"Isso
não quer dizer que eu não tenha minhas preferências de qual seja o próximo
governo", diz Paes de Barros, entre risos.
Nesta
quinta-feira (18/8), ele apresenta em um seminário no Insper, em São Paulo, o
artigo inédito Diretrizes para o
desenho de uma política para a superação da pobreza, ao qual a BBC News Brasil teve acesso em primeira mão.
No documento,
escrito em parceria com Laura Muller Machado, secretária de Desenvolvimento
Social do Estado de São Paulo e também professora do Insper, os dois
economistas apresentam sugestões a partir de um pressuposto simples.
"Uma
efetiva e duradoura superação da pobreza só ocorre quando há geração de renda
pelo trabalho de forma autônoma. Portanto, a superação da pobreza requer um
processo de inclusão produtiva bem-sucedido", diz logo de início o estudo.
Machado e
Paes de Barros propõem um modelo de assistência social que combina
transferência de renda focalizada (isto é, com foco em quem mais precisa), a
exemplo do Bolsa Família e do Auxílio Brasil, com um acompanhamento
individualizado das famílias vulneráveis por agentes públicos.
Nesse
acompanhamento, agente social e família construiriam em conjunto um "plano
personalizado de desenvolvimento familiar", para coordenar os esforços dos
membros da família e a oferta local de serviços e oportunidades, com objetivo
de superar a pobreza, tendo como pilar central a geração de renda autônoma
pelas pessoas através do trabalho.
Questionado
se a proposta não pode ser entendida como uma responsabilização individual da
família por uma pobreza que advém de questões sociais e estruturais, Paes de Barros
admite que o projeto contém "um componente ideológico forte" — ele é
um economista de viés liberal, com doutorado pela Universidade de Chicago, nos
Estados Unidos.
"Sim,
esse plano responsabiliza a família. Ele está dizendo: 'você, com os talentos
que você tem, consegue sair da pobreza, mesmo vivendo num país desigual'",
diz Paes de Barros.
"Essas
famílias são pobres não por falta de talento, mas por falta de oportunidades. O
que esse programa vai fazer é 'dar um balão' no capitalismo selvagem, levando
essas famílias àquelas oportunidades que não chegaram nelas", acrescenta o
economista.
"A ideia
desse programa é as pessoas voltarem a ter um projeto de vida, voltarem a
sonhar com uma vida melhor e mostrar que, com o devido apoio da sociedade, esse
sonho pode ser concretizado, não precisa de uma revolução para garantir a
superação da pobreza."
O Bolsa
Família, mais bem sucedido programa social do país, foi concebido durante o
primeiro governo Lula por um grupo de economistas liberais, como Marcos Lisboa,
Ricardo Henriques, José Márcio Camargo e o próprio Paes de Barros.
O projeto
enfrentou resistências dentro do governo e também em setores do PT, mas foi
encampado pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva.
'A cara da
pobreza mudou'
Pesquisador
do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) por mais de 30 anos e
subsecretário de Ações Estratégicas durante o governo de Dilma Rousseff (PT),
entre 2011 e 2015, Paes de Barros explica que as diretrizes desenhadas por ele
e Laura Machado — secretária no governo do tucano Rodrigo Garcia — partem de
uma percepção de que houve uma mudança no caráter da pobreza no Brasil.
Ele observa
que a pobreza diminuiu no país entre o início dos anos 2000 e 2014, voltando a subir
desde então, numa tendência que se manteve mesmo com a retomada do crescimento
da economia e da geração de emprego.
"A cara
da nossa pobreza mudou. Antigamente, o pobre era o cara que o avô, o pai e ele
trabalharam a vida toda, 10 horas por dia, e eram pobres. Agora, temos uma
pobreza diferente, porque a taxa de ocupação dos pobres caiu dramaticamente,
embora a vontade deles de trabalhar continue lá em cima", diz o
economista.
Ele observa
que isso se reflete na taxa de desemprego, de pessoas trabalhando menos horas
do que gostariam e de pessoas que desistiram de procurar trabalho entre os mais
pobres.
Exemplo disso
é que 81% dos 3,7 milhões de brasileiros sem emprego há mais de dois anos
pertencem às classes D e E. Entre 2015 e 2021, o número de pessoas sem emprego
há mais de 48 meses nessas classes sociais avançou 173%, segundo levantamento
da Tendências Consultoria noticiado pelo
jornal O Estado de S. Paulo.
"Tem uma
clara evidência de que a nossa pobreza migrou de ser de insuficiência de
salário, para ser de falta de trabalho. Não é que a economia não tenha
trabalho, mas as pessoas mais pobres têm muita dificuldade de se reconectar ao
mundo do trabalho", avalia.
"Temos
então que reconstruir essa conectividade dos mais pobres com a economia
brasileira, num esforço coletivo e em novas bases. Vamos ter que levar muito a
sério o talento dessas pessoas, promovendo uma inserção mais moderna,
produtiva, sustentável e permanente."
