A anistia a pessoas envolvidas na invasão
das sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023 foi
um dos principais temas das falas da manifestação convocada por Jair
Bolsonaro (PL) em Copacabana, no Rio de Janeiro, para este domingo (16/3).
No discurso a apoiadores, o ex-presidente disse que há votos suficientes para aprovar o texto do projeto de anistia que atualmente tramita no Congresso Nacional e emendou que, se o presidente Lula vetar, "nós derrubaremos o veto".
"Por
que a esquerda está contra anistia, já que eles, ao longo da história, sempre
foram beneficiados em anistia?", declarou.
Ele
abriu sua fala dizendo que este era "um dos dias mais difíceis" de
sua vida. "Porque vamos falar aqui sobre a vida de inocentes, de pessoas
que estão sendo injustiçadas", completou, antes de iniciar uma defesa de
seus apoiadores.
O
ex-presidente chamou, ainda, o Brasil de "terra prometida", disse que
não deixaria o país, e afirmou: "Vou ser um problema para eles preso ou
morto".
Bolsonaro discursou
acompanhado de políticos como os governadores do Rio, Cláudio Castro (PL), e de
São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), o pastor Silas Malafaia, os
senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Magno Malta (PL-ES), e o presidente do PL
(Partido Liberal), Valdemar Costa Neto, que declarou ter "fé" de que
Bolsonaro será candidato em 2026.
O
ex-presidente foi declarado inelegível por oito anos, desde junho de 2023, por
abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação.
Também
no palanque, o deputado Rodrigo Valadares (União-SE), relator do projeto de
anistia na Câmara dos Deputados, disse ao público: "Venho trazer palavra
de esperança: a anistia está mais viva do que nunca e iremos aprovar a anistia
aqui no Brasil."
Um
relatório do Supremo Tribunal Federal (STF) de janeiro deste ano apontou que
371 pessoas haviam sido condenadas por crimes relacionados ao 8 de janeiro de
2023. Outras 527 teriam admitido a prática de crimes relacionados e feito
acordos com o Ministério Público Federal (MPF) para não serem processadas.
Na
convocação aos protestos, Bolsonaro postou um vídeo com a foto de quase uma
dezena de mulheres condenadas por seus envolvimentos no episódio - sem
mencionar, contudo, que uma possível aprovação da anistia poderia beneficiá-lo
diretamente.
É o
que afirmam juristas ouvidos pela BBC News Brasil que avaliaram o projeto.
Segundo eles, o texto prevê a anistia para pessoas direta ou indiretamente
envolvidas no 8 de janeiro e até mesmo por atos anteriores.
Isso,
em tese, beneficiaria Bolsonaro, apontado pela Procuradoria-Geral da República
(PGR) como o suposto líder de uma organização que
teria tentado dar um golpe de Estado que teria culminado com o 8 de janeiro.
Bolsonaro
é acusado crimes como
de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito,
organização criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça
contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Ele nega todas as
acusações.
Mas
o que diz exatamente o projeto de anistia e quais as chances de ser aprovado?
A
BBC News Brasil questionou juristas, políticos e cientistas políticos para
responder a estas perguntas e explicar como a anistia aos presos pelo 8 de
janeiro pode, sim, favorecer também o ex-presidente.
A
reportagem procurou sua defesa, mas, até o momento da publicação, não houve
resposta.
O
que diz o projeto?
O
projeto de lei mais avançado de anistia ao 8 de janeiro é de autoria do
ex-deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), um dos principais aliados de
Bolsonaro durante seu governo.
O PL
2.858 foi apresentado em novembro de 2022 e, inicialmente, tinha o objetivo de
anistiar manifestantes que teriam participado de protestos no dia 30 de
outubro, após a derrota de Bolsonaro no segundo turno das eleições daquele ano.
Naquela
ocasião, manifestantes contra a vitória de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) bloquearam rodovias impedindo a circulação de pessoas e
automóveis em diversas partes do Brasil, o que gerou uma série de prisões.
