Bem longe dali, no
Colégio Santo Agostinho Novo Leblon, uma escola privada, no Rio de Janeiro,
durante o intervalo entre as aulas, quando não há nenhum professor na sala, um
grupo de alunos começa uma discussão. Alguns gritam "Melhor boca suja do
que ladrão!". Os outros revidam "É óbvio que não!".
Também é fora do
alcance da supervisão de professores ou monitores, durante intervalo ou
recreio, que surgem as discussões mais acaloradas na Escola Municipal Paulino
Melenau, em Jaboatão dos Guararapes, próximo a Recife. Lá, uma aluna do 9º ano
conta que "o debate às vezes fica grosseiro" e não é incomum escutar xingamentos
como "bolsominion" e "fascista".
As discussões se
estendem até mesmo fora do ambiente escolar e vão parar no grupo da turma no
WhatsApp. "Meu filho fala que é uma verdadeira guerra de figurinhas e
memes", conta a mãe de um aluno do 6º ano da escola estadual CIEP 112
Monsenhor Solano Dantas Menezes, na Baixada Fluminense.
não é diferente.
Afinal, elas são uma verdadeira esponja e absorvem, ainda sem pleno
entendimento, as opiniões dos pais, principalmente.
"A criança é
uma esponja porque precisa de um referencial. Quanto menor ela for, mais fácil
a criança estar apenas repetindo aquilo o que foi falado porque ela precisa
partir de algum lugar", explica a psicanalista Sylvia Caram, especialista
em Educação Infantil da PUC-Rio. É apenas a partir da adolescência que elas
começam a se aproximar de uma opinião própria, mas, até lá, defendem como
verdades absolutas o que ouviram em casa.
A autonomia de
opinião, no entanto, está cada vez mais precoce, acelerada pela maior exposição
à internet durante a pandemia, como relata Sylvia. São crianças de até oito
anos de idade que deixaram de ter somente os pais como única referência,
passando a escutar o que dizem influenciadores nas redes sociais, além de
absorver o conteúdo dos inúmeros vídeos e memes que circulam pelas telas.
"Demonização do debate político"
O fato dessa troca
de farpas entre alunos estar acontecendo longe da moderação dos professores
ocorre, em parte, pelo receio que muitos docentes têm de propor um debate
político em sala de aula e serem acusados de um viés para esquerda ou direita.
É a
"demonização do debate político", como descreve Patrícia Blanco,
presidente do Instituto Palavra Aberta, que coordena o EducaMídia, um programa
de educação midiática direcionado aos jovens e que tem parceria com o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
"Depois
daquele movimento da 'Escola sem partido', em que as escolas estavam sendo
acusadas de doutrinar os jovens com conteúdo de direita ou de esquerda,
principalmente, houve um processo de criminalizar o debate sobre política. O
professor passou a se sentir desincentivado a tratar desse tema em sala de
aula", afirma Patrícia.
Ela cita a
pesquisa Juventudes e Política, do instituto Ipec, publicada neste ano, a qual
aponta que o jovem está interessado em questões políticas, mas vem se
informando e formando sua opinião a partir de influenciadores que muitas vezes
têm o mesmo nível de conhecimento que ele em tais temas.
"Daí a
importância de a escola entrar nesse debate formando esse jovem para que ele
possa ir atrás de informações e construir sua própria opinião. Não podemos
deixá-lo à margem e só convidá-lo a se manifestar na época da eleição. Temos
que dar subsídios para que ele possa fazer uma escolha bem informada, que
entenda quais são os critérios que deve levar em conta na hora de decidir o
voto. Isso transcende a questão partidária", ressalta.
Na Escola Nova, no
Rio de Janeiro, desde o 4º ano do Ensino Fundamental há um exercício feito com
regularidade em sala de aula para quebrar o engessamento de opiniões que geram
brigas. A diretora Vera Affonseca conta que são escolhidos temas polêmicos. A
sala é dividida em grupos que defendem um ponto de vista e depois eles invertem
as posições. "É uma prática que temos para que os alunos entendam como o
outro pensa. Para que aquele que é contra um determinado assunto assuma um
posicionamento a favor", conta. Para os mais velhos, já foram debatidos
temas como demarcação de terras indígenas e porte de armas, e, com a
proximidade das eleições, nomes de pré-candidatos.
