O
julgamento é aguardado à esquerda e à direita dada a relevância política do
ex-presidente. Mesmo fora do poder, ele é considerado por políticos e
especialistas como a maior liderança da direita no Brasil, neste momento.
Mas
para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Carlos Fico, mais importante que a possibilidade de Bolsonaro virar réu por
tentativa de golpe é a chance de que isso aconteça a oficiais generais das
Forças Armadas.
"Eu
acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de
réu dos generais Braga Netto e (Augusto) Heleno.
Mais até que do que em relação ao ex-presidente Bolsonaro", defende Fico
em entrevista à BBC News Brasil.
No
julgamento desta semana, o STF vai avaliar a denúncia contra o núcleo 1 da
acusação feita pela PGR.
Quem
são os acusados do núcleo 1 por tentativa de golpe?
Carlos
Fico é professor titular de História e um dos principais pesquisadores do
Brasil sobre o papel dos militares na história política do país.
Ele
é autor de livros como "O golpe de 1964: momentos decisivos" e
atualmente está escrevendo outro sobre todos os golpes ou tentativas de golpe
orquestradas por militares no Brasil.
Ele
sustenta que o julgamento desta semana pode gerar situações inéditas na
história do Brasil.
Segundo
ele, nunca um ex-presidente e oficiais generais foram processados e julgados
por tentativas de golpe de Estado.
Crítico
do que ele chama de "tradição intervencionista" das Forças Armadas,
ele diz que a ida de oficiais generais como Braga Netto ou Augusto Heleno para
o banco dos réus por tentativa de golpe terá um forte impacto.
"Levar
esses generais, embora eles estejam na reserva, à condição de réus acusados de
planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico",
afirma o professor.
Na
entrevista à BBC News Brasil, Fico diz, no entanto, que não acredita que o
julgamento poderá acabar com a crença entre militares de que eles podem atuar
como "poder moderador" da República. Isso só começaria a acontecer se
o Congresso Nacional alterasse a redação do artigo nº 142 da
Constituição Federal.
O
artigo descreve as atribuições das Forças Armadas e é frequentemente citado por
militantes de direita que defendiam uma intervenção militar após a vitória
de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022. Para Fico, é preciso
alterar a redação do artigo para acabar com as interpretações de que os
militares poderiam atuar como um poder moderador.
Fico
também diz não acreditar que o julgamento vai reduzir o eleitorado de
Bolsonaro, que o ex-presidente tenta se posicionar como um "mártir"
político e defende que o Congresso Nacional não aprove anistia aos envolvidos
nos atos de 8 de janeiro de 2023.
"A
tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito
prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os
militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir
em situações de crise", diz o professor.
Confira
os principais trechos da entrevista concedida por Carlos Fico à BBC News
Brasil:
BBC
News Brasil - O Brasil poderá ter um ex-presidente e oficiais das Forças
Armadas na condição de réus por tentativa de golpe de Estado. Qual é a
relevância histórica disso?
Carlos
Fico - A
relevância é o ineditismo. É claro que já houve no passado situações
assemelhadas. A mais parecida envolveu o ex-presidente Hermes da Fonseca, que
governou o Brasil de 1910 a 1914 e se envolveu numa tentativa de golpe em 1922.
Também tem um filho envolvido, o Euclides Hermes da Fonseca, que era o
comandante do Forte de Copacabana. Foi o famoso episódio dos "18 do
Forte". Esse episódio foi uma tentativa de golpe militar contra o
presidente Epitácio Pessoa e, tudo indica, à frente do qual estava o ex-presidente
Hermes da Fonseca, que foi preso e foi submetido a um inquérito, mas acabou
morrendo antes que o inquérito se concluísse. É o único caso assemelhado e
muito distante na história de modo que o envolvimento de um ex-presidente numa
tentativa de golpe e ele ser submetido a julgamento é algo inédito. Mas tem
algo ainda mais inédito. Vários militares, no passado, já foram submetidos à
prisão, no entanto, isso sempre no contexto de crises institucionais muito
graves e, por ordem do Executivo. Então, temos um outro ineditismo porque o
julgamento desta tentativa de golpe de 2022 está sendo conduzida em período de
normalidade democrática e pelo Poder Judiciário, com todas as garantias
processuais.
BBC
News Brasil - O que mudou na estrutura social e política do Brasil que permite
que isso esteja acontecendo?
Fico
- O
que mudou foi o empoderamento que a Constituição de 1988 deu ao STF e à
Procuradoria-Geral da República. Antes de 1988, esses órgãos não tinham o papel
privilegiado que têm hoje. Isso tem um impacto muito grande porque as
investigações estão se dando num contexto de normalidade democrática e com
instituições fortes [...] É esse fortalecimento institucional que garante a
normalidade democrática do momento e o possível julgamento dessas pessoas.
BBC
News Brasil - Há muitos militantes de direita que concordam que isso só está
ocorrendo em razão do empoderamento do STF. Segundo eles, haveria uma espécie
de "superempoderamento" do STF. Na sua avaliação, o fato de Jair
Bolsonaro e militares poderem virar réus é positivo ou negativo para a
sociedade brasileira?
Fico
- É
altamente positivo que o STF tenha a última palavra sempre, ainda que erre. Do
contrário, quem vai decidir? As Forças Armadas? A população nas ruas? Para o
perfeito funcionamento da democracia é necessário que o Poder Judiciário tenha
a última palavra [...] Se as coisas estão sendo conduzidas de acordo com as
regras emanadas pela Constituição, não vejo como isso pode ser considerado
negativo. Até porque nós temos uma tradição muito negativa de intervencionismo
militar na qual as Forças Armadas se consideravam o poder moderador e teriam a
palavra final, como se fosse um equivalente ao poder poder moderador do
Império.
BBC
News Brasil - Que impacto, se é que algum, esse julgamento vai ter sobre essa
tradição?
Fico
- Olha…
inclusive eu acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à
condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto Heleno)...mais até que do
ex-presidente Bolsonaro. Do meu ponto de vista, a qualificação desses dois
generais tem mais importância. Levar esses generais, embora estejam na reserva,
à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito
significado político e simbólico. Me parece que as Forças Armadas, como se diz
na economia, já precificaram uma eventual condenação desses dois generais
usando estratégia de distinguir a instituição dos indivíduos que a compõem.
BBC
News Brasil - Que sentido simbólico é esse?
Fico
- O
sentido de que nenhum militar golpista na história do Brasil, e foram muitos,
nenhum jamais foi punido. Vou lançar um livro em maio no qual eu demonstro isso
estudando todas as tentativas de Golpe desde a proclamação da República até o
último, em 2022. Alguns até foram alvo de inquéritos ou processos
disciplinares, mas logo o Congresso Nacional aprovou uma anistia [...] Isso vai
modificar a realidade da democracia brasileira, que tem essa fragilidade
estrutural da presença intervencionista dos militares? Eu acho que não. O que
realmente vai alterar esse quadro da tradição de intervencionismo militar no
Brasil são outras iniciativas, como a mudança da redação do artigo 142 na
Constituição Federal.
BBC
News Brasil - Por que, na sua avaliação, esse julgamento não vai mudar a
realidade da democracia brasileira?
Fico
- Em
relação às consequências desse julgamento, eu posso dizer duas coisas. Uma é
que, sim, esse julgamento terá um impacto simbólico, sobretudo no interior das
Forças Armadas, porque se trata de uma coisa inédita. Mas não me parece que o
intervencionismo militar vá se resolver com esse julgamento. Eu acho que a
tradição de intervencionismo militar somente vai terminar, numa perspectiva
otimista, se a sociedade brasileira, por meio do Congresso Nacional, alterar a
redação do artigo 142, mas me parece que isto não está no horizonte. Creio que
isso seria fundamental para dizer claramente para as Forças Armadas que elas
não são garantidoras dos poderes constitucionais e muito menos poder moderador.
BBC
News Brasil - O argumento de Bolsonaro, de que não houve tentativa de golpe por
não ter havido uso da força faz sentido?
Fico
- Houve
uma tentativa de golpe que fracassou supostamente porque a maioria do
Alto-Comando do Exército não aderiu — algo bastante preocupante porque, nesse
caso, teria havido o apoio de alguns integrantes e os demais não denunciaram a
existência do plano [...] O crime em questão é a tentativa. A tentativa de
golpe teria sido bem-sucedida se tivesse havido adesão dos militares e emprego,
ainda que persuasivo, da força.
BBC
News Brasil - Há um movimento liderado por militantes de direita defendendo a
anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023. Também há um
entendimento de que ela poderia beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Qual
sua opinião sobre essa tentativa de aprovar uma anistia?
Fico
- Em
todos os episódios de tentativas de golpe de Estado, sempre houve anistia aos
militares. Neste caso mais recente, temos a peculiaridade do envolvimento de
civis nos episódios de 8 de janeiro de 2023. Provavelmente, surgirá uma
pressão, também, em relação à anistia desse núcleo conspirador que vai a
julgamento agora. Isso sempre aconteceu. Minha surpresa seria se não houvesse
nada nesse sentido [...] Eu espero que não haja a anistia caso haja condenação
das pessoas envolvidas, seja no núcleo conspirador, seja em outras atividades
igualmente condenáveis.
BBC
News Brasil - Por que o senhor espera que não haja anistia?
Fico
- Eu
espero que não haja porque a tradição brasileira de leniência com militares
golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse
entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da
República com direito de intervir em situações de crise. Vimos os episódios que
marcaram o governo Bolsonaro. A todo momento, os generais Heleno e (o
ex-vice-presidente Hamilton) Mourão falavam do artigo nº 142 como se ele desse
às Forças Armadas o direito de intervir em situações de crise. O fato de ter
havido anistia aos militares golpistas na história republicana foi sempre muito
negativa porque deu a impressão de que a sociedade não se incomodava.
BBC
News Brasil - Os atuais defensores da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro
têm feito uma comparação com a campanha da anistia que resultou na lei da
anistia de 1979. É possível comparar uma coisa à outra?
Fico
- As
pessoas que fazem essa comparação não conhecem a história do Brasil [...] Há
pessoas que se referem à ditadura militar e dizem: "Ah! Mas não vão ver os
dois lados?". Mas que dois lados? Na esquerda, que se posicionou contra a
ditadura militar, ou as pessoas foram mortas ou os que não foram mortos foram
presos, julgados e condenados por uma justiça militar muito dura. Foram
milhares de condenações de opositores do regime pela justiça militar. A
campanha da anistia visava dar anistia a pessoas que foram condenadas de forma
muito brutal e aos que conseguiram sobreviver à tortura [...] Não há
equivalência possível entre a atitude de oposição a um regime ditatorial que
matava e torturava e o momento atual.
BBC
News Brasil - Qual o risco de aumento da polarização política no Brasil em
função deste julgamento envolvendo Bolsonaro e militares?
Fico
- Não
gosto da palavra polarização porque dá a impressão de que a gente está vivendo
uma coisa inédita do ponto de vista político como essa contraposição entre
setores. Isso sempre acontece [...] É claro que o julgamento do ex-presidente
Bolsonaro e do restante do núcleo conspiratório vai ser também utilizado por
todos os setores políticos como arma de proselitismo político.
BBC
News Brasil - Que efeitos esse julgamento terá para o tamanho do bolsonarismo?
Fico
- Não
faço ideia. O que a gente tem percebido em relação a essas lideranças de
extrema direita, não só aqui no Brasil, mas em outras partes do mundo, é que
mesmo quando elas estão envolvidas em situações criminosas, ainda assim, o seu
eleitorado se mantém fiel [...] Ele (Bolsonaro) não me parece ter perdido, até
o presente momento, o seu eleitorado mais fiel. Não sei se uma eventual
condenação terá impacto do ponto de vista da fidelidade do seu eleitorado.
BBC
News Brasil - Na sua avaliação, qual a probabilidade de Bolsonaro se
transformar numa espécie de mártir político a partir desse julgamento?
Fico
- Tornar-se
mártir é tudo o que o ex-presidente Jair Bolsonaro está tentando fazer. Ele
tenta se colocar como vítima, o que é uma estratégia bastante comum de
lideranças políticas que são pegas pela Justiça. Agora, essa estratégia vai
emplacar? Realmente, eu não sei. Provavelmente, entre o eleitorado mais fiel
vai emplacar [...] Agora, para a sociedade como um todo, eu não sei. Muito
provavelmente não vai colar porque ao longo do julgamento, sobretudo se esse
julgamento for transmitido pela TV Justiça, vão ficar evidentes essas provas
que foram colhidas pela Polícia Federal e elas são muito eloquentes [...]
Muitas vezes, as coisas dependem não apenas das tecnicalidades da Justiça, mas
da maneira como a justiça é feita.
(Fonte:
BBC)
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