Voltar ao
Brasil sem Miséria
Segundo Paes
de Barros, o modelo que está sendo proposto é muito similar ao do plano Brasil
sem Miséria, lançado em 2011 pelo governo de Dilma Rousseff.
Esse plano,
diz ele, era baseado em três pilares: direito ao trabalho, transferência de
renda e garantia de outros direitos sociais, como acesso à água, luz e
habitação.
"O
desenho do Brasil sem Miséria é o que tem de mais moderno em nível mundial.
Tinha muita coisa a melhorar no programa, mas ele estava absolutamente na
direção certa. O que o Brasil tem que fazer é voltar ao Brasil sem
Miséria", defende Paes de Barros.
Questionado
sobre o que deu errado com o programa e por que ele não foi bem-sucedido em seu
intuito de acabar com a miséria no país, Paes de Barros avalia que o plano
perdeu prioridade no governo Dilma, já antes do impeachment sofrido pela ex-presidente.
"Teve
uma descontinuidade do Brasil sem Miséria antes da transição [entre governos].
Por razões que eu não sei por quê. Mas precisamos de um 'Brasil sem Miséria 2',
cujo pilar central seja a inclusão produtiva. O pilar da transferência de renda
deve ser complementar, mas não é ele que vai superar a pobreza", afirma.
"O erro
do Brasil pós-Tereza Campello [titular do Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome entre 2011 e 2016] foi o foco exclusivo em transferência de
renda."
Diretrizes
para superar a pobreza
O programa
idealizado por Paes de Barros e Laura Machado é baseado em cinco eixos:
- foco em quem
mais precisa (focalização);
- atendimento
personalizado e integrado;
- acesso
prioritário dos que mais precisam a serviços e oportunidades;
- confiança das
famílias e dos agentes públicos de que superar a pobreza pela inclusão
produtiva é possível;
- e contínuo
monitoramento, avaliação e correção de rotas.
Os
economistas observam que a focalização tem uma vantagem orçamentária.
Por exemplo,
garantir uma renda mínima de R$ 210 (atual linha de pobreza do Programa Auxílio
Brasil) para todos os 213 milhões de brasileiros custaria R$ 536 bilhões por
ano, ou 6,2% do PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e serviços produzidos
pelo país).
Já com
transferências focadas nos 14% da população com renda inferior a R$ 210 por
pessoa, e considerando que parte dessas famílias têm alguma renda, é possível
atingir o mesmo objetivo de que todos os brasileiros tenham uma renda mínima de
R$ 210 com um gasto de R$ 51,3 bilhões por ano, ou 0,6% do PIB.
No entanto, a
focalização tem uma desvantagem: como ganha mais quem tem renda menor, as
pessoas têm um desincentivo para aumentar sua renda através do trabalho, pois
isso resulta numa redução das transferências recebidas pelo governo.
Assim, os
economistas sugerem dois caminhos para contornar esse problema: o primeiro é
que a redução do benefício tem que ser menor do que o ganho de renda obtido
pela pessoa através do trabalho. O segundo, é que a diminuição da transferência
deve acontecer com uma distância no tempo.
Um exemplo,
dizem eles, é o dispositivo de emancipação do Auxílio Brasil (que também estava
presente no Bolsa Família). Com esse dispositivo, uma família que superar a
pobreza através de um aumento na sua renda do trabalho continua a receber as
transferências por mais dois anos.
Planos
familiares personalizados
O segundo
eixo proposto pelos dois especialistas em políticas públicas é o atendimento
personalizado às famílias.
Eles avaliam
que isso é plenamente possível, graças à rede de quase 9 mil Centros de
Referência da Assistência Social (Cras), localizados em cerca de 5.500 (99%)
dos 5.570 municípios brasileiros.
Somente os
Cras contam com 111 mil agentes e o país tem ainda aproximadamente 300 mil
agentes comunitários de saúde, com profundo conhecimento das comunidades onde
atuam, destacam Paes de Barros e Machado.
"A
consequência da pobreza é a mesma: são direitos sociais violados — falta de
trabalho, insegurança nutricional, problemas de habitação e saneamento, etc.
Mas a causa da pobreza é diferente para cada família", defende Paes de
Barros.
"Um erro
grosseiro da política atual é achar que vai resolver o problema da pobreza no
anonimato. Ou seja, eu não sei quem é o pobre, mas vou fazer uma política para
tirar ele da pobreza. É o mesmo que querer resolver o problema da saúde sem o
doente ficar frente a frente com o médico. Não tem como", afirma.
Assim, o
economista defende que cada família trabalhe com um agente público, primeiro
identificando os fatores determinantes de sua pobreza e então mapeando as
oportunidades e assistências necessárias para superá-la.
Esse trabalho
seria acompanhado pelo agente ao longo do tempo, com monitoramento, avaliação e
correção de rotas constantes — o que, na visão dos autores, também é uma forma
de manter a família engajada, já que o sucesso do plano depende de a família
acreditar nele.
E para que o
plano possa ser executado, a família deve ter acesso ao serviços necessários —
como creches, educação integral e centros-dia para idosos, para permitir que os
adultos da família possam trabalhar; serviços de saúde, para garantir bem estar
nutricional, físico e mental a esses trabalhadores; e de transporte, para
assegurar a ida e volta ao trabalho com menor tempo e gasto de recursos.
Os
pesquisadores também sugerem uma gama de serviços para quem busca ou já tem um
emprego, e para quem quer trabalhar por conta própria ou ter um pequeno
negócio.
Esses
serviços vão desde a intermediação de mão de obra e formação profissional, até
o subsídio para aquisição de insumos, disponibilidade de crédito a juros baixos
e assistência técnica aos pequenos empresários.
Como garantir
trabalho nos pequenos municípios
A BBC News
Brasil perguntou a Paes de Barros como levar esse plano a cabo, diante da
realidade dos pequenos municípios brasileiros, onde não há oferta de empregos.
Um levantamento realizado pela
Folha de S. Paulo, com dados do Ministério da
Cidadania e da Secretaria Especial do Trabalho, mostrou, por exemplo, que em
metade (50,3%) dos municípios do país o número de famílias beneficiárias do
Auxílio Brasil supera o de empregados com carteira assinada.
No Nordeste,
beneficiários superam empregados em 94% dos municípios e, no Norte, em 82%.
Isso acontece
devido ao baixo dinamismo da economia dos pequenos municípios, altamente
dependentes do setor público, tanto para a geração de postos de trabalho,
quanto para transferência de recursos, segundo especialistas ouvidos pelo
jornal.
Para Paes de
Barros, a solução está em arranjos produtivos locais.
"A maior
parte do Brasil, e as partes mais pobres do Brasil, tem recursos naturais,
potencialidades e vantagens comparativas. Basta usar isso bem", afirma,
citando como exemplos o arranjo produtivo do mel no Piauí e o da pesca no norte
do Maranhão.
"O
emprego que temos que ter não é emprego público e não é necessariamente emprego
formal. O que queremos é trabalho de alta qualidade, isso pode ser via
cooperativa de produtores e de várias outras maneiras. Ninguém precisa ser
empregado de uma grande empresa, mas é preciso descobrir qual é o talento de
cada local e desenvolver esse talento."
Segundo ele,
isso poderá ser feito com a ajuda do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas). "O Sebrae tem que entrar em campo e baixar a
bola para cuidar do realmente pobre, porque ele ainda tem um ponto de corte
muito alto", opina.
Como será o
Brasil de 2023, após o auxílio de R$ 600
E como fazer
a transição do Auxílio Brasil elevado a R$ 600 pelo governo Jair Bolsonaro às
vésperas da eleição, para esse programa complexo, onde a superação da pobreza
pode levar anos até que as famílias consigam sua autonomia através do trabalho?
"O Auxílio
Brasil é pessimamente focalizado e o Cadastro Único está ridiculamente
desatualizado", avalia Paes de Barros.
"Temos
que melhorar dramaticamente a focalização. Então tem gente que vai perder? Tem.
Gente que não precisa, ou que precisa muito menos. Vamos focalizar e
redesenhar, porque dar R$ 600 para uma família de uma pessoa e R$ 600 para uma
família de sete pessoas não faz nenhum sentido", sentencia.
Segundo ele,
o resultado desse redesenho deve ser ter menos beneficiários, recebendo mais —
em agosto desse ano, o Auxílio Brasil chegou a 20,2 milhões de famílias,
segundo o Ministério da Cidadania.
"O
objetivo é reduzir dramaticamente a distância entre quem está passando fome e
quem é classe média baixa, concentrando os benefícios nos mais pobres. É preciso
dar a garantia de uma renda a essas pessoas e a implementação do projeto de
vida é o segundo pilar", afirma.
Para Paes de
Barros, destinar mais recursos ao Auxílio Brasil foi uma boa ideia, mas isso
foi feito pelo atual governo de maneira tecnicamente tosca e pouco eficaz.
Quanto ao
empréstimo consignado do Auxílio Brasil, também parte do pacote eleitoral de
Bolsonaro, o economista avalia que a possibilidade de tomar dinheiro emprestado
é algo positivo, mas isso deveria vir junto com educação financeira e uma
legislação impedindo a cobrança de juros abusivos.
"A ideia de dar mais uma opção para o cara do que ele pode fazer com o dinheiro dele é boa, mas isso teria que vir junto com uma série de medidas para que ninguém possa abusar desse dispositivo para se apropriar da renda dessas pessoas de uma maneira indevida. A ideia em si é boa, mas como está sendo feito é péssimo", conclui.
(BBC)




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