"É uma
brincadeira muito interessante porque eles precisam pensar em como defender
aquilo que detonaram tanto, vivenciar os dois lados. Com política, fica mais
acirrado. Então tem que ter o professor como mediador e regras. Saber discutir
sem agredir. Eles aprendem a respeitar o ponto de vista do outro", diz a
educadora.
A organização de
simulados de eleições é outra forma que escolas encontram para incentivar o
debate político construtivo. Foi o que fez, por exemplo, o Colégio Militar de
Paraíso do Tocantins em parceria com a Escola Judiciária do Tribunal Regional
Eleitoral e o cartório local, que, juntos, desde 2018, promovem o projeto
"Agentes da Democracia - Formação de Eleitores e Políticos do Futuro".
Participaram todos os alunos do Ensino Médio e muitos saíram do evento já com o
título eleitoral encaminhado.
"O intuito
era mostrar que a política não é um grande vilão. Eles fizeram um trabalho
muito dinâmico, com uma roda de conversa. Falaram sobre diversos temas, como,
por exemplo, a segurança da urna eletrônica. Inclusive eles trouxeram urnas,
explicaram como elas funcionam", conta Jordana Marques, orientadora
disciplinar do Colégio Militar de Paraíso do Tocantins.
"Pão com salame por voto"
O conhecimento de
todas as esferas do poder e o entendimento das funções de cada cargo político
foram vitais para acabar com os conflitos na Escola Estadual José Ferreira
Maia, em Timóteo, Minas Gerais. É de lá a professora Karina Letícia Pinto,
vencedora do Prêmio Professor Transformador 2021 pelo trabalho que fez na
construção de valores democráticos.
"O projeto
surgiu por causa da intolerância em sala de aula, havia uma polarização muito
forte. A gente via a replicação da fala dos pais nos alunos. Dava muita
confusão porque um não aceitava o que o outro falava e eram crianças de nove a
dez anos de idade. A discussão terminava com um dizendo 'lá fora na saída vou te
pegar'. Isso atrapalhava o convívio. Eu nunca tinha visto aquilo em 13 anos de
sala de aula", lembra a docente.
Karina percebeu
que as brigas ocorriam por motivos que as crianças nem entendiam direito. Foi
aí que teve a ideia de falar sobre o que é política. "Comecei explicando o
que era o poder Legislativo, porque as crianças achavam que só o presidente
mandava no país. Mas eles foram entendendo como surgem as leis, como são
votadas e por quem, quando passam a valer e como interferem em nossas
vidas", relata. Depois seguiram as lições sobre os poderes Executivo e
Judiciário.
"Ensinei tudo
de uma forma bem didática. Expliquei a independência dos três poderes, mas que
os três precisam ser amigos, que nenhum faz uma coisa sem o outro, que eles
colaboram com o outro. Foi a partir daí que o debate em sala de aula passou a
ser mais construtivo. Os alunos expressavam suas ideias, mas sabendo que
deveriam respeitar a ideia do colega", diz Karina.
O primeiro
exercício de democracia aconteceu na escolha do líder de sala de aula e a
professora conta que o processo eleitoral teve até denúncia de compra de voto.
"Alguns alunos vieram relatar, indignados, que teve gente querendo trocar
a merenda, um pão com salame, por voto", conta em meio a risadas.
"Mas eles tinham aprendido o que era corrupção e que aquilo era
errado."
Os alunos também
aprenderam sobre orçamento, entrevistaram o prefeito de Timóteo e chegaram a
fazer uma sessão simulada no plenário da câmara municipal. Enquanto buscava
mais ideias de atividades, Karina descobriu o Plenarinho, uma iniciativa
educacional da Câmara dos Deputados voltada às crianças.
"Vi que tinha
um concurso nacional. As dez melhores redações de professores sobre tolerância
dentro da escola eram selecionadas para levar os alunos ao Congresso Nacional,
onde seriam deputados mirins por um dia", conta. O texto de Karina foi
escolhido. Professora, alunos e pais foram para Brasília - depois de, com muito
esforço, conseguirem juntar dinheiro para a viagem, já que a maioria não tinha
recursos.
"Foi um
impacto para toda a família. Muito interessante as crianças quando chegaram em
Brasília e explicaram para os pais o que era o Congresso Nacional. No STF, uma das
alunas com dez anos explicou para a mãe o que representava aquela estátua com
os olhos vendados. Eles captaram todas as lições", conta a docente.
"Eu não tive mais briga, bate-boca. Essa experiência deixou bem claro que
é pelo conhecimento que evitamos a escalada de conflitos destrutivos."
(BBC)


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