Esse número mostra apenas uma parte
do problema, pois o órgão admite que mais de 90 mil multas ainda estão na fila
para serem processadas e seus prazos de prescrição são desconhecidos.
As cifras também podem variar de
acordo com o tipo de análise, já que há vários tipos de prescrição previstos em
lei, que variam entre três a cinco anos. A reportagem considerou dados enviados
pelo próprio Ibama, que cita como base lei de 1999 que estabelece prazo de
prescrição da ação punitiva do Estado.
A BBC News Brasil conversou com mais
de 20 ex-funcionários e especialistas do Ibama para esta reportagem. Também
analisou documentos internos do órgão e dados oficiais.
A realidade que se desenha é que
infratores não temem as punições pois contam com a prescrição para livrar-se
dos malfeitos.
Consequentemente, vêm mantendo
práticas ilegais por anos, contribuindo para aumentar o desmatamento e a
grilagem de terras, enquanto mantêm negócios com a venda e exportação de
produtos, como carne e madeira.
Quatro etapas são necessárias para
que a infração ambiental seja punida: identificar o ilícito ambiental, autuar,
julgar e cobrar a multa. Se o Estado demorar cinco anos ou mais para realizar
qualquer uma dessas etapas ou ficar três anos sem "mover" o processo,
a multa prescreve e nenhum dinheiro pode ser recolhido, embora a empresa ainda
possa ter de restaurar a área degradada, se assim determinado pela Justiça.
Também há possível punição na esfera criminal.
Mais de 10 mil multas ambientais são
aplicadas anualmente no Brasil. Mas, segundo diagnóstico do próprio Ibama, a
atual equipe que analisa e julga não consegue dar conta desse volume de
trabalho, então a papelada se acumula e é repassada para o ano seguinte,
situação que se repete até o vencimento das multas. Uma estimativa interna do
instituto diz que quase 40 mil multas podem prescrever até 2024.
Falta de pessoal e mudanças
frequentes na legislação são os motivos do problema, segundo avaliação interna
do Ibama e as fontes ouvidas.
"As pessoas têm a impressão de
que o Estado é incapaz de punir", diz Felipe Nunes, pesquisador da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores de um estudo que
mostra que menos multas ambientais estão sendo aplicadas e julgadas por atual
administração do Ibama.
Especialistas apontam que uma das
razões que ajudaram a aumentar o risco de prescrições é a chamada audiência de
conciliação, uma nova etapa antes do julgamento da multa em que o Ibama oferece
ao infrator a possibilidade de chegar a um acordo com a empresa em vez de
caminhar por um julgamento.
Criado em 2019, o procedimento acabou
retardando o processamento de multas nos primeiros meses. Dados da agência
ambiental apontam que houve o menor número de julgamentos de infrações
ambientais ao menos desde 2013 no órgão.
O Ibama reconheceu essas audiências
como um desafio em uma avaliação interna, mencionando-as em seu memorando
interno em uma seção sobre "ameaças ao processo sancionatório".
"A audiência de conciliação foi
uma política que veio de cima pra baixo, sem ouvir os servidores. Gastou-se
muita energia. Se tivessem priorizado o trabalho para melhorar julgamento e
instrução das multas, não teríamos tantas prescrições de multas de valores
altíssimos", diz o geógrafo e analista ambiental Govinda Terra, um dos
diretores da Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio
Ambiente e do Plano Especial de Cargos do MMA (Ministério do Meio Ambiente) e
do Ibama (Asibama-DF).
O próprio presidente Jair Bolsonaro
(PL) já se mostrou crítico às multas ambientais por diversas vezes. Ele próprio
foi multado por pescar em área protegida em janeiro de 2012 e vem dizendo,
desde que foi eleito, que quer acabar com a "indústria da multa" no
Brasil. Sua própria multa prescreveu em 2019 e o agente que a escreveu foi
removido de seu cargo no mesmo ano.
Multas prescritas não são um problema
novo e atualmente há até mais mecanismos para evitá-las do que há alguns anos,
como a digitalização de documentos nos órgãos públicos, que ajuda na tramitação
da papelada e evita a perda de arquivos.
