Luís
Carlos Prestes (1898-1990), militar e político
comunista, soube como ninguém ziguezaguear no espectro ideológico do
Brasil, sem nunca deixar de ser um homem de esquerda.
"Ele
deixou um legado de atitude, assim eu vejo como biógrafo", diz à BBC News
Brasil o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal
Fluminense (UFF) e autor do livro Luís Carlos
Prestes - Um Revolucionário Entre Dois Mundos.
Contudo,
a proximidade e afinidade de Prestes ao regime soviético faz sombra ao seu
legado.
Não
há consenso entre historiadores, mas o socialismo russo, por seu autoritarismo,
deixou de 8 a 61 milhões de vítimas, sobretudo sob o comando de Josef Stalin
(1878-1953), que chefiou a União Soviética de 1922 até sua morte.
"A
proximidade de Prestes com a União Soviética fica muito intrínseca a partir dos
anos 1930, quando ele passou quatro anos lá e voltou ao Brasil na perspectiva
de desenvolver uma insurreição armada no país. Ele absorveu muito da estratégia
stalinista de revolução armada", explica à BBC News Brasil o historiador
Victor Missiato, pesquisador do Instituto Mackenzie e autor de tese de
doutorado sobre o comunismo no
Brasil e no Chile.
E
era uma ideia que passava longe da democracia. "Evidentemente que essa
luta armada envolvia políticas de repressão e perseguição através da lógica
stalinista", diz o historiador. "O stalinismo também foi um movimento
totalitário."
"Como
ser humano sua trajetória revela uma pessoa sem ambições de natureza econômica,
social e política", afirma à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique
Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Teria
sido ministro, parlamentar ou governador de destaque, sem nenhuma dificuldade.
Não foi. Permaneceu fiel aos ideários que abraçou em cada momento da vida
nacional. Desta sempre participou com clareza e publicidade de sua opinião e da
direção política que esposava."
"A
história de Prestes se confunde em grande parte com a história política e
social do Brasil ao longo do século 20. Ele é um personagem extremamente
complexo e traz uma certa coerência. Por isso é visto como alguém que não se
curvou aos desafios de seu tempo", comenta à BBC News Brasil o historiador Bruno
Gaudêncio, professor na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e autor de tese
de doutorado sobre Luís Carlos Prestes.
Martinez
ainda destaca a personalidade política de Prestes de "férrea disciplina no
combate ideológico e na defesa de suas ideias".
"Herança
do pensamento positivista, sob o qual foi formado em casa, e pela educação
militar", comenta ele, lembrando que o pai de Prestes era adepto do
positivismo.
"Esta
herança se compôs, fácil e rapidamente, com a rígida disciplina do movimento
comunista da década de 1930, no enfrentamento do nazifascismo, na Europa e fora
dela. E assim continuou."
"Como
mito político, Prestes é um dos casos mais complexos e emblemáticos na história
do Brasil", prossegue o historiador.
"A
sua mitologia foi construída e alimentada em tempo real. A longevidade, a
perseverança e a contundência de suas opiniões e posições consagraram 'o velho'
como um militante incansável pela justiça social e a soberania nacional."
Coluna
Prestes
Gaúcho
de Porto Alegre, Prestes ganhou fama ao liderar a Coluna Prestes, também
chamada de Coluna Miguel Costa-Prestes. Era um movimento que pretendia
"corrigir" a política brasileira.
Ele
tinha sólida formação militar e fazia parte do Exército desde 1916.
Naqueles
anos 1920, quartéis em todo o país estavam em polvorosa. Os militares
reclamavam de suas próprias condições de trabalho e demonstravam
descontentamento com os rumos políticos. Nesse meio surgiu o chamado movimento
tenentista, com revoltas famosas como o Levante do Forte de Copacabana, em
1922, e a Revoluta Paulista, de 1924.
Em
28 de outubro de 1924, um grupo de militares se organizou para uma nova
mobilização. Sob a liderança do capitão Luís Carlos Prestes, então comandante
do 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, no noroeste do Rio Grande do Sul,
os revoltosos marcharam até o oeste paranaense, angariando mais forças entre
batalhões e cavalarias pelo caminho.
"[Prestes]
Era um dos revoltados contra aquela república liberal, excludente", pontua
Reis. Eles eram contra o governo federal de Artur Bernardes (1875-1955) e o
modelo conhecido como "café com leite", em que havia alternância no
poder do país entre oligarcas paulistas e mineiros. Lutavam ainda pelo voto
secreto e clamavam por ensino público universal, além de outras pautas como o
fim da miséria e da injustiça social.
Nos
dois anos do movimento, a coluna percorreu cerca de 25 mil quilômetros em todo
o país, chegando a reunir 1,5 mil militantes. O movimento acabou por desgaste
dos próprios integrantes.
"Prestes
e seus companheiros foram perseguidos pela repressão movida sob o Estado de
Sítio do governo do presidente Artur Bernardes", diz Martinez. Dali saíram
figuras influentes na política brasileira.