Em
2023, os parlamentares mudaram o projeto para anistiar também quem participou
do 8 de janeiro. O projeto, em síntese, prevê o seguinte:
- Anistia a
todos que apoiaram ou financiaram e participaram direta ou indiretamente
dos atos de 8 de janeiro de 2023, em atividades relacionadas antes ou
depois dos protestos;
- A medida
também beneficiaria quem fez mobilizações em redes sociais em prol dos
atos;
- A anistia se
aplicaria a todos já julgados ou quem ainda esteja sendo julgado, com
extinção da pena de todas as pessoas já condenadas;
- Mudanças no
Código Penal, como a exigência de que seja caracterizado o uso de
violência grave contra pessoas nos casos em que suspeitos são processados
por tentativa de abolição do Estado democrático de direito;
- Manutenção
dos direitos políticos dos condenados ou investigados;
O
projeto chegou a tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara
dos Deputados no ano passado, mas não foi votado.
Como
a anistia poderia beneficiar Bolsonaro?
Juristas
ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, da forma como está escrito, o projeto
de lei pode beneficiar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Isto
por conta de dispositivos como um inciso do primeiro artigo do projeto:
"§
3º Fica também concedida anistia a todos que participaram de eventos
subsequentes
ou eventos anteriores aos fatos acontecidos em 08 de janeiro de
2023,
desde que mantenham correlação com os eventos acima citados".
Na
prática, o texto diz que as pessoas que participaram de eventos antes ou depois
de 8 de janeiro de 2023 que tenham conexão com os atos daquele dia também
seriam alvo da anistia.
"Do
jeito que está colocado, o projeto de anistia abre margem jurídica para
beneficiar o ex-presidente", diz o professor de Direito Penal da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Davi Tangerino.
"Isso
acontece porque, na visão da PGR, Bolsonaro teria tomado medidas que levaram ao
8 de janeiro. Como o texto do projeto é amplo e prevê anistia a atos anteriores
ao 8 de janeiro, em tese, o ex-presidente poderia ser beneficiado."
O
texto da denúncia da PGR de fato conecta as ações de Bolsonaro com o 8 de
janeiro. Bolsonaro foi denunciado junto com outras 33 pessoas.
"As
ações progressivas e coordenadas da organização criminosa culminaram no dia 8
de janeiro de 2023, ato final voltado à deposição do governo eleito e à
abolição das estruturas democráticas", diz um trecho da denúncia, cujo
recebimento deverá ser julgado no STF na quarta-feira (15/3).
"Os
denunciados programaram essa ação social violenta com o objetivo de forçar a
intervenção das Forças Armadas e justificar um Estado de Exceção."
Rafael
Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), argumenta na
mesma linha de Tangerino.
"Quando
a denúncia incluiu o 8 de janeiro nesse grande enredo do golpe, ela, de certa
maneira, deu um argumento para que se possa sustentar que ele [Bolsonaro] possa
dizer que, nos termos da denúncia da PGR, tudo isso deve ser considerado conexo
ao 8 de janeiro, porque a própria PGR fez essa conexão. Então, ele teria essa
margem para construir essa interpretação ampliativa da anistia", diz
Mafei.
O
professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Pierpaolo Bottini
aponta que outro trecho do projeto que abre brechas para beneficiar Bolsonaro
está no inciso primeiro do artigo 1º.
"A anistia de que trata o caput compreende os crimes com motivação política e/ou eleitoral, ou a estes conexos, bem como aqueles definidos no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal", diz o trecho.
Na
avaliação de Bottini, a utilização do termo "conexo" possibilita a
inclusão de Bolsonaro no rol de beneficiados pela anistia.
"Crime
conexo é o termo técnico para designar tudo aquilo que é relacionado a um
determinado fato, neste caso, os atos de 8 de janeiro", diz o professor à
BBC News Brasil.
"Dessa
forma, quaisquer atos que tenham vínculo com 8 de janeiro estariam passivos de
anistia. Isso permitiria, em tese, anistiar Bolsonaro."
Bottini
diz, no entanto, que a anistia, se fosse aplicada a Bolsonaro, não poderia, em
tese, reabilitá-lo a disputar as eleições em 2026.
Isto
porque o ex-presidente está inelegível até 2030 por conta de duas condenações
por infrações eleitorais julgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e não
pelos supostos crimes relacionados ao 8 de janeiro.
