízos financeiros e
de reputação, especialista em finanças pessoais alerta que o consignado do
auxílio pode endividar ainda mais os mais pobres, comprometendo com o pagamento
de parcelas e de juros um benefício que é usado para sobrevivência.
Na
segunda-feira (15/8), entidades jurídicas, de defesa do consumidor e
personalidades de diferentes setores lançaram uma campanha pedindo o adiamento
do consignado do auxílio, até que estudos e análise técnica de especialistas
sejam realizados.
Entre os
apoiadores da "Nota em Defesa da Integridade Econômica da
População Vulnerável", estão o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor), a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Programa de Apoio
ao Endividado da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto.
"A
concessão de crédito consignado para beneficiários de programas de
transferência de renda, no presente momento, tende a trazer ainda mais
dificuldades para essa população. Se os valores atuais são insuficientes para
garantir uma vida digna, a possibilidade de comprometer até 40% desse valor com
empréstimos condenará essas famílias ainda mais à miséria", diz a nota.
'Vai
ficar apertado, mas seja o que Deus quiser'
Mayara
Cristina Passarinho, de 31 anos e moradora da favela Capadócia, na Brasilândia,
região noroeste de São Paulo, quer usar o dinheiro do empréstimo do Auxílio
Brasil para reformar seu barraco, que pegou fogo e atualmente tem paredes de
madeirite (um tipo de compensado de madeira).
Antes da
pandemia, ela trabalhava como diarista, mas perdeu os clientes durante a crise
sanitária e agora já está desempregada há quase três anos.
Com três
filhos, de três, seis e oito anos, a família se sustenta com o Auxílio Brasil e
os bicos de ajudante de pedreiro feitos pelo companheiro de Mayara.
Esse
trabalho esporádico rende a ele cerca de R$ 600 por mês, o que dá à família uma
renda mensal de R$ 120 por pessoa, sem o benefício do governo.
O Auxílio
Brasil é destinado a famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com
renda mensal por pessoa abaixo de R$ 210 e R$ 105, respectivamente. A família
de Mayara está, portanto, muito perto dessa segunda linha, a dos mais
vulneráveis do país.
"Quero
terminar de construir meu barraco, para ver se eu consigo fazer pelo menos umas
paredes de tijolo e pagar algumas dívidas", diz Mayara. Ela conta que tem
dívidas de cartão de crédito e de fazer fiado nos mercadinhos do bairro, devido
à situação difícil.
Pelas
regras definidas pelo governo federal, até 40% do valor do Auxílio Brasil
poderá ser descontado para pagamento do empréstimo.
Para
concessão do crédito, as instituições financeiras consideram o valor recebido
pela família antes do atual aumento temporário do benefício para R$ 600. Assim,
uma família que recebia R$ 400 até julho, por exemplo, pagaria parcelas de R$
160 por 24 meses.
Com isso,
se o valor do benefício voltar a R$ 400 em janeiro de 2022, essa família teria
R$ 160 descontados na fonte, passando a receber apenas R$ 240, de um benefício
utilizado principalmente para a compra de alimentos.
E isso se
a família continuar no programa durante todo o período, pois caso seja
descredenciada do Auxílio Brasil por algum motivo, ainda assim terá que arcar
com a dívida contratada.
"Eu
acho que vai ser um pouco complicado", diz Mayara, sobre o momento em que
seu benefício for reduzido pelo pagamento da dívida.
"Mas
não tem o que fazer, porque há um tempo atrás pegou fogo na parte de cima aqui
do meu barraco e hoje ele é de madeirite. Então eu quero construir o mais
rápido possível. Tendo a oportunidade de fazer, eu vou ter que fazer",
afirma.
"Vai
ficar [apertado], mas seja o que Deus quiser. Está na mão de Deus. Quem sabe
Deus prepara algum emprego bom para mim ou para o meu esposo? Porque pior não
pode ficar."
Dinheiro
extra para enfrentar uma gravidez de risco
Elton de
Barros, de 39 anos e morador de Conceição da Barra, no Espírito Santo, tem três
filhos e sua esposa está esperando a caçula, numa gravidez considerada de
risco.
Desempregado,
faz bicos do que aparecer e ele souber fazer. "Limpo quintal, pinto muro,
ajudante de pedreiro, segurança, o que tiver", enumera. Seu último emprego
com carteira assinada foi na caldeiraria de uma usina de álcool.
Natural
de Linhares, também no Espírito Santo, a esposa de Elton, que é cabeleireira,
ainda tem poucos clientes na cidade do marido, para onde eles se mudaram há
cerca de oito meses.
Com uma
renda de pouco mais de R$ 1 mil para cinco pessoas (que logo serão seis), a
família recebe o benefício do governo desde a pandemia, quando ainda era
Auxílio Emergencial.
"Esse
empréstimo me ajudaria bastante. Como minha esposa está para ganhar neném e eu
estou fazendo bico, é um dinheiro que ajudaria na despesa", diz Elton.
