A Agência Brasil conversou com
especialistas em recursos hídricos, que pesquisam áreas como geologia, agronomia,
engenharia civil e ambiental. Há consenso de que se trata de um evento extremo,
sem precedentes, potencializado pelas mudanças climáticas no planeta. Mas
quando o assunto é o papel desempenhado pelas atividades econômicas e a
ocupação do território, surgem as discordâncias.
Ocupação e
desenvolvimento urbano
O geólogo Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), é crítico em relação às políticas de planejamento urbano e
econômico no estado. O caso de Porto Alegre, para ele, é o mais emblemático de
que há uma desorganização generalizada do território, causado por um conjunto
de atividades econômicas. Por isso, defende que não se pode falar apenas em
grande precipitação como causadora da tragédia, mas também de problemas graves
de gestão que a potencializaram.
“Os planos diretores da cidade foram
desestruturados para facilitar a especulação imobiliária. No caso de Porto
Alegre, por exemplo, toda a área central que hoje está inundada no porto, foi
oferecida para ser privatizada e ocupada por espigões. Houve um sucateamento do
nosso sistema de proteção, como se nunca mais fosse haver inundações”, diz
Rualdo.
O desmatamento de vegetação nativa para
fins imobiliários também é considerado fator que dificulta o escoamento de água
da chuva.
“Há uma ocupação intensiva do solo. Em
Porto Alegre, em especial na margem do Guaíba, na zona sul, ainda temos um
ecossistema mais perto do que foi no passado, com estrutura de zonas de
banhado, matas e morros. Mas essas áreas estão sob pressão da especulação
imobiliária. E por causa das políticas de uso intensivo do solo urbano, essas
áreas estão sendo expostas, em detrimento da conservação dos últimos estoques
ambientais, que ajudam a regular as vazões da água”, analisa Rualdo.
O professor de recursos hídricos da
Coppe/UFRJ, Paulo Canedo, pondera que ainda é preciso analisar a situação com
mais calma. Mas reforça que o desenvolvimento econômico e social, quando não
acompanhado de medidas estruturais e preventivas, facilita inundações.
“Nós temos a convicção de que a chuva foi
realmente extraordinária. Mas é claro que o progresso da região trouxe
dificuldades de escoamento. Isso é a contrapartida do progresso. Criam-se as
cidades, as atividades econômicas, novas moradias. Mas tem o ônus de
impermeabilizar o solo e gerar mais vazão para a chuva”, avalia Paulo Canedo.
“Muitas atividades econômicas podem ter sido desenvolvidas de forma não
sustentável. Não criaram condições para lidar com esse aumento de
impermeabilização. Isso é algo que devemos ter em mente quando formos
reconstruir o Rio Grande do Sul”.
Agricultura
Outro ponto em discussão é se o investimento em determinadas atividades
agrícolas, com consequentes alterações da vegetação nativa, ajudaram a
fragilizar os solos e o processo de escoamento da água. Para o geólogo Rualdo
Menegat, esse foi um dos elementos que aumentou o impacto das chuvas no estado.
“Grande parte do planalto meridional tem
sido intensamente ocupada pelas plantações de soja no limite dos arroios,
destruindo a mata auxiliar e os bosques. E também os banhados, que acumulam
água e ajudam que ela não ganhe velocidade. O escoamento de água passa a ser
muito mais violento e em maior quantidade, porque não há tempo para
infiltração”, diz Rualdo.
O agrônomo Fernando Setembrino Meirelles
discorda do peso dado à agricultura nas inundações recentes. Ele é professor de
recursos hídricos na UFRGS e foi diretor do Departamento de Recursos Hídricos
do Rio Grande do Sul entre 2015 e 2019. Meirelles defende que as atividades agrícolas
não foram um fator de importância para a tragédia, que deve ser explicada pela
magnitude das chuvas.
“Tivemos muitos deslizamentos em áreas de
matas, que já estavam consolidadas. Na região mais alta e preservada do estado,
temos milhares de cicatrizes de escorregamento. O solo derreteu, simplesmente
perdeu capacidade de suporte por causa da chuva muito intensa. Na região do
Vale do Taquari, a gente vê pilhas de árvores que foram arrancadas. Então, a
relação da agricultura com esse evento é zero. Ela não é o motor dessa cheia”,
diz Fernando Meirelles.