"Até
onde se sabe, essa anistia se aplicaria apenas à esfera criminal e não à
eleitoral. Ele poderia não ser condenado pelo STF, mas isso não teria
influência sobre sua inelegibilidade", afirma Bottini.
Articulações
políticas pró e contra a anistia
Nas
últimas semanas, a oposição passou a tentar dar mais velocidade à tramitação do
projeto que prevê a anistia aos envolvidos no 8 de janeiro. Na semana passada,
por exemplo, o PL protocolou um pedido de requerimento de votação em regime de
urgência.
Caso
o pedido seja aprovado, o projeto poderá tramitar com prazos e exigências menos
rígidas, o que aceleraria a votação.
Para
o líder da oposição na Câmara dos Deputados Luciano Zucco (PL-RS), a bancada
bolsonarista já teria apoio suficiente para aprovar o projeto na Câmara.
Segundo
ele, pelo menos 300 deputados já teriam manifestado suporte ao projeto. São
necessários 257 votos para aprovar um projeto de lei como esse na Casa.
Após
ser aprovado na Câmara, o projeto também teria que ser votado no Senado. Caso
seja aprovado lá, ele ficaria sujeito ao veto do presidente Lula.
"Temos
votos de diversos partidos que hoje fazem parte da base como o PP, Republicanos
e PSD. O Centrão entende que a anistia precisa ser votada para apaziguar o
país", disse o parlamentar à BBC News Brasil.
Para
Zucco, o foco do projeto não seria beneficiar o ex-presidente Bolsonaro.
"Esse
projeto não tem nenhuma vinculação com o presidente. Estamos preocupados com as
mulheres, mães, algumas avós de 70 anos de idade que estão presas e que não
tiveram acesso ao amplo direito de defesa", disse o parlamentar.
Para
o deputado federal Zeca Dirceu (PT-PR), a oposição não teria a força que diz
ter para conseguir aprovar o projeto.
"Estão
blefando", rebateu o parlamentar à BBC News Brasil. "Isto não é
prioridade da grande maioria dos deputados. Não vai nem ser pautado."
A
professora de Ciência Política da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Luciana Santana disse não acreditar que o projeto será colocado em pauta no
curto ou médio prazos.
"Não
vejo isso avançando porque acho improvável que [presidente da Câmara] Hugo
Motta ou [presidente do Senado] Davi Alcolumbre se desgastem com o governo Lula
neste momento pautando um projeto como esses", afirma a professora.
A
palavra final
Apesar
do empenho da oposição em acelerar a tramitação do projeto da anistia,
especialistas avaliam que isso, sozinho, não será suficiente para que o perdão
aos crimes cometidos no dia 8 de janeiro sejam perdoados.
Segundo
eles, ainda que o projeto seja aprovado, poderá caber ao STF avaliar se ele é
constitucional ou não.
"Não
há a menor dúvida de quem decidirá se essa anistia vai valer ou não é o STF.
Caso ela seja aprovada, o tema será com certeza judicializado", diz o
jurista Davi Tangerino.
"O
STF vai ser chamado a decidir se essa anistia é constitucional ou não. E pelo
que temos visto, a tendência é de que a Corte decida contra uma medida dessa
natureza."
O
professor Pierpaolo Bottini diz que um dos temas a serem questionados junto ao
STF é se é possível conceder anistia a pessoas que cometerem crimes contra um
ou mais dos Poderes da República.
"A
legislação prevê anistia a crimes hediondos, e o STF já se posicionou, no caso
do deputado Daniel Silveira, que medidas como essa não podem ser adotadas
quando o crime é cometido contra um dos Poderes da República", afirma o
professor.
"Se
a anistia for aprovada, o STF deverá ser provocado a se posicionar sobre se
crimes contra os Poderes da República podem ou não ser anistiados. Creio que o
STF se posicionaria contra."
Luciana
Santana avalia de forma semelhante. "Não podemos desconsiderar que temos o
Judiciário neste processo. Com certeza, qualquer projeto de anistia pode vir a
ser judicializado e ser inviabilizado pelo Judiciário", afirma Santana.
"Considerando
que já há várias condenações sobre isso dadas pelo STF, as chances de
judicialização desse tema são muito altas."
(Fonte:
BBC)
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