O pai de
família simulou o consignado pelo Banco Pan, que ofereceu a ele um crédito de
R$ 2.025, a ser pago em 24 parcelas de R$ 160. Assim, ao quitar a dívida, ele
terá pagado ao banco R$ 3.840, quase o dobro do valor emprestado inicialmente.
Questionado
sobre como vai ser quando seu auxílio for reduzido devido ao valor das parcelas
descontado na fonte, Elton diz que está sendo cauteloso, e colocando tudo na
ponta do lápis para decidir se o empréstimo vai de fato caber no seu orçamento.
"É
uma preocupação que nós temos, mas como eu tenho meu bico, acredito que não vai
pesar muito. E estou fazendo porque é necessário", explica.
"A
gravidez da minha esposa é de risco, ela não vai ganhar neném aqui na minha
cidade. Estou contando com esse dinheiro cair antes do parto, porque vamos ter
que nos locomover de uma cidade para outra e ela vai ficar 60 dias de
cama", relata.
"Eu
vou ter que ficar um período com ela também. Calculo que vou ficar parado no
mínimo duas semanas cuidando da minha esposa, então não vou ter ganho nenhum.
Por causa disso, estou fazendo o empréstimo. E criança pequena de início gasta
muito, então seria bem-vindo esse dinheiro. Se eu estivesse trabalhando de
carteira assinada, não faria esse empréstimo."
'Eu ia
viver só pagando conta'
Bruna
Pereira, de 30 anos e moradora do Jardim Sapopemba, na zona leste de São Paulo,
faz parte de outro grupo dos beneficiários do Auxílio Brasil: aqueles que não
pretendem pegar o empréstimo consignado.
Com uma
filha de 3 anos que ela cria sozinha, Bruna mora com a tia e faz bicos de
diarista quando aparece trabalho. Ela cobra R$ 50 por faxina. Por mês, calcula
que ganhe cerca de R$ 150 com seu trabalho.
Com uma
renda tão restrita, o auxílio que recebe do governo é fundamental para Bruna
comprar as coisas de que sua filha necessita, como leite, roupas e produtos de
higiene. Mas a tia de Bruna aconselhou a jovem a ficar longe do empréstimo
consignado.
"Ela
disse para eu não pegar, porque o valor que eu vou ter que devolver vai ser
muito mais do que eu peguei. E eu não tenho condições [de pagar], porque não
estou trabalhando fixo e todo o dinheiro que recebo do auxílio é para comprar
as coisas da minha filha", afirma, explicando que, para a alimentação, tem
contado com a ajuda de uma doação de cesta básica.
"Eu
ia viver só pagando conta, entendeu? Porque eu não tenho ajuda do pai da
criança e com esse auxílio eu compro todas as coisas para ela. Não dá para eu
pegar [o empréstimo], para depois ter que ficar pagando. É essa minha
situação."
'Empréstimo
é uma ilusão'
Tamires
Nascimento Santos, a moradora de Guaianases de 33 anos que também decidiu não
pegar o empréstimo consignado, acredita que muitos dos que vão contrair essa
dívida agora poderão se arrepender mais à frente.
Casada e
mãe de três filhos — de três, oito e 12 anos —, ela é diarista, assim como
Bruna e Mayara. Com poucas diárias desde a pandemia, faz cerca de R$ 600 por
mês com o trabalho de limpeza, complementados pelo marido, que faz bicos de
pintor.
Beneficiária
do auxílio federal há cerca de um ano e endividada no cartão, ela não quer
saber de uma nova dívida. "Eu ia usar [o empréstimo] para pagar minha
dívida, mas aí eu iria contrair outra dívida de dois anos, que é muito
pior", avalia.
O fato de
as parcelas serem descontadas diretamente do auxílio também a desestimulou.
"Eu
uso esse auxílio para ajudar na alimentação das crianças. Se você compromete, e
aí depois, quando ele já vem descontado? Vai ficar elas por elas. Na realidade,
é uma ilusão", afirma.
Como
todos os brasileiros, num momento em que a inflação acumula alta de 10% em 12
meses, mesmo após a deflação de 0,68% registrada em julho, Tamires tem sofrido
com os altos preços dos alimentos.
"Está
tudo muito caro, tudo subiu um absurdo. O leite, tem lugar que está quase R$ 10
o litro", lamenta. "Então está bem apertado nosso orçamento, mas
estamos sobrevivendo, economizando um pouquinho aqui, outro ali."
Assim, o
aumento temporário do Auxílio Brasil para R$ 600 até dezembro é considerado por
ela muito bem-vindo. Com o valor adicional, a diarista espera incluir mais
frutas, verduras e legumes na dieta da família, pois atualmente tem priorizado
arroz, feijão e mistura.
Mas
Tamires diz que esse aumento do auxílio não vai afetar em nada seu voto em
outubro.
"Para
mim não muda em nada. Eu nunca votei nesse governo, nem vou votar. Para mim não
influi em nada, porque a gente tem que ver o que está acontecendo", afirma.
"Muita
coisa ficou a desejar. A gente que vive nas periferias sente nas questões de
saúde, está faltando muito remédio. Além disso, subiu [o preço de] muita coisa.
Teve também o auxílio que foi cortado ainda não tinha acabado a pandemia",
cita.
