Cuba, que já foi na prática um
"Estado ateu", baseado na "concepção materialista científica do
Universo", agora vê o crescimento de evangélicos, em meio à
maior crise econômica do país dos últimos 30 anos.
Embora não existam dados
oficiais sobre o número de evangélicos no país, o consenso de especialistas
aponta no mesmo sentido do que agora se vê nas ruas de Havana.
"Sem dúvida temos visto
um aumento [dos evangélicos em Cuba] nos últimos cinco anos", afirma o
cubano Pedro Alvarez Sifontes, mestre em Estudos Sociais e Filosóficos da
Religião pela Universidade de Havana e pesquisador assistente no Centro de
Pesquisa Psicológica e Sociológica.
Foi a crise de saúde pública
compartilhada com o resto do mundo e o agravamento dos problemas econômicos
particulares da ilha que fomentaram a adesão de milhares de cubanos, sobretudo
jovens, às igrejas evangélicas, apontam entrevistados pela BBC News Brasil.
"Depois da pandemia, a crise levou
muito mais pessoas a se aproximarem da fé e das igrejas", diz o teólogo
Eliecer Portal, evangélico batista que trabalha como guia turístico no interior
do país.
"Momentos de crise chamam
as pessoas à fé, principalmente quando sentem que suas vidas estão em
jogo."
Estado 'ateu' com herança
católica
Cuba não é uma sociedade
estranha à religião.
Colonizada por espanhóis, o país tem uma
vasta herança católica, com milhares de igrejas e praças com nomes de santo
espalhadas pelas cidades.
Outras religiões de matriz
africana, levadas pelos escravizados, também fizeram parte da vida cubana
durante séculos.
Porém, após a revolução socialista
de 1959, liderada por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, o
país caminhou em direção à interpretação soviética da doutrina marxista que
distanciava o Estado — e, portanto, a população — da religião.
Assim, a Constituição
promulgada em 1976 previa que Cuba seria um Estado laico, sem religião
predominante e oficial, e baseado na "concepção materialista científica do
Universo".
"A Constituição proclama
a liberdade religiosa e o direito de praticar qualquer religião que se queira.
Mas, depois disso, havia um artigo que dizia que o Estado era obrigado a propor
e realizar todo o trabalho educacional baseado na concepção científica
marxista-leninista", diz Pedro Sifontes.
Segundo ele, além do apelo
constitucional, foram criadas normas ateístas como parte intrínseca da educação
e da cultura cubanas.
"Por exemplo, no ensino
superior, foi criada uma disciplina chamada Comunismo Científico. Essa
disciplina recriou tudo o que era ateísmo científico e promulgou um positivismo
neomarxista, o que não era a realidade da teoria de [Karl] Marx e [Friedrich] Engels", diz, em referência
aos ideólogos do comunismo.
À época, também foram criadas
regulamentações que limitavam o acesso a crenças religiosas e a diferentes
facetas da vida cotidiana.
"Por exemplo, pessoas
religiosas não podiam cursar certas áreas, como jornalismo; não podiam acessar
cargos governamentais diretamente. Se você declarasse sua religião ou filiação
religiosa, não teria acesso a cargos de liderança no governo", diz
Sifontes.
"Todos eram questionados
sobre sua ascendência religiosa, para tudo. Para ser membro do Partido
Comunista da Juventude, você também tinha que declarar seu status ateu, sua
posição ateia. Se não, você não era admitido. E isso, claro, para nós, cria
toda uma concepção de um Estado ateu."
Apesar disso, a religiosidade
continuou presente no cotidiano dos cubanos, que professavam suas crenças em
pequenas igrejas ou residências.
"O povo cubano nunca
deixou de ser religioso. A Revolução, sabiamente, qualificou a santeria [uma
religião de matriz africana, praticada em Cuba] de folclore, o que a livrou de
preconceitos e perseguições", afirma Frei Betto, escritor e teólogo.
"Fidel me disse que a
Virgem do Cobre não é padroeira apenas dos católicos cubanos, mas de toda a
nação. Nenhum país do continente americano recebeu tantas visitas de papas
quanto Cuba — sendo quatro, considerando que Francisco esteve lá duas
vezes."
A aproximação do regime de
Castro com a Igreja Católica, a partir da queda da União Soviética,
abriu espaço para as instituições religiosas na "maior das Antilhas"
— fenômeno celebrado por alguns como uma aproximação do regime ao liberalismo e
criticado por outros como uma rendição de idealismo de Karl Marx à Igreja.
Segundo Betto, "o Estado
e o Partido comunista de Cuba eram oficialmente ateus até mudanças operadas na
década de 1990", embora o governo revolucionário cubano sempre tenha
convivido bem com todas as denominações religiosas — com exceção da Igreja Católica,
que, no início, se opôs ao regime comunista.
Após a Revolução, o governo
cubano chegou a expulsar padres e nacionalizar escolas e meios de comunicação
católicos. Em 1961, inclusive, Fidel Castro declarou a Igreja Católica como um
dos agentes contrarrevolucionários do país.
A tensa relação começou a
arrefecer a partir de meados da década de 1990, intensificada com a visita do
papa João Paulo 2º em janeiro de 1998, quando foi recebido com cerimônias
públicas.
Depois, as visitas do papa Francisco consolidaram
a aproximação entre a Igreja Católica e o governo cubano.
"Quando convenci Fidel do
equívoco de não dialogar com os bispos católicos e da importância de erradicar
o caráter ateu da Constituição e do estatuto do Partido Comunista, houve
desconfiança de ambos lados no início do diálogo", diz Frei Betto.
"Com a publicação do
livro Fidel e a religião, as relações melhoraram e, hoje, o Estado
cubano e Igreja Católica convivem com harmonia", avalia, referindo-se ao
livro de sua autoria para o qual conversou com Fidel Castro sobre religião por
23 horas.
Entretanto, segundo Pedro
Sifontes, ocasionalmente ainda há tensões com membros da Igreja Católica.
"Especialmente devido às
ações de alguns padres que se posicionam
dissidentes contra o governo cubano. Eles são uma pequena
minoria, mas altamente visíveis nas redes sociais", diz.
Há, também, críticas da Igreja
Católica ao governo.
"A Igreja em Cuba se
autoproclamou a 'consciência crítica da sociedade cubana' e expressa
periodicamente sua opinião por meio de cartas pastorais da Conferência dos
Bispos Católicos de Cuba — a maioria das quais, em maior ou menor grau,
bastante críticas ao governo cubano", afirma o pesquisador.
A Constituição mais recente do
país, aprovada em 2019, reconhece a garantia da liberdade religiosa, seja ela
qual for.
Fé frente à crise
As igrejas visitadas pela reportagem não fazem parte de qualquer congregação internacional, mas é possível encontrar outras instituições ligadas a congregações latinas ou americanas, responsáveis por introduzir o dogma pentecostal no país desde antes da Revolução.
Agora, segundo especialistas,
a ascensão dessas novas igrejas conta com a influência não só de religiosos
estrangeiros, principalmente dos EUA, mas, também, das redes sociais.
Pedro Sifontes destaca que,
desde 2020, houve um aumento relevante do número de fieis dos movimentos
pentecostais, neopentecostais e carismáticos.
São referências a divisões do mundo evangélico, muitas delas com
forte influência da produção acadêmica e que também estão sendo usadas em Cuba
— como o próprio termo neopentecostalismo.
No Brasil, os evangélicos
costumam ser classificados em três vertentes: protestantes históricos; os
pentecostais e os neopentecostais.
Os históricos, como
calvinistas, luteranos e anglicanos, estão mais ligados às práticas e crenças
da origem do protestantismo.
Já o pentecostalismo se
expande a partir do século 20 com ênfase no Espírito Santo, que podia se
revelar através de milagres e acontecimentos sobrenaturais. Um dos principais
símbolos dessa corrente é a Assembleia de Deus.
O termo neopentecostal, por
sua vez, caracteriza igrejas surgidas depois dos anos 1950 — embora alguns
autores falem mais no pós-1970.
Elas enfatizam a guerra
espiritual do bem contra o mal, tendem a ser mais flexíveis com a rigidez dos
costumes e professam a Teologia da Prosperidade , professada por
igrejas que associam a religiosidade a conquistas materiais e melhorias no
estilo de vida.
O teólogo Eliecer Portal, que
já frequentou igrejas neopentecostais, acrescenta que a busca pela prosperidade
em vida seduz muito dos jovens que procuram as novas igrejas cubanas.
O fenômeno é visível pelas
ruas. Nas ruas de Santa Clara, no interior de Cuba, ou da capital Havana, a
reportagem presenciou homens e mulheres reunidos nas praças para orar.
Há grandes igrejas em bairros
periféricos e outras menores, mais próximas ao centro, instaladas no térreo das
casas — que, mesmo quase caindo aos pedaços, mantêm uma estrutura digital para
os cultos, como TVs e sistemas de som novos e completos.
"Cuba é um país que não
sabe o que quer. Ainda somos perseguidos, mas hoje já é possível buscar a nossa
fé e a prosperidade. Afinal, o fim dos tempos está próximo e, por isso, muita
gente está nos buscando", afirma um pastor, que preferiu se identificar
apenas como Daniel, à reportagem.
Sua igreja, nomeada Cristo
Fuente de Vida, tem duas unidades, em Havana.
Em uma delas, no bairro de
Habana Vieja, Daniel promovia um café da manhã comunitário em uma manhã de domingo
de abril.
Dezenas de pessoas se
apertavam em pequenos bancos para, depois do culto, desfrutar de produtos que
apenas os supermercados privados comercializam na ilha.
"As pessoas nos procuram
para que possam ajudá-las a encontrar Cristo e salvar suas dores. Com Jesus no
coração, tenho certeza que se iniciará uma época de prosperidade e
fartura", diz o pastor.
Para Delana Corazza, cientista
social brasileira e pesquisadora do Observatório sobre os Neopentecostais na
Política, as igrejas neopentecostais cubanas bebem da mesma metodologia
encontrada em toda América Latina, muitas vezes contando com financiamento
estrangeiro para oferecer conforto, esperança e senso de pertencimento.
"As igrejas evangélicas
têm uma metodologia que atrai muito: um espaço de acolhimento, de música,
estética... Ali é uma válvula de escape. As pessoas se ajudam, há um caldo de
pertencimento, de comunidade, que outros espaços não dão", afirma ela, que
foi a Cuba estudar o fenômeno.
De acordo com Pedro Alvarez
Sifontes, não há qualquer censo religioso em Cuba dado que, para o governo, a
prática religiosa é um ato individual e, portanto, não caberia qualquer tipo de
investigação oficial do fenômeno.
"Este é também um legado
da política ateísta da Revolução até a década de 1990, quando foi feita uma
retificação precisa dos erros cometidos. A relação entre religião e Estado
melhorou consideravelmente, mas creio que ainda existem alguns preconceitos,
desconhecimento e ideias preconcebidas que ainda limitam essas relações",
diz.
"Outra coisa que
atrapalha é a capacidade bem cubana de pular de um grupo para outro, chegando a
praticar várias religiões ao mesmo tempo."
Disputa política
Ainda segundo o pesquisador,
em meio ao regime de partido único que Cuba adota, grupos evangélicos estão
demonstrando uma atuação política mais forte — e mais à direita.
Sifontes menciona como exemplo
uma declaração publicada em dezembro de 2023 por 15 lideranças evangélicas
sobre o conflito Hamas-Israel,
divergindo do posicionamento majoritário do governo cubano.
O texto condenou os ataques do
Hamas naquele ano, afirmando que
Israel tinha o direito de existir e "habitar a região que historicamente
foi seu território por mais de mil anos, até ser expulsa como nação pelo
Império Romano".
Sifontes afirma que lideranças
evangélicas têm se manifestado também sobre assuntos relativos ao gênero — mas
"todos tentam ser cuidadosos" nesses posicionamentos, completa.
Segundo Delana Corazza, as
igrejas neopentecostais combateram duramente o Código das Famílias de Cuba, que
legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e reconheceu uniões civis
homoafetivas. Ele foi aprovado em 2022.
Outros debates frequentes na
direita mundial também são discutidas agora nas igrejas em Cuba.
"Começou um discurso
do homeschooling em
Cuba, em uma tentativa de pensar a privatização da educação, dado que, segundo
eles, o Estado queria doutrinar a família. Há uma influência, não com a força
do Brasil, dado que o Estado é muito organizado, mas você vê essa influência do
conservadorismo", diz a pesquisadora.
Sifontes relata que em Cuba
também há hostilidade de evangélicos com religiões de matriz africana — embora
em "menor escala, mas com o mesmo potencial de ação" que no Brasil.
"Nas redes sociais, há
muitos exemplos de pastores atacando irresponsavelmente religiões cubanas de
origem africana, usando frases depreciativas e até mesmo pedindo que seus
direitos como expressão religiosa sejam negados", completa.
Para Frei Betto, o surgimento
dos neopentecostais como força política em Cuba é preocupante.
"A maioria [das igrejas
neopentecostais] se opõe à Revolução e se aproveita da atual crise do país para
fomentar 'valores' do capitalismo, como individualismo e meritocracia",
diz.
"Mas, o regime, hoje, se
aproxima do neoliberalismo por uma questão de sobrevivência da população, já
que o bloqueio imposto pelos EUA e a inclusão, pela Casa Branca, de Cuba na
lista dos países promotores de terrorismo, afetam profundamente a vida dos
cubanos", opina.
(Fonte: BBC)
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