Prestes
se tornava uma liderança nacional. A essa altura já tinha sido apelidado de
"cavaleiro da esperança", epíteto eternizado em biografia romanceada
que Jorge Amado (1912-2001) escreveu sobre ele e publicou em 1942.
O
partidão
Em
1928, Prestes estava na Bolívia, exilado depois do fim da coluna. Lá conheceu o
marxismo e se tornou um estudioso das ideologias de esquerda, aproximando-se de
militantes sul-americanos e dirigentes da organização Internacional Comunista
(IC).
Depois
de ser convidado e recusar participar da Revolução de 1930 ao lado de Getúlio
Vargas (1882-1954), mudou-se para a União Soviética. Lá, aproximou-se dos
líderes do regime socialista, atuou como engenheiro e estudou os caminhos
possíveis para a esquerda.
Em
1934, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) o aceitou como filiado. No mesmo
ano, Prestes retornou como clandestino ao Brasil. Já vivia com a militante
comunista alemã Olga Benário (1908-1942), também integrante da IC.
Prestes
seria um dos líderes da chamada Intentona Comunista, também conhecida como
Revolta Comunista de 1935, Levante Comunista ou Revolta Vermelha. Foi uma
tentativa fracassada de golpe contra o governo de Vargas, em novembro de 1935.
O movimento, encabeçado por militares em nome da Aliança Nacional Libertadora,
tinha apoio do PCB.
"A
intentona fracassou, logo em seguida veio o Estado Novo. Mas durante algumas
décadas o Prestes iria tentar equilibrar a ideia de uma via mais reformista,
por parte do PCB. Só que até a denúncia dos crimes cometidos por Stalin, em
1956, ele manteve a defesa da linha stalinista, inclusive com manifestos
escritos ou autorizados por ele, divulgados pelo partido, preservando a
perspectiva de luta armada", lembra Missiato.
Em
março de 1936, Prestes foi preso — amargaria o cárcere por nove anos. Sua
companheira Olga estava grávida e também foi presa. Judia, ela foi deportada
por Vargas para a Alemanha — morreria em câmara de gás durante a 2ª Guerra.
"No
período da cadeia, Prestes reviu suas posições e passou a defender uma
perspectiva de frente ampla, inclusive incluindo o próprio Getúlio Vargas, que
havia sido o homem que deportou sua mulher", comenta Reis.
"Isso provocou grande escândalo na época entre os seus partidários, mas ele raciocinava que, politicamente, era preciso construir uma frente nacional contra o nazifascismo."
Política
Prestes
acabou anistiado com o fim do Estado Novo. E entrou para a política
convencional. Foi membro da Constituinte de 1946, comandando a chamada
"bancada comunista", que tinha 14 nomes em suas fileiras. Elegeu-se
deputado federal e senador — renunciou ao primeiro posto e ocupou a cadeira do
Senado a partir de 1946.
Mas
o breve período de legalidade de seu partido, o PCB, acabaria em 1947. No ano
seguinte, por conta disso, seu mandato foi cassado e novamente ele voltou à
clandestinidade.
Ao
longo dos anos 1950 ele e outros militantes de esquerda debruçaram-se sobre um
projeto do que eles acreditavam ser um desenvolvimento possível do país.
"Quando houve a Declaração de Março de 1958 [do PCB], ele foi um dos
signatários", afirma Missiato.
Nessa
época, conforme explica o biógrafo Reis, Prestes era uma voz que liderava uma
nova perspectiva de mudança: "mais para a transição pacífica para o
socialismo", explica.
Com
o golpe de 1964, o primeiro Ato Institucional cassou os direitos de Prestes por
dez anos. Novamente perseguido, o político exilou-se na União Soviética.
Durante o período da ditadura, segundo conta Reis, ele "buscou construir
uma terceira via entre os partidários da luta armada e os partidários da
conciliação com a ditadura".
"Sem
sucesso, foi perdendo a liderança inquestionável que tinha no partido",
acrescenta o historiador. Voltou ao Brasil somente com a anistia, em 1979. No
ano seguinte publicou uma carta rompendo com o PCB.
Ao
longo dos anos 1980, foi uma voz um tanto dissonante no movimento da
redemocratização. Chegou a ser muito assediado por militantes de esquerda para
que liderasse um novo grupo partidário, mas manteve a sua postura de que essa
luta deveria ser oriunda da força popular.
"Na
campanha pelas Diretas, ele sempre dizia: 'vocês estão resumindo a luta a
escolher o presidente, mas a gente quer escolher o presidente para fazer o quê,
exatamente?'". "Ele defendia a necessidade de as esquerdas terem um
programa de mudança para o país", conta Reis.
Nos
últimos anos, tornou-se apoiador, de forma crítica, das candidaturas de Leonel
Brizola (1922-2004).