"Então
muita gente está passando necessidade. Porque esses R$ 400 [valor do Auxílio
Brasil antes do aumento temporário para R$ 600], para quem não tem outra ajuda,
não dá para nada. Ficou muita gente vulnerável mesmo."
Grandes
bancos dizem não ao consignado do auxílio
Alguns
dos maiores bancos brasileiros — como Bradesco, Itaú, Santander, Nubank e BMG —
indicaram que não devem oferecer o empréstimo consignado do Auxílio Brasil a
seus clientes.
"Estamos
falando de pessoas vulneráveis. Em vez de ser uma boa operação para o banco e
para o cliente, entendemos que a pessoa terá mais dificuldade quando o
benefício cessar, e por isso preferimos não operar", disse o presidente do
Bradesco, Octavio de Lazari Júnior, durante apresentação de resultados do
segundo trimestre.
O Itaú
deu justificativa similar: "Entendemos que não é o produto certo para
público vulnerável. Assim, o banco preferiu não operar", disse Milton
Maluhy Filho, presidente do Itaú Unibanco, em entrevista coletiva sobre
resultados.
Para Luis
Santacreu, analista de setor bancário da Austin Rating, os bancos estão
considerando na decisão de não aderir ao consignado riscos financeiros —
relacionados à instabilidade do auxílio e às taxas de juros elevadas — e
reputacionais, devido à perspectiva de inadimplência dos mais vulneráveis, que
pode se tornar um problema para a imagem dos bancos perante a sociedade.
"O
benefício foi aumentado para R$ 600, mas só até o final do ano. Isso gera
imprevisibilidade quanto ao valor que o beneficiário receberá a partir do ano que
vem, o que é um fator de incerteza para a concessão de crédito", diz
Santacreu.
Ele
destaca que o prazo de dois anos para a quitação da dívida, que representa a
metade de um mandato presidencial, também é um fator de incerteza, já que as
próprias regras do programa social podem sofrer mudanças nesse período.
"O
segundo ponto é que, como não há um limite para as taxas de juros, há aí uma
questão de ESG [sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de
gestão das empresas], de governança", diz o analista.
"Estamos
falando de uma população em situação de vulnerabilidade, que depende em muitos
casos desse auxílio para comer. Ao criar um endividamento para essa pessoa,
você pode estar asfixiando o tomador de crédito, criando um problema maior para
pessoas que não têm uma educação financeira para avaliar se esses juros são
compatíveis com seu orçamento familiar", observa.
Assim,
com a desistência dos grandes bancos, a concessão de crédito consignado para
beneficiários do auxílio deverá ser feita por instituições financeiras de médio
porte, como Pan, Safra e Facta Financeira. Além dos bancos públicos federais,
como Caixa e Banco do Brasil, que, no entanto, ainda não confirmaram se e como
participarão da nova modalidade de empréstimo.
'Consignado
é um empréstimo perverso'
A
educadora financeira Evelin Bonfim reforça que o crédito consignado representa
um risco para os beneficiários do auxílio e avalia a decisão do governo de
conceder esse crédito às vésperas da eleição como uma política pública
equivocada.
"O
consignado, de maneira geral, é um empréstimo perverso, porque ele não dá uma
chance para o consumidor de, numa situação de emergência, não pagar a parcela e
ficar em atraso", afirma.
Isso
porque, no empréstimo consignado, o valor da parcela é descontado na folha de
pagamento, antes mesmo de a pessoa receber o dinheiro na conta.
"Isso
é excelente para o banco emprestador, mas significa que o consumidor não tem
escolha", diz Evelin. Ela observa que há países onde é possível tirar uma
"folga" das dívidas por um período determinado, possibilidade que não
existe no consignado brasileiro.
A
educadora financeira destaca ainda que o Auxílio Brasil é um benefício
destinado à parcela mais vulnerável da população, que usa esse dinheiro para
subsistência.
"A
pessoa usa esse dinheiro para sobreviver: para comprar o arroz e feijão, pagar
o aluguel e trocar o gás em casa. Então a pessoa vai comprometer [com o
pagamento das parcelas] 40% de um benefício que é necessário para ela ter o
mínimo", diz Evelin.
"A
pessoa vai pegar o dinheiro do empréstimo agora e, no próximo mês, as
necessidades delas são as mesmas. Mas nesse próximo mês, o benefício dela será
menor, porque ela só terá o valor que sobrar depois do pagamento da
parcela", explica.
E isso
considerando que a pessoa continue recebendo o benefício. Evelin lembra que,
diferente de uma aposentadoria, o Auxílio Brasil pode acabar, pode ter seu
valor reduzido, ou a pessoa pode ser desenquadrada, caso deixe de cumprir os
critérios do programa.
"Ninguém
deveria se endividar para comprar comida, e é isso que vai acabar acontecendo
com muitos dos beneficiários", diz a especialista em finanças pessoais.
"Isso
é uma evidência de uma falha muito grande da sociedade, da política de cuidado
com as famílias mais vulneráveis e da gestão econômica como um todo",
acrescenta. (BBC)




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