A
música foi composta e regida por Antônio Cardoso de Menezes (1848-1915), um dos
mais renomados musicistas do período conhecido como segundo império brasileiro.
Eram
os ecos de um acontecimento histórico ocorrido naquele mesmo dia a cerca de 2,5
mil quilômetros da capital do país: na então província do Ceará estava extinta a escravidão,
quatro anos antes da Lei Áurea decretar o fim desse regime de
trabalho forçado em todo o território nacional.
A
declaração coube ao médico e político Sátiro de Oliveira Dias (1844-1913),
então presidente da província. De acordo com informações do Senado, ele teria
dito que "para a glória imortal do povo cearense e em nome e pela vontade
desse mesmo povo, proclamo ao país e ao mundo que a província do Ceará não
possui mais escravos".
Reverberou
a notícia não só localmente. Um dos mais importantes nomes do movimento
abolicionista, o farmacêutico e jornalista José do Patrocínio (1853-1905)
estava em Paris e enviou uma carta ao escritor Victor Hugo (1802-1885),
participando a ele a novidade. A carta de resposta do francês afirmava que a
iniciativa cearense era um sinal de que "a barbárie recua e a civilização
avança".
"O
grande significado, o maior impacto [do fato ocorrido no Ceará] foi ter
efetivamente começado, ter sido a primeira abolição do Brasil. Logo depois veio
no Amazonas [em 10 de julho do mesmo ano] e isso mostrava que era um caminho
que se fortalecia", analisa à BBC News Brasil a historiadora Martha Abreu,
professora na Universidade Federal Fluminense e pesquisadora na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
"O
movimento abolicionista estava ganhando os seus primeiros resultados e o país
já não era só escravista", acrescenta ela. "Foi uma vitória simbólica
e política que teve enorme repercussão, animando o movimento
abolicionista."
Professor
na Universidade Estadual Paulista, o historiador Paulo Henrique Martinez
enfatiza que, após o ato, "o fim do trabalho escravo se tornava uma
realidade econômica e social concreta" no Brasil.
"Uma
opção política sem riscos para os grandes proprietários rurais que tinham
investido recursos na aquisição e manutenção de cativos", diz ele, à BBC
News Brasil.
Ele
também destaca o "efeito multiplicador" do ocorrido, algo buscado
pelas campanhas abolicionistas. "A abolição mostrava-se como o resultado
de ações efetivas, de uma campanha ativa e dinâmica, impulsionada pela sensibilização
e o engajamento da opinião pública e pela mobilização de maior apoio político e
social", afirma.
"Este
foi o primeiro êxito coletivo, ultrapassando as vitórias alcançadas em
situações individuais, localizadas e de pequenos grupos, como o apoio clandestino
a fugas, a compra de alforrias ou iniciativas humanitárias e piedosas de
senhores de terras e proprietários de cativos em áreas urbanas."
Pesquisador
no grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual
Paulista, e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador
Victor Missiato situa a abolição no Ceará como "um marco dentro de um
movimento amplo pelo fim da escravidão".
"Representa
um marco político institucional, para além de um marco cultural, social e histórico",
avalia ele, à BBC News Brasil. "Marca o início da abolição e isso ocorra
dentro das instâncias representativas, dentro de um império que não estava mais
tão centralizador como antes."
Missato
atenta para o fato de que o ato denota que havia "uma flexibilidade
provincial" e uma certa "autonomia provincial" dentro do
império.
“É
interessante pensar e falar sobre esse momento porque a gente fala sobre a
abolição longe de uma perspectiva do episódio. Tratar o 13 de maio de 1888
[data da Lei Áurea] como um raio no céu azul é bastante complicado porque não é
isso, [a abolição] é consequência de um acúmulo de lutas de atores diversos, de
sociedades”, argumenta à BBC News Brasil o historiador Vitor Hugo Monteiro
Franco, autor do livro Escravos da Religião e pesquisador na
Universidade Federal Fluminense.
“São
essas pessoas que conduzem a abolição e não uma canetada da princesa Isabel.
Perceber a abolição mais como um acúmulo de lutas do que como um episódio
isolado é sempre muito bem-vindo e interessante”, defende ele.
Pouca dependência econômica da escravidão
Mas
é preciso analisar o contexto da província cearense para entender como e por
que esse marco institucional ocorreu lá. E a primeira razão que explica esse
pioneirismo está não exclusivamente nas pressões sociais, mas também no viés econômico.
"Uma
das razões é que em 1872 os escravos eram apenas 4% da população do Ceará, e
esse percentual foi diminuindo em razão da venda de escravos cearenses para as
regiões cafeeiras de São Paulo", explica o historiador Renato Pinto
Venancio, professor na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de, entre
outros, Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e
Brasil.
"A
grande seca dos anos 1877-1879 [na região] acelerou esse processo de venda de
escravos para outras regiões", salienta ele. "Em outras palavras, no
início da década de 1880, a classe dominante local não dependia mais
economicamente dos escravos."
Abreu
concorda. "Precisamos ver que a escravidão negra não era o carro chefe da
mão de obra no Ceará, não era fundamental para o movimento econômico de lá.
Havia muitos trabalhadores já libertos, muitos indígenas escravizados ou não,
então há uma importância não tão grande da mão de obra escrava negra, o que faz
não haver uma classe senhorial que se agarrasse na escravidão como se aquilo,
caso acabasse, representasse a sua morte", lembra a historiadora.
"A
dinâmica econômica naquela província, por um lado, foi revelando a
obsolescência e a inviabilidade da mão de obra cativa e, por outro, a
organização e atuação de associações e de líderes abolicionistas e que assumiu,
naquelas circunstâncias, dimensões e eficácia política singular", diz
Martinez.
"A
excepcionalidade do que aconteceu no Ceará é testemunha dessa circunscrição ao
contexto regional e cearense pois o fato não se repetiu em nenhuma outra
província do Império."
Missiato
lembra do contexto abolicionista brasileiro, sobretudo depois de leis
restringindo e, depois, proibindo o chamado tráfico negreiro, ou seja, a
chegada de novos escravizados, pelo Atlântico, diretamente da África.
Isto
acabou intensificando um comércio interno de escravizados. E o nordeste se
tornou um grande fornecedor para o sudeste, onde a cafeicultura ia crescendo e
absorvendo mais mão de obra.
"Com
o café já deslocando o centro do poder econômico do país para o sul, muitos
escravos começam a sair da região nordeste por meio do tráfico interno",
comenta. "É um contexto que deixou o número de escravos ao norte muito
reduzido."
Especificamente
no Ceará, isso era ainda mais intenso. "Porque ali, historicamente, a
agricultura de cana de açúcar não era a única grande produção econômica. Havia
pecuária, circulação comercial e atividades que não exigiam tanto a mão de obra
escrava. Além disso, a presença indígena era muito forte", analisa ele.
Movimento abolicionista
Contudo,
o contexto social, político e histórico também não pode ser negligenciado. A
luta de parte da sociedade pela abolição era grande em diversos pontos do país
— e o Ceará fazia parte desse movimento.
"Havia
no Ceará a partir de 1850 um movimento político intelectual muito forte, com
impacto na opinião pública e uma incipiente sociedade civil, que lutava pelas
ideias abolicionistas e absorviam as ideias que vinham de fora", diz
Missiato.
"A
conjuntura do movimento abolicionista era uma realidade no Brasil",
acrescenta Abreu.
"E,
principalmente a partir dos anos 1880, tinha ramificações em todas as grandes
cidades. Estava enraizado nos setores intelectuais, entre os letrados. Era um
movimento urbano, artístico e social muito importante, junto a irmandades
negras e associações de trabalhadores."
O
historiador Martinez ressalta a participação da elite.
"Convém
lembrar que a base social do abolicionismo no Ceará contou com representantes
de grupos econômicos poderosos, os seus contatos no Rio de Janeiro, acesso e
influência parlamentar na Assembleia do Império", pontua.
"No
início da década de 1880 surgiram agremiações de abolicionistas na província.
Em 1882, José do Patrocínio participou de atos e encontros pelo fim da
escravidão no Brasil. Em 1883, foi criada a Confederação Abolicionista com a
finalidade de coordenar campanhas e ações em todas as províncias do Império. A
Sociedade Abolicionista Cearense integrou o agrupamento de entidades
associativas que esteve na origem desta Confederação."
Jangadeiros
Houve
nessa província um antecedente importante da luta. Por isso, Venancio atenta
que, "apesar dessas condições estruturais favoráveis", não pode ser
esquecido o papel do movimento abolicionista no episódio de 1884. "Ele [o
abolicionismo] existiu no Ceará e inclusive teve apoio popular, como no caso dos jangadeiros", afirma.
Abreu
comenta que os jangadeiros "foram um grande exemplo" do movimento
abolicionista naquela região.
Em
janeiro de 1881, os jangadeiros que atuavam no Porto de Fortaleza decidiram
fazer uma greve, fechando o porto ao tráfico de escravizados. A ação foi
liderada pela Sociedade Libertadores Cearense. Até 1884, esse movimento teve
altos e baixos, inclusive com confrontos entre os militantes e a polícia.
Os
ânimos só começaram a ser apaziguados quando Sátiro Dias assumiu o governo da
província, em 1883. Simpático às ideias abolicionistas, ele passou a dialogar
com os grevistas e, claro, a extinção da escravidão no Ceará acabou sendo a
hábil solução do político.
Repercussão
"Uma
medida dessas [a abolição cearense] soltou a chama da liberdade, que se
espalhou pelo país inteiro, ainda que naquela época as notícias demorassem um
pouco mais para serem conhecidas", afirma à BBC News Brasil o advogado
Humberto Adami, presidente da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão da
Ordem dos Advogados (OAB) do Brasil no Rio de Janeiro, vice-presidente da
Comissão Nacional da Verdade da Escradião Negra do conselho federal da OAB e
presidente da Comissão de Igualdade Racial do Instituto dos Advogados
Brasileiros.
"A
primeira notícia de abolição da escravidão acabou fazendo com que seguidores
dessas ideias seguissem lutando por elas", complementa.
A
historiadora Abreu lembra que, nesse momento, havia uma verdadeira rede de
abolicionistas, com intercâmbio de informações. "E o Ceará acaba ganhando
uma projeção enorme", ressalta ela.
"Foi
o primeiro rompimento da ordem escravista nacional. Saiu em todos os lugares.
Teve comemorações em Londres e Paris, afinal a rede abolicionista era internacional.
O Ceará passou a fazer parte, junto a outros locais, dessa evidência do fim da
escravidão. Quanto mais territórios livres houvesse no mundo, melhor",
analisa.
Venancio
comenta que "a recepção da abolição do Ceará na corte" foi
"muito positiva e acelerou a adesão ao abolicionismo".
"Os
protagonistas e as ações verificadas no Ceará foram saudados e aclamados pelos
dirigentes e participantes nas campanhas pela abolição em diferentes cidades,
jornais e pronunciamentos públicos, sobretudo no Rio de Janeiro. O líder dos
jangadeiros que promoveram o boicote ao desembarque de cativos no porto de
Fortaleza, posteriormente, foi recebido e festejado no Rio de Janeiro,
proporcionando aglomerações e animando discursos, artigos, conferências e
conversas nas ruas, teatros e salas de visitas", enumera Martinez.
"O
debate sobre o tema e os rumos a serem seguidos para abolir a escravidão em
todo o Império adquiria presença e crescente visibilidade pública. Nos
gabinetes ministeriais, nos discursos parlamentares, nos tribunais, nos
círculos de negócio e do comércio as opiniões, críticas e argumentos sobre a
abolição eram aventadas e discutidas abertamente, sendo incorporadas à agenda
política até a Lei Áurea, em 1888."
Segundo
o historiador, a busca de uma solução política a curto prazo se tornou urgente,
porque era preciso espantar "o temor da participação popular e da
autonomia que adquiriram o protesto negro e a revolta dos cativos nas
fazendas". "Ainda que as resistências a ela tenham sido duras e persistentes
nos quatro anos seguintes aos episódios no Ceará", pondera ele.
(Fonte: BBC)
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