"Mesmo
que ziguezaguendo, ele mantinha uma posição crítica. Acho importante considerar
como seu legado essa ideia de dar ao país uma sociedade justa socialmente,
igualitária, aqueles padrões que eram próprios do comunismo tradicional",
comenta Reis.
Ziguezagues
Para
os especialistas, Prestes conseguiu se manter relevante dentro do espectro
ideológico da esquerda brasileira porque soube ler o seu tempo e adaptar seu
discurso e suas crenças a cada momento, sem, contudo, perder o cerne condutor
daquilo que acreditava ser uma sociedade ideal.
"Prestes
mudou. Em pelo menos três momentos as mudanças foram decisivas", argumenta
Martinez.
"Primeiro,
quando cedeu aos apelos do liberalismo democrático, que aceitava a insurreição
revolucionária como a saída contra a tirania e os maus governos. Rompeu com a
ordem institucional da caserna e constitucional. Engajou-se nas rebeliões
militares dos anos 1920, liderando a coluna que percorreu o território
brasileiro pregando a moralização da política nacional e a reforma
eleitoral."
O
segundo momento, explica o historiador, foi quando ele abandonou o liberalismo
político e "vinculou-se ao movimento comunista internacional, na
conjuntura da revolução de 1930". "Recusou-se a ser o líder militar
do movimento", pontua, lembrando que este foi o período mais longo de sua
trajetória política.
"Manteve-se
como dirigente comunista por quase meio século. Nesta condição enfrentou o
Estado Novo e a ditadura militar. Viveu na clandestinidade, quase uma década na
prisão, consagrou-se, depois, como liderança civil, na eleição para o Senado,
em 1946, atuou na Assembleia Constituinte e amargou o exílio após 1964",
recapitula o historiador.
Por
fim, o terceiro ato prestista foi quando rompeu com o PCB, no início dos anos
1980. "Este é o Prestes mais próximo de nossa época", diz Martinez.
"Adotou uma crítica frontal ao papel conservador, de submissão
internacional e de violência sistemática contra a população, tão tristemente
desempenhado pela elite econômica do Brasil."
Missiato
concorda que Prestes foi "se transformando" com o passar do tempo.
"Ele começou como tenentista, depois, assim como Vargas, tinha um projeto
de modernização para o Brasil. Quando não aderiu ao projeto varguista da
Revolução de 1930, já estava ligado às ideias comunistas", contextualiza.
"O
que eu vejo é que, apesar de um alinhamento com a base do comunismo brasileiro,
da estratégica comunista brasileira do final da década de 1920 até 1980, o
Prestes moldou seu projeto revolucionário de acordo com diferentes projetos de
modernização da sociedade brasileira", analisa. "Por isso ele vigorou
durante muito tempo. Conseguiu dialogar com as transformações que
ocorriam."
Missiato
vê como negativo o fato de Prestes seguir se fiando em uma "perspectiva
revolucionária em nome de uma ideologia, de um projeto de poder que fracassou
ao longo do século 20". "Portanto, seguidores de um prestismo estão
dialogando com um impossível, um improvável e até com uma ausência da
realidade", comenta.
Mas
ele elogia sua capacidade de adaptação estratégica política. "Ensinou
muito à esquerda como atuar em diferentes momentos com suas capacidades, se
manter presente, pressionar e colocar parte de suas pautas em jogo",
enaltece.
"Ele
não abandonou a ideia da luta armada e da via revolucionária como instrumento
de luta política. Por isso o PCB perdeu cada vez mais energia no momento da
redemocratização", analisa.
"Apesar
de Prestes ter se tornado um político da via institucional, ele nunca deixou de
defender a luta armada", completa Missiato.
O
biógrafo Reis acredita que o fato de Prestes ter sido o homem-forte do PCB ao
longo de tantas décadas contribuiu muito para que ele tenha sido
"relevante na história do Brasil". "O partido era uma
instituição que, apesar de muito perseguida e de ter existido quase sempre na
clandestinidade, tentou elaborar alternativas junto a outros grupos ao
desenvolvimento capitalista que o Brasil ia assumindo", contextualiza.
"E o Prestes firmou-se como o grande líder do partido que era a maior
organização de esquerda [do Brasil]".
"Foi
um homem do seu tempo. Defendeu instransigentemente suas ideias até o fim, que
as esquerdas devessem superar a conciliação e se comprometerem com um programa
de mudanças", afirma Reis. "Ele sempre foi um homem fiel a suas
convicções, mesmo tendo mudado as convicções ao longo do tempo. Cada vez que
assumia uma posição ele assumia todas as consequências. Foi um exemplo de homem
decidido, muito corajoso."
O
historiador Gaudêncio acredita que o grande legado de Prestes está no "seu
modo de liderar". "Foi mais do que uma pessoa, foi uma ideia",
comenta.
"Até
hoje, 35 anos depois da sua morte, ele é muito destacado. Porque sua vida se
confundiu muito com a história política brasileira. Embora ele não tenha sido
um protagonista, suas ideias sempre estiveram em evidência", conclui.
(Fonte:
BBC)
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