Doutor em recursos hídricos, o engenheiro
civil e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), Jaime Federici
Gomes, entende que, apesar do papel importante que a vegetação desempenha no
escoamento de água, não acredita que as intervenções agrícolas tenham tido
influência nas inundações.
“Os tipos de vegetação que estão no solo
têm influência em uma das fases do ciclo hidrológico, que é a interceptação de
água pelas raízes. Grandes plantas são um reservatório e jogam parte dessa água
para atmosfera. As copas das árvores também podem interceptar a água antes de
ela chegar ao solo. Mas dada a magnitude das chuvas, eu não sei como regiões
mais florestadas poderiam ter diminuído o volume de escoamento. Em um evento
desse, com muita água, pode não ter tido quase influência”, diz Jaime.
Sistemas de contenção
Depois de um histórico de enchentes no século 20, a cidade de Porto Alegre
desenvolveu uma série de recursos estruturais para impedir enchentes. Nesse
ponto, não há divergências: ficou claro que o sistema de contenção de águas
apresentou falhas agora.
“Os sistemas de proteção foram projetados
na década de 1970, por causa das cheias de 1941 e de 1967. Ele foi o mais
economicamente viável. Tecnicamente é bastante adequado e eficiente. Em Porto
Alegre, tem também vários diques compatíveis com a cheia de 1941. Mas, desta
vez, na hora de fechar as comportas, quando a água ficou acima de quatro
metros, elas começaram a vazar, tiveram problemas de vedação e acabaram
abrindo. E as casas de bombas, que drenam as águas dentro da cidade, devem ter
falhado”, analisa o engenheiro Jaime Federici.
“Os sistemas de proteção falharam aqui em
Porto Alegre por falta de manutenção. Ele não foi superado pela água, já que ela
entrou por baixo. Agora em outros sistemas, como os das cidades de São Leopoldo
e de Canoas, houve uma passagem da água por cima deles. Ou seja, os critérios
de projeto que foram utilizados considerando o passado, agora não têm mais
validade. Eventos estão mostrando que, por causa das mudanças climáticas,
devemos considerar outras métricas e estatísticas”, complementa o professor
Fernando Meirelles.
Para Rualdo Menegat, a negligência
política ajudou a enfraquecer a capacidade estrutural do estado de lidar com
fenômenos climáticos mais intensos.
“Nas cidades e nos campos, a
infraestrutura de energia elétrica, de água e de proteção contra as inundações
estão sendo sucateadas nos últimos três governos estaduais. A companhia de
energia elétrica e de abastecimento de água foram privatizadas. A Secretaria de
Meio Ambiente foi incorporada a outra e assumiu papel secundário. O estado não
desenvolveu capacidade de inteligência estratégica para diminuir os riscos e
nos tornamos mais vulneráveis”, diz Rualdo.
Conhecimento
e prevenção
Quando se fala em prevenção e redução de danos, os especialistas entendem que é
possível ao menos minimizar as consequências dos fenômenos climáticos com
treinamento adequado de profissionais e da população.
“Não temos uma Defesa Civil eficiente. O
que vimos foi que ela está desestruturada, com dificuldades, mal aparelhada,
sucateada. E sem mecanismos de alerta. Além disso, temos uma população que, por
não haver programas estratégicos para ela, tem problemas de acesso às
informações de prevenção”, diz Rualdo.
“As defesas civis de alguns municípios, principalmente desses que foram afetados, têm uma ou duas pessoas. Poucos têm uma Defesa Civil consolidada. E a população precisa de treinamento para saber se defender”, diz Jaime Federici. “Mas, economicamente, não vejo soluções definitivas para esse tipo de evento. Vamos imaginar o exemplo do Japão, que lida com furacões, terremotos e maremotos, e tem toda uma estrutura para conviver com esses eventos extremos. Isso é algo que temos que começar a estabelecer na cultura. Precisamos aprender a nos defender, lidar com essas situações e, aos poucos, fazer as adaptações estruturais”.
(JB/Ag. Brasil)
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