Trump chamou Lula de "um cara legal" e sinalizou, em seu discurso na terça-feira (23/9), um encontro com o presidente brasileiro na próxima semana, após os mandatários conversarem por menos de 40 segundos no evento das Nações Unidas.
Na quarta-feira (24/9), Lula afirmou que está otimista com possibilidade de os governantes fazerem uma reunião o mais rápido possível e acabarem com mal-estar que existe hoje na relação Brasil e EUA.
"Tive outra satisfação de
ter um encontro com o presidente Trump. Aquilo que parecia impossível deixou de
ser impossível e aconteceu. Fiquei feliz quando ele disse que pintou uma
química boa entre nós."
Lula também disse que espera que
a conversa seja entre "dois seres humanos civilizados", quando perguntado
se temia constrangimentos como o que ocorreu no tenso encontro em Washington de
Trump com o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, em fevereiro.
"Não há por que ter
brincadeira em uma relação entre dois homens de 80 anos de idade. Eu vou tratá-lo
com o respeito que merece o presidente dos Estados Unidos, e ele certamente vai
me tratar com o respeito que merece o presidente da República Federativa do
Brasil", afirmou.
Dawisson Belém Lopes, professor
de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), afirma que a fala do presidente americano na ONU desfez o mito sobre a
direita ter monopólio de acesso ao governo Trump.
"Foi um golpe duro na
oposição, sobretudo na (ala) bolsonarista, que sentiu o baque e terá de se
reorganizar, criar narrativas alternativas", avalia o especialista.
Para Lopes, Lula deve manter o
tom defensivo que adotou até o momento, sem espaço para abrir mão da agenda
política, o que seria negociar anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro,
condenado por golpe de Estado e outros crimes pelo Supremo Tribunal Federal
(STF).
"O Brasil suportou bem a
pressão e o fato de estar sob fogo cerrado. Essa solidez defensiva acabou
levando a uma revisão de rota, de curso de ação. Se Trump estivesse obtendo os
resultados pretendidos pela sua política agressiva, imperial, é óbvio que ele
não faria o recuo público que fez hoje.
Na mesa de negociações, o Brasil
tem pautas importantes como a regulação das grandes empresas de tecnologia no
país e o acesso dos Estados Unidos às terras raras.
Na entrevista a jornalistas nesta
quarta, Lula sinalizou estar abertos a discussão dos minerais estratégicos.
"Discutimos com o mundo inteiro nossas terras raras", afirmou o
presidente.
Mas o professor da UFMG alerta:
"Não se trata de buscar concessões a todo custo", diz.
Confira a entrevista.
BBC News Brasil - O que
significou o recuo de Trump na Assembleia Geral da ONU?
Dawisson Belém Lopes - O Brasil esteve sob fogo cerrado
por oito meses e, sobretudo nos últimos três, a pressão de Washington aumentou.
Se, no primeiro momento, o Brasil conseguiu ficar fora do radar, nos últimos
três meses, com o tarifaço e as pressões exercidas sobre o Judiciário
brasileiro, o país definitivamente entrou em rota de colisão com os Estados
Unidos.
O que aconteceu hoje nas Nações
Unidas é bem importante, porque pode simbolizar um ponto de inflexão e o início
de outra trajetória — diferente, mais construtiva. Mas não nos enganemos: o que
foi acumulado durante os primeiros meses do governo Trump não vai se desfazer
tão facilmente.
Existe hoje uma coleção de
mercadorias e produtos brasileiros que estão, na prática, embargados pelos
Estados Unidos. Uma sobretaxação de 50% significa, na prática, embargo.
O Brasil também tem sofrido com
as tentativas de desestabilização do poder Judiciário, inclusive com sanções
unilaterais impostas a membros da mais alta corte jurisdicional brasileira, o
STF. Isso tudo não vai se desfazer da noite para o dia, magicamente. E muito
disso nem é passível de negociação, não vai para a mesa de negociação.
O que entendo é que o Brasil
suportou bem a pressão e o fato de estar sob fogo cerrado. Essa solidez
defensiva acabou levando a uma revisão de rota, de curso de ação. Se Trump
estivesse obtendo os resultados pretendidos pela sua política agressiva,
imperial, é óbvio que ele não faria o recuo público que fez (na ONU).
BBC News Brasil - Existe a
possibilidade de Lula sair desse encontro com boas negociações, se, ao menos
publicamente, a imposição das sanções e tarifas são políticas?
Lopes – Não vejo, para o Brasil, tantos
incentivos que permitam uma reversão completa de postura. Há margem para
incrementos, acho que há margem para diálogo e pode até haver, de parte a
parte, concessões para melhoramento dos termos do comércio. Acho que isso é
possível, sim. Nesse âmbito, pequenas vitórias de parte a parte podem
acontecer. Mas, politicamente, não.
Politicamente, o que pode
acontecer é uma mudança mais ou menos radical do Trump, que não hesita em ser
incoerente, em quebrar trajetórias e passar a fazer coisas que não fazia no
minuto anterior. Isso ele faz historicamente. Ele não "troca de
roupa" para mudar o relacionamento com líderes globais. E pode, ao se dar
conta de que Bolsonaro é carta fora do baralho, que não vai haver anistia e que
o STF no Brasil tem sido sólido e não vai ceder, começar a negociar com quem de
fato tem as alavancas de poder na mão, que é o presidente Lula.
Mas não vejo, do ponto de vista
internacional e doméstico, motivos para Lula sequer trazer à pauta o tema
político. Afinal, a retórica que condiz com a verdade factual é a de que há
independência dos poderes constituídos na República Brasileira. Se o Judiciário
determina um curso de ação e o