Quase
dez anos após o início de uma tendência que colocou o Brasil entre as nações
com a maior queda vacinal do mundo, o país ainda não conseguiu recuperar
os índices que eram exemplo de cobertura de imunização.
O declínio acompanhou as mudanças políticas, econômicas e sociais que ocorreram em território nacional a partir de 2015 e os resquícios desse período ainda causam impacto na tentativa de superar o cenário.
Na lista de elementos que influenciaram as quedas estão a fragilização
do Sistema Único de Saúde (SUS), com subfinanciamento e desmonte da atenção
básica, a redução de equipes do Programa Saúde da Família (PSF), o avanço de
movimentos negacionistas, antivacina e anticiência e a perda da cultura de
prevenção.
Em conversa com o podcast Repórter SUS, o
médico Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações,
afirma que, contraditoriamente, o movimento foi influenciado justamente pelo
sucesso das vacinas. Frente ao controle das doenças, parte da população perde a
medida do risco e até mesmo profissionais da saúde têm menos ênfase nas
recomendações sobre imunização.
“O discurso antivacinista, com pessoas colocando medo nas outras dizendo
que vacinas não são seguras, só foi possível no cenário de sucesso das vacinas.
Por mais paradoxal que possa ser, esse discurso jamais pegaria há algumas
décadas, quando convivíamos com crianças paralisadas, com tuberculose, morrendo
de meningite, coqueluche ou sarampo”, lembra.
Atualmente, o
sarampo é umas das grandes preocupações do Brasil. Neste ano, foram 14 confirmações.
Segundo o Ministério da Saúde, todas envolvem pessoas não vacinadas que fizeram
viagens para a Bolívia. O país vizinho tem fronteira mais extensa com o Brasil,
que abrange Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Também há
registros na Argentina (34) e no Peru (4).
A região das Américas acumula mais de 7 mil casos em 2025, um aumento de
29 vezes em relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados da
Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). A maioria dos registros foi
identificada no Canadá (3.170), no México (2.597) e nos Estados Unidos (1.227).
“As pessoas vacinadas funcionam como uma barreira na transmissão da
doença na comunidade”, explica Kfouri. “Precisamos de altas coberturas vacinais
não só para proteger o indivíduo, mas toda a comunidade dessa situação de
transmissão de doenças pelo número de pessoas suscetíveis. O sarampo, devido à
altíssima transmissibilidade, é um dos primeiros a dar as caras num cenário
onde as pessoas não estão vacinadas”, diz.
Dados de 2024 do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da
Organização Mundial da Saúde (OMS) colocam o Brasil de volta à lista dos países
com mais crianças não vacinadas, ocupando a 17ª posição, com 229 mil pequenos
sem vacina. Kfouri explica que os números são absolutos e não proporcionais. Ou
seja, países com população maior tendem a resultados mais expressivos.
Ainda assim, o especialista ressalta que qualquer número de crianças não
protegidas por vacinas é alarmante. “Mais do que isso, o indicador usado é a
vacina tríplice, aplicada aos dois meses de idade. Quando você tem uma criança
de dois meses que não tomou vacina, mais do que significar que essas crianças
estão desprotegidas, significa que elas não tiveram acesso à porta de entrada
do sistema de saúde”, pontua.
A média de cobertura vacinal no Brasil, que estava em 70% em 2021/2022,
subiu para 80-85% nos últimos três anos. O ganho é significativo, mas ainda
distante do ideal de 95% para as principais vacinas. Além de dar conta do
prejuízo do desmonte e do negacionismo dos últimos anos, o Brasil também
precisa alcançar as populações historicamente deixadas de lado devido às
desigualdades estruturais do país.
“Precisamos melhorar o acesso de muitas famílias que não têm condições
de levar seus filhos às unidades de saúde. Felizmente, o número de vacinas hoje
incorporadas no calendário é enorme. Nós temos mais de 17 vacinas para
crianças, o que requer todo mês uma visita no serviço de saúde. E quem é que
pode faltar todo mês no trabalho para levar seu filho à unidade de saúde?”,
questiona Kfouri.
A solução está em uma ação coordenada, que amplie horários, mantenha e aumente a vacinação nas
escolas e faça busca ativa para atender ao público que continua sem acesso. Isso
pressupõe atenção primária forte e atenção total aos princípios básicos do SUS:
universalidade, integralidade e equidade.
“Nenhuma criança brasileira deve ficar para trás. Certamente essas
crianças não estão nos grandes centros. Estamos falando de populações
ribeirinhas, quilombolas, áreas de difícil acesso, áreas de fronteira,
populações vulneráveis de rua. São essas as crianças que nós estamos perdendo,
e nós precisamos buscá-las, resgatá-las, inseri-las no sistema de saúde, porque
elas não podem ficar à margem de um cuidado que toda criança merece”, conclui o
especialista.
(Brasil de Fato)
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