Mas a perda de arrecadação com as
prescrições está aumentando. Registros obtidos por meio da LAI mostram que pelo
menos 649 multas ambientais prescreveram no ano passado, a maior perda financeira
reconhecida da agência desde 2017, após correção pela inflação, de R$ 144
milhões.
Uma das preocupações mais graves dos
servidores é com multas milionárias, cujo trabalho de autuação pode levar meses
de preparação, mas que têm se perdido com prescrições.
"As grandes empresas preferem
gastar com advogado e estender o processo administrativo ao máximo — muitas
enrolam mesmo — e, quando não dá certo, vão brigar na Justiça", diz a
ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, que ocupou o cargo no governo Temer e hoje
trabalha como especialista sênior em políticas públicas do Observatório do
Clima. O Ibama publicou em
julho uma portaria que tenta "organizar" essa fila do
passivo, priorizando aqueles com valores mais altos.
Registros internos mostram que o
Ibama reconhece o problema oficialmente. "Deficiências administrativas
comprometem a apuração e mobilização das fiscalizações, não gerando o efeito
dissuasório que a multa deveria ter", diz um documento produzido no ano
passado.
Quando uma multa prescreve, o
instituto precisa abrir uma apuração para identificar o responsável. Mas nem
sempre isso é possível. Em alguns casos, o instituto não consegue nem sequer
encontrar o agente responsável pelo julgamento da empresa. Por causa da demora,
há servidores envolvidos nos processos que até já se aposentaram.
Autoridades do Ibama disseram, em um
plano interno, que o órgão precisa contratar 300 pessoas para preencher cargos
administrativos e iniciar uma "força-tarefa" para evitar mais
prescrições.
Raoni Rajão, professor de Gestão
Ambiental e Estudos Sociais da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), diz que as mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro agravam a falta
de pessoal no Ibama e geram um obstáculo artificial à fiscalização. "O
processo não anda e, com isso, mais multas serão vencidas".
"Seria muito importante que o
tratamento das multas fosse feito de maneira estratégica. Isso garantiria que
grandes e reincidentes infratores fossem objeto de sistemas de inteligência
compartilhados, por meio de uma governança entre órgãos administrativos e
penais, de modo que fossem investigados de maneira apropriada e
prioritária", disse Andreia Bonzo Araujo Azevedo, que é Diretora Adjunta
do Programa de Clima e Segurança do Instituto Igarapé.
O Ibama não respondeu aos pedidos de
entrevista após duas semanas.
"É um prejuízo impossível de
mensurar. É como se zerasse o efeito de tudo que foi feito", diz o
servidor.
A alta no valor prescrito em 2021 foi
puxada por um caso emblemático. Em 2009, o Estado brasileiro multou uma empresa
agrícola por impedir a regeneração florestal em uma área de mais de 6 mil
hectares, no Estado do Pará.
Em vez de permitir que a floresta
voltasse a crescer em uma área que tinha sido desmatada, a empresa Agropecuária
Santa Bárbara do Xinguara criou gado. Por causa do tamanho da fazenda, a multa
estabelecida atingiu o teto previsto
em lei, de R$ 50 milhões.
A operação, que envolveu diversas
fazendas da empresa, fazia parte de um trabalho do Ibama em diversas regiões do
Pará para comprovar a situação do desmatamento em áreas de atividade
agropecuária na Amazônia. Os fiscais afirmaram que a empresa vinha comprando
áreas já desmatadas para criar gado. Segundo a própria agropecuária, havia 20
mil cabeças no local da autuação.
Servidores da Superintendência do
Ibama no Pará que acompanharam a operação em 2009 disseram à reportagem que
esta autuação tinha um peso histórico.
"Era a primeira multa dessa
empresa, na época a maior agropecuária do Brasil", disse um servidor, que
pediu anonimato por não ter autorização para dar entrevistas. "Descobrimos
que estavam usando normalmente áreas que já tinham sido desmatadas e estavam
embargadas (ou seja, que não tinham autorização para nenhum tipo de atividade
produtiva, como a criação de gado)."
