Também simboliza a pior crise sanitária relacionada ao vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti desde o início da série histórica do Ministério da Saúde, a partir do ano 2000.
A pior temporada de dengue havia sido em 2015, quando o
país teve 1,68 milhão de casos prováveis. Na sequência, vinha 2023, com 1,65
milhão.
Mas o que explica esse cenário de
2024?
Segundo especialistas ouvidos
pela BBC News Brasil, uma "tempestade perfeita" — que engloba mudanças climáticas, fenômenos meteorológicos, subtipos de vírus
e falhas de políticas públicas — ajuda a entender a epidemia atual.
De acordo com sua avaliação, é
necessário lançar um conjunto de estratégias para mitigar os riscos e evitar
que os números continuem elevados — ou sejam ainda piores de 2025 em diante.
Um vírus
de diferentes faces
Para entender os desafios de
lidar com a dengue, é preciso antes conhecer alguns detalhes sobre o vírus por
trás dessa doença.
O patógeno tem quatro versões
diferentes, que são conhecidas pelas siglas Denv-1, Denv-2, Denv-3 e Denv-4.
Na prática, isso significa que
uma mesma pessoa pode ter dengue quatro vezes na vida.
Ela pode ser picada por um Aedes
aegypti que carrega o Denv-1, por exemplo — e, após a recuperação,
ficar imune contra esse subtipo específico do vírus.
Mas, caso seja picada por um
mosquito que carrega o Denv-2, o Denv-3 ou o Denv-4, pode desenvolver a doença
uma segunda vez (e uma terceira ou quarta).
Essa característica da dengue
cria uma dinâmica específica de transmissão, cujos padrões se repetem mais ou
menos a cada cinco anos.
É frequente que uma determinada
região ou cidade seja acometida por um subtipo específico do vírus durante uma
ou algumas temporadas de calor.
Passado um tempo, quando a maior
parte da população já foi infectada — e, portanto, está protegida contra aquele
subtipo —, os casos tendem a baixar por uma espécie de imunidade coletiva — até
que outra versão se dissemine e dê início a um novo ciclo de transmissão.
Esse tipo de fenômeno parece ter
ocorrido no último verão.
"Tudo sugere que houve uma
inversão dos vírus circulantes nas cidades que são, historicamente, atingidas
pela dengue, como Rio de Janeiro e São Paulo", resume o pesquisador em
saúde pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), que coordena
o InfoDengue,
uma plataforma pública que reúne estatísticas e análises sobre a doença no
país.
"Em lugares em que antes
predominava o Denv-1, o Denv-2 passou a circular com mais intensidade, ou
vice-versa."
Ao mesmo tempo, houve um aumento
da circulação do Denv-3 e do Denv-4, que não apareciam com grande intensidade
no Brasil há décadas, acrescenta a infectologista Raquel Stucchi, professora da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ou seja: esse rearranjo de
versões virais, que pegam uma grande parcela da população desprotegida e sem
imunidade, é o primeiro ingrediente que ajuda a entender a atual situação
sanitária.
Mas não é suficiente para
explicar todo o cenário.
Um
mosquito que ganha terreno
O segundo elemento da lista
envolve uma espécie de expansão de território do Aedes aegypti.
Em artigo de revisão publicado em 14 de março no periódico acadêmico Nature
Reviews Microbiology, o virologista brasileiro William M. de
Souza, professor da Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, resumiu os
efeitos das mudanças climáticas e das atividades humanas nas doenças
transmitidas por vetores (como é o caso da dengue).
"Primeiro, precisamos
destacar a mudança demográfica. As pessoas moram cada vez mais em áreas
urbanas, e o Aedes é um mosquito que vive nas cidades",
destaca Souza.
"Ou seja, com um número
maior de indivíduos concentrados em um espaço pequeno, há uma chance ampliada
de o mosquito conseguir transmitir mais e mais."
Soma-se a isso o fato de a
expansão das cidades brasileiras acontecer na maioria das vezes de uma forma
desordenada e desigual, sem saneamento básico ou coleta de lixo.
Isso, por sua vez, também
representa uma boa notícia para o mosquito, que encontra um vasto número de
reservatórios de água parada para botar os ovos, se reproduzir e perpetuar os
ciclos de transmissão e infecção.
"A especulação imobiliária
diminui áreas de mata e aumenta os criadouros do Aedes em
regiões domésticas e urbanas", resume Stucchi, que também integra a
Sociedade Brasileira de Infectologia.
Para piorar, todo esse fenômeno é
catapultado no Brasil e no mundo pelas mudanças climáticas, que geram aumento
da temperatura média e alterações nos regimes de chuvas.
"Historicamente, as zonas
temperadas do planeta, como partes dos Estados Unidos e Europa, não tinham a
circulação de vetores transmissores de doenças. Eles ficavam restritos às
regiões tropicais", explica Souza.
Mas isso mudou recentemente:
o Aedes foi flagrado em partes dos Estados Unidos, como a
Flórida, e na região do Mediterrâneo, como na Itália e França.
"No Brasil, os Estados do
Sul não sofriam com surtos ou epidemias de dengue. Mas as mudanças climáticas
geraram condições favoráveis para o mosquito nesta região", destaca
Bastos, da FioCruz.
"Com toda uma população
vulnerável à dengue, os casos explodiram ali nos últimos anos."
Além das mudanças climáticas, o
verão de 2023/2024 teve outro agravante: um El Niño muito intenso.
O fenômeno meteorológico
relacionado às águas do Oceano Pacífico fez os termômetros subirem ainda mais e
alterou o regime de chuvas nos últimos meses.
Como o calor deixa os Aedes mais
ativos, isso potencializa sua reprodução.
Neste contexto, a questão da
chuva é uma faca de dois gumes.
Por um lado, pancadas d’água
frequentes criam novos criadouros para o mosquito. Por outro, secas estimulam
que as pessoas mantenham em casa reservatórios de água, muitos deles sem
nenhuma proteção.
"Juntos, todos esses fatores
criaram uma tempestade perfeita que leva ao panorama atual da dengue", diz
Bastos.
O especialista destaca que as
curvas de casos de dengue em alguns Estados brasileiros durante o verão foi
diferente do esperado.
Geralmente, os diagnósticos
começam a subir entre o final de fevereiro e o começo de março, quando as
chuvas ficam mais frequentes e intensas.
Mas, em lugares como São Paulo,
Rio de Janeiro e Distrito Federal, as infecções começaram a se multiplicar a
partir do final de dezembro, com um pico no meio de fevereiro.
"Já o Nordeste, que não
sofreu tanto os efeitos do El Niño, não apresentou essa curva. Os casos estão
elevados por lá, mas estão crescendo agora, como o esperado", acrescenta o
pesquisador da FioCruz.
Onde
erramos e como podemos melhorar
Questionados pela BBC News Brasil
sobre o que fazer agora para lidar com surtos e epidemias de dengue no futuro,
os especialistas são unânimes em afirmar que não existe uma "bala de
prata" para resolver a questão.
"Já passamos do ponto em que
seria possível reduzir o impacto da dengue. Agora, temos que mitigar o problema
ou agir para que a situação piore o mínimo possível", analisa Souza.
Segundo os pesquisadores, os
surtos frequentes e os números crescentes de casos indicam que as campanhas de
conscientização sobre a dengue não estão funcionando.
Eliminar os pratinhos dos vasos
de planta, limpar as calhas do telhado entupidas e tampar caixas d’água são
atitudes importantíssimas para evitar criadouros do Aedes.
Porém, por mais que essa
recomendação seja reforçada há anos, não está surtindo os resultados esperados,
uma vez que o mosquito continua a assombrar, com cada vez mais intensidade, as
temporadas de calor.
"Nossa comunicação sobre as
doenças infecciosas no geral nunca foi boa e tem deixado a desejar", opina
Bastos.
Em paralelo às campanhas
públicas, as estratégias de controle do transmissor ganharam novas ferramentas.
Uma delas é o Método Wolbachia, que libera
mosquitos Aedes com uma bactéria no intestino capaz de
bloquear a transmissão do vírus da dengue para as pessoas.
Já o tradicional fumacê, que joga
inseticidas em uma determinada região, tem se tornado ineficaz, apontam os
especialistas.
Isso porque os mosquitos
desenvolveram uma resistência ao veneno — e as substâncias químicas utilizadas
podem ser danosas a outras espécies, como algumas abelhas.
Para evitar surtos e epidemias
devastadores no futuro, Souza vê a necessidade de um planejamento de longo
prazo.
"Sabemos que os casos
aumentam nos meses mais quentes, entre dezembro e março. Mas as estratégias de
controle e prevenção devem acontecer o ano todo, até porque os ovos do mosquito
permanecem no ambiente", explica ele.
Já Bastos entende que o Brasil
precisa melhorar a vigilância genética sobre o vírus causador da doença.
"Poderíamos monitorar os
subtipos de vírus que estão circulando para saber se há alguma modificação na
dinâmica e o que pode ser feito a partir daí", resume ele.
Já Stucchi acredita que é preciso
mudar como organizamos as cidades — desde o manejo de lixos e do saneamento
básico até a construção civil.
"Para evitar outros surtos
não apenas de dengue, mas também de chikungunya, febre amarela e outras
viroses, precisamos olhar com mais cuidado a exploração imobiliária em áreas
florestais", diz a infectologista.
"O poder público também
precisa investir em educação, além de vistoriar e agir nos terrenos
abandonados, na coleta de lixo e na eliminação de esgotos a céu aberto."
Uma novidade recente nesse campo
foi a aprovação da Qdenga, uma vacina
desenvolvida pela farmacêutica japonesa Takeda.
Ela foi incorporada no Programa
Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde — porém, por uma restrição
de doses, a campanha de imunização atual inclui apenas grupos específicos de
cidades selecionadas.
"Além disso, a vacina só
pode ser aplicada em pessoas de 4 a 60 anos. Por ora, não há indicação de uso
justamente para aqueles públicos que têm uma taxa de mortalidade maior pela
dengue, como as crianças pequenas e os idosos", observa Stucchi.
"Precisamos de vacinas
efetivas e seguras que cubram as faixas etárias mais acometidas."
A médica também reforça a
necessidade de desenvolver remédios específicos contra a dengue —
até o momento, o tratamento envolve apenas aliviar os sintomas, repousar e
caprichar na hidratação.
"A dengue sempre afetou mais
os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Agora que ela começa a
aparecer na França, Itália e Estados Unidos, é possível que tenhamos mais
investimentos para o desenvolvimento de drogas antivirais. Pelo menos, é a
nossa esperança."
(Fonte: BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário