O julgamento inicia analisando os casos do chamado "núcleo 1" ou "núcleo crucial" da trama golpista (acompanhe aqui ao vivo a cobertura da BBC News Brasil).
Esse grupo seria
composto pelos principais articuladores e decisores da tentativa de golpe de
Estado — que teria ocorrido após Jair Bolsonaro (PL) ser derrotado nas urnas
pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os acusados pela
PGR foram divididos em cinco núcleos, de acordo com as diferentes funções que
teriam na trama.
No STF, a ação
penal é relatada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Advogados dos
réus criticam a condução do caso por Moraes, a quem acusam de
parcialidade, e a validade da delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro.
A acusação está a
cargo da Procuradoria-Geral da República (PGR), que usou evidências colhidas
pela Polícia Federal e a delação de Cid para denunciar os réus.
Parte dessas
evidências foi encontrada pela PF na casa, nos celulares e nos arquivos
digitais dos próprios réus.
Muito deste
material foi produzido para ser secreto, valendo-se de codinomes, por exemplo.
Confira algumas
das anotações, imagens e documentos encontrados com os acusados que deverão ser
usados contra eles no julgamento.
O caderno de
Augusto Heleno
Um caderno com
logomarca da Caixa Econômica, encontrada na casa do general Augusto
Heleno, é uma das evidências apresentadas pela PGR contra o ex-ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Não há datas para
as anotações, mas elas trazem materiais que colocam em dúvida a confiabilidade
do sistema eleitoral brasileiro.
Uma das páginas
traz como título "Reu [reunião] Diretrizes Estratégicas".
Abaixo dele,
observações orientam:
- "Fazer um mapa com o
levantamento das áreas onde o Pres [presidente] possui aliados
confiáveis"
- "Buscar relacionar os
órgãos de imprensa que podem ser usados como meios de divulgação de ações
de governo. Utilizar com mais frequência a EBC"
- "Não fazer qualquer
referência a homossexuais, negros, maricas, etc. Evitar comentários
desairosos e generalistas sobre o povo brasileiro. Ao contrário, exaltar
as qualidades do povo: lutador, guerreiro, alegre, otimista."
- "Estabelecer um
discurso sobre urnas eletrônicas e votações. É válido continuar a criticar
a urna eletrônica."
Há também
anotações esparsas como a citação a um dossiê sobre "o mecanismo das
fraudes" e "dia 30 out" — uma referência à data do segundo turno
nas eleições de 2022.
Aparentemente, há
também uma menção a Nise Yamaguchi, médica que aconselhou Bolsonaro
durante a pandemia de covid-19 e que defendia o uso de cloroquina para tratar
da doença, tratamento que foi provado ineficaz para combater o
coronavírus.
Na anotação,
porém, a grafia é diferente: "Nice Iamaguchi".
Foram achados
também documentos digitalizados mencionando relatórios anteriores, referentes
às eleições de 2016 e 2020, apontando problemas e sugerindo melhorias no
sistema eleitoral.
Um deles, de 2016,
foi produzido pela PF e afirmou que não seria possível "auditar de forma
satisfatória" o processo entre a votação e a contabilização dos votos.
O Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) afirmou em 2021 que de fato recebeu e
analisou este relatório da PF, implementando algumas melhorias desde então, ao
mesmo tempo apontando a impossibilidade de executar algumas das sugestões.
Por exemplo, o TSE
afirmou que "do ponto de vista técnico e levando em conta aspectos
históricos e culturais brasileiros", o retorno do voto impresso
representaria "riscos ao processo eleitoral".
Segundo a denúncia
da PGR, Heleno seria uma das pessoas a dar "auxílio direto" a Jair
Bolsonaro no ataque às urnas e no planejamento golpista.
Caso consumado o
golpe, Heleno seria responsável por comandar um gabinete de gestão de crise
após a ruptura institucional.
Os advogados do
general dizem que as evidências do processo não conseguiram demonstrar a culpa
e nem "a hipótese do protagonismo" de Heleno na trama.
Sobre as anotações
encontradas na casa de Heleno, disseram que se tratava de registros pessoais
"nunca" compartilhados com ninguém.
Além disso, a
defesa critica a forma como a PF apresentou as páginas encontradas — acusando a
polícia de montar uma narrativa a partir das páginas: "(...) a PF
disponibiliza as referidas páginas da caderneta como numa suposta e inventiva
evolução de um raciocínio linear, quando na verdade estão afastadas umas das
outras e sobre situações e assuntos totalmente díspares! Sem conexão!"
'Bom dia
Presidente'
Outra pessoa que
forneceria "auxílio direto" a Bolsonaro seria Alexandre Ramagem, de
acordo com a denúncia da PF.
Hoje deputado
federal pelo PL-RJ, Ramagem foi diretor da Agência Brasileira de Inteligência
(Abin) durante o governo Bolsonaro.
Vinculado a um
email com seu nome, foi encontrado um arquivo de texto chamado "Bom dia
Presidente".
O texto começa
afirmando: "Reuni grupo técnico, de confiança, para trabalho de
aprofundamento da urna eletrônica."
O documento
menciona a ajuda de Angelo Martins Denicoli, major da reserva que também é réu
na ação penal sobre a tentativa de golpe — mas, no caso dele, está no chamado
núcleo 4 dos réus.
Esse núcleo é
acusado de espalhar notícias falsas e atacar autoridades.
O texto continua:
"Já há como concluir que será apontada vulnerabilidade na transparência
técnica e na governança exclusiva do tribunal."
Segundo os
investigadores, o documento "Bom dia Presidente" foi criado em março
de 2020 e modificado pela última vez em março de 2021.
A PF encontrou
também um arquivo chamado "'Presidente TSE informa.docx'', também
vinculado a um email de Ramagem, com argumentos contrários às urnas
eletrônicas.
O arquivo foi
criado e modificado ao longo de julho de 2021.
A defesa de
Ramagem minimizou esses e outros documentos, afirmando que a maioria se tratava
de escritos pessoais que não trouxeram novidades: "O conteúdo dos arquivos
de texto apresentados pela acusação são mera reprodução de pautas, críticas e
argumentos publicamente apresentados pelo então Presidente da República desde
os idos de 2015, um grande compilado deles."
'Jeca', 'Joca' e
'Juca'
Em um HD externo
do general da reserva Mário Fernandes foi encontrado um documento com
nome "Fox_2017.docx".
Segundo a PF,
Fernandes tinha o hábito de nomear arquivos sensíveis com a inicial ou as
siglas de seus carros.
O texto tinha o
título "Planejamento Punhal Verde Amarelo" e, segundo a PGR, trazia
planos para restringir a liberdade e até matar Alexandre de Moraes, o presidente
eleito Lula e o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin.
O plano seria
executado na operação chamada de "Copa 2022", com ações no Distrito
Federal e em São Paulo.
Segundo a PF, o
plano usava os codinomes "Jeca" para Lula; "Joca" para
Alckmin; e "Juca" para alguém cuja identidade não foi confirmada pela
PF e pela denúncia da PGR.
Entretanto,
segundo uma reportagem da Folha de S. Paulo, "Juca" se referiria ao
ex-ministro petista José Dirceu.
O plano previa o
uso de celulares descartáveis, veículos SUV, pistolas, fuzis, metralhadoras,
lança-granadas, entre outros.
Também era
estipulado o "tempo ideal de preparação", de no mínimo duas semanas;
e o "tempo ideal de ação", cerca de oito horas.
Além disso, era
prevista a participação de seis "kids pretos" — como são
conhecidos militares formados em forças especiais.
"O documento
ainda avaliava as chances de êxito em classe de 'médio tendendo a alto' e
admitia a possibilidade de danos colaterais muito altos, indicando a aceitação
da ocorrência de mortes", diz um trecho da denúncia da PGR.
De acordo com a
interpretação dos investigadores, Moraes poderia ser alvo de disparo de
armamento, artefato explosivo ou até envenenamento durante algum evento
oficial.
No caso de
"Jeca" — Lula, segundo a denúncia —, foi aventado o uso de
envenenamento ou "remédio que lhe cause um colapso orgânico".
A estratégia
considerou a "vulnerabilidade" de seu estado de saúde e sua
"frequência a hospitais".
Ainda de acordo
com o documento, a "neutralização" dele "abalaria toda a chapa
vencedora" e poderia colocá-la "sob a tutela principal do PSDB"
— provavelmente referindo-se ao vice eleito Alckmin, que por anos foi filiado
ao PSDB mas, na eleição de 2022, já era filiado ao PSB.
Fernandes teria
impresso o documento em novembro de 2022, após a derrota de Bolsonaro em sua
tentativa de reeleição.
No mesmo dia, o
general, que na época era secretário-executivo da Secretária-Geral da
Presidência da República, teria levado o plano para Bolsonaro ver no Palácio da
Alvorada.
Mauro Cid,
tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, também
estaria no local.
No início de
dezembro, segundo a denúncia, foi criado um grupo no aplicativo Signal com nome
"Copa 2022". Os participantes receberam codinomes: Alemanha, Áustria,
Brasil, Argentina, Japão e Gana.
Entretanto, de
acordo com a PGR, a operação acabou cancelada após a confirmação de que o
comandante do Exército, o general Marco Antonio Freire Gomes, não havia aderido
ao plano golpista.
Ainda assim, o
monitoramento a Moraes e a Lula continuou.
Nas alegações
finais, a defesa de Bolsonaro rejeitou que soubesse do plano para matar
autoridades.
"A verdade,
que a muitos não interessa, é que não há uma única prova que atrele o
Peticionário ao plano 'Punhal Verde e Amarelo' ou aos atos dos chamados Kids
Pretos e muito menos aos atos de 08 de janeiro", dizem os advogados do
ex-presidente.
Mário Fernandes
também responde à ação penal, mas faz parte do núcleo 2 dos réus.
A Polícia Federal
encontrou em um dos aparelhos eletrônicos de Mauro Cid fotos do que seria o
rascunho de um decreto golpista, o qual declarava Estado de Sítio no país.
Com várias
páginas, o rascunho traria justificativas legais para a declaração do Estado de
Sítio e apontava supostas ilegalidades cometidas pelo Judiciário nas eleições
de 2022.
A última página do
documento trazia uma anotação para que fossem inseridos "de forma
breve" exemplos de decisões "inconstitucionais do STF".
Mas, segundo a
PGR, a foto traz o documento parcialmente tapado, de forma a
"propositalmente" ocultar as providências finais do que deveria ser
feito.
Em depoimento,
o general Freire Gomes, então comandante do Exército, afirmou que lhe foi
apresentado um rascunho como o encontrado com Mauro Cid durante uma reunião de
Bolsonaro com comandantes das Forças em que os planos golpistas teriam sido
expostos.
A denúncia da PGR
traz várias mensagens e materiais encontrados no celular de Cid, que firmou um
acordo de delação na ação penal.
Aliás, na delação,
Cid afirmou que Bolsonaro fez alterações na minuta.
A confiabilidade
de sua delação é um dos pontos mais atacados pelos advogados dos réus, muitos
dos quais pedem a anulação do acordo de colaboração.
A defesa de Jair
Bolsonaro, por exemplo, criticou nas alegações finais que "a estória
contada pela PGR se desenvolve do princípio ao fim pela palavra do
colaborador".
Outro documento
digital encontrado nos arquivos de Mário Fernandes foi uma minuta atribuída a
um "Gabinete Institucional de Gestão de Crise" — segundo a PGR, um
órgão que seria instituído pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI),
comandado por Augusto Heleno.
O objetivo desse
órgão seria apoiar Bolsonaro — ao "proporcionar ao Presidente da República
maior consciência situacional das ações em curso a fim de apoiar o processo de
tomada de decisão".
O documento teria
sido criado em 16 de dezembro de 2022 e impresso no mesmo dia por Fernandes.
"Os
denunciados especulavam a todo momento sobre possíveis mudanças no
posicionamento do Alto Comando do Exército que pudessem justificar a assinatura
do Decreto e a estruturação do gabinete de crise", diz a procuradoria.
Com várias
páginas, a minuta tinha nomes que ocupariam diferentes cargos — como Heleno na
chefia do gabinete e o general Walter Braga Netto como coordenador-geral.
Haveria desde uma
assessoria de comunicação social a uma assessoria de "operações
psicológicas".
O documento previa
que o gabinete seria instalado no próprio 16 de dezembro e funcionaria em
regime "24/7" — ou seja, em tempo integral.
Suas funções
incluíriam "minimizar as narrativas da mídia" e estabelecer contatos
com povos indígenas, com o "agro", manifestantes, caminhoneiros e policiais
nos Estados.
O anseio da cúpula
da trama por um golpe continuaria nos primeiros dias de 2023 e culminaria
nos ataques de 8 de janeiro às sedes dos Três Poderes em Brasília, segundo
a acusação.
(Fonte: BBC)
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