Mas o desfecho "histórico"
não favoreceu os cofres públicos: a multa nunca foi paga e teve a prescrição
reconhecida pelo Estado no ano passado. Isto significa, na prática, que, por
causa da demora em agir, o Ibama perdeu definitivamente o direito de cobrar a
agropecuária pela infração.
"Temos a sensação de enxugar
gelo. Não é só o valor da multa que é perdido. É o trabalho de quem fez a
fiscalização, do que se gastou com helicópteros, com pessoal, com tempo de
trabalho. É um prejuízo impossível de mensurar. É como se zerasse o efeito de
tudo que foi feito", diz Terra, do Asibama-DF.
A multa foi uma das infrações mais
altas a prescrever nos últimos 20 anos, segundo dados obtidos pela reportagem e
atualizados em março deste ano. Desde 2000, ao menos R$ 1,3 bilhão em multas
ambientais já prescreveu.
Além do lado administrativo, casos
como esse também podem ser analisados na Justiça, no âmbito civil e criminal.
Em junho de 2018, o juiz federal Heitor Moura Gomes, da subseção Judiciária de
Marabá do Tribunal Regional Federal da Primeira Região condenou a agropecuária
a recuperar a área desmatada, mas a empresa recorreu e, desde então, aguarda
decisão definitiva da corte.
Na decisão, o juiz absolveu a empresa
do pagamento por danos materiais justamente por causa do alto valor da multa
que seria aplicada contra a empresa - e que agora, sabe-se, prescreveu.
Bruno Valente, procurador federal do
Pará, diz que é comum casos como esse durarem uma década ou mais na Justiça.
"A consequência é ruim, pois não desencoraja os infratores".
A Agropecuária Santa Bárbara Xinguara
se apresenta como uma das maiores
do setor na América Latina. Em 2019, o jornal britânico
The Guardian informou que eles estavam fornecendo à JBS, a
maior empresa frigorífica do mundo, que vende carne bovina para praticamente o
mundo todo. O Pará, onde está localizada a fazenda, é o Estado da Amazônia com
a maior taxa de
desmatamento.
A AgroSB, atual nome da empresa,
reconheceu por e-mail que houve dano ambiental na área, mas que o desmatamento
tinha acontecido antes da compra da fazenda, e que ela estava invadida pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no momento da autuação.
"O melhor para a AgroSB (e
Estado) seria o Ibama ter analisado rapidamente este fato e ter declarado no
mérito a nulidade da multa, evitando-se, assim, o arrasto do deslinde do feito
por mais de uma década até ser fulminado pela prescrição", disse a empresa
à reportagem.
O instituto ainda tentava descobrir,
em junho deste ano, quem foi o responsável por ter deixado a multa prescrever,
de acordo com um memorando interno obtido pela reportagem.
Um funcionário do Ibama que trabalhou
no julgamento administrativo de multas e conhece o caso da AgroSB disse que a
estratégia da empresa é comum.
"É modus operandi entrar no
processo administrativo e esperar o vencimento da multa. Desde o momento em que
a empresa foi multada até agora, ela já lucrou muito mais. Esse é um caso
emblemático de falta de punição, que gera mais injustiça."
Multa
prescrita no passado, investigação no presente
Em março de 2009, o Ibama multou a
empresa Tradelink Madeiras em R$ 161 mil (hoje equivalentes a R$ 355 mil, em
valores corrigidos pela inflação) por ter adquirido 4.500 metros cúbicos de
madeira serrada de ipê (um dos tipos mais valorizados do Brasil) e outros por
meio de uma empresa de fachada, situação
parecida com a da atual investigação.
A madeira comprada à época foi
apreendida e, segundo o relatório do órgão, ficou guardada por quase uma década
em um galpão, a ponto de ficar "com aspecto envelhecido, de cor
acinzentada", até que o órgão governamental aplicasse a multa, de fato, em
2018. Por conta do lapso temporal, a punição prescreveu e a empresa não precisou
pagar a sanção.
Em uma nota técnica enviada à
reportagem por meio da LAI, o Ibama justificou a prescrição por "atrasos
na análise quanto à lavratura, possivelmente devido à complexidade da
operação".
A Tradelink voltou a ser destaque no
ano passado depois que uma operação da Polícia Federal
investigar se o ministro Ricardo Salles e o atual presidente do
Ibama, Eduardo Bim, faziam parte de um suposto esquema para facilitar o
contrabando de madeira para os Estados Unidos.
Destituído do cargo por 90 dias, Bim
voltou ao trabalho e, no relatório anual de 2021 do Ibama, escreveu que o
instituto está "firme no combate ao desmatamento ilegal em terras
indígenas e nos diversos biomas brasileiros."
Procurada, a Tradelink negou
irregularidades, diz que não houve exportação ilegal e que "a documentação
comprobatória da exportação desses contêineres foi apresentada ao Ibama e à
Receita Federal do Brasil, antes do embarque".
Disse ainda que "nunca comprou
madeira de empresas que foram fechadas" e que a ação de março de 2009
"está sendo apreciada pelo sistema judicial brasileiro".
Também afirmou que os autos não
tiveram relação com desmatamento, mas com "formalidades administrativas
vinculadas com divergências no preenchimento específico da documentação".
Especialistas acreditam que
irregularidades ambientais poderiam ser evitadas se o Ibama garantisse as
sanções, freando possíveis reincidentes.
"A prescrição desses mais de 2
mil autos de infração ambientais [da planilha obtida pela reportagem] é uma
forma de chancelar as condutas ambientais criminosas. Se muitos infratores
ambientais já viam nas falhas sistêmicas uma via para cometer ilegalidades,
sabendo da predisposição de que, se pegos, suas autuações acabarão sendo
alcançadas pela prescrição, serão ainda mais estimulados a continuar a expandir
o desmatamento ilegal", disse Daniele Galvão, analista jurídica do Center
for Climate Crime Analysis (CCCA), uma organização sem fins lucrativos.
"O CCCA tem se deparado em suas
análises com diversos casos em que o desmatamento associado à extração ilegal
de madeira, muitas vezes destinada à exportação para o mercado europeu ou
norte-americano, poderia ser evitado se o Ibama (e também os órgãos ambientais
estaduais) atuasse de forma mais efetiva em campo".
Petrobras:
mesmo com alertas de subordinados, multas de R$ 10 milhões prescreveram
Uma investigação aberta pelo Ibama em
2018, a que a reportagem teve acesso, mostra que um agente do órgão teria se
"esquecido" de tratar de pelo menos quatro multas emitidas contra a
Petrobras, deixando R$ 10 milhões em infrações prescreverem entre 2017 e 2018,
apesar de ter sido avisado por seus subordinados. O caso contra o servidor foi
arquivado por falta de provas, mas as multas foram perdidas.
A Petrobras é a empresa que mais
recebeu multas ambientais no país, com mais de 2 mil sanções desde 2009, de
acordo com dados do Ibama, que somam mais de R$ 1 bilhão, mas a maioria ainda
não resultou em pagamento. A empresa foi constantemente mencionada nas
entrevistas para esta reportagem como um exemplo da dificuldade da agência
ambiental em garantir o pagamento de multas.
De acordo com a investigação, um
coordenador de exploração de petróleo do Ibama no Rio de Janeiro "reteve
deliberadamente" vários autos de infração contra a petroleira estatal.
O documento apontou que um agente da
unidade do Rio apresentou mensagens remetidas ao coordenador que pediam a ele
para trabalhar na multa, o que indicaria "que não houve negligência, mas
sim a intenção de manter a situação como está".
Os servidores que investigaram o caso
também constataram vários problemas administrativos naquela unidade do Ibama,
como "falta de controle documental do processo" na unidade e falta de
controle dos horários dos funcionários.
O caso também foi denunciado ao
Ministério Público Federal, que abriu um inquérito. O servidor deixou o cargo
comissionado que ocupava na mesma época da denúncia, em 2018, mas segue atuando
no Ibama. O caso foi arquivado em 2021, segundo o MPF, por "ausência de
indícios de falha funcional por parte dos coordenadores."
A Petrobras informou, em nota, que
"atua com responsabilidade social e ambiental, além de transparência e
respeito a normas e regras vigentes em sua missão de transformar recursos
brasileiros em riquezas."
A reportagem procurou o Ibama, mas não obteve nenhuma resposta após duas semanas.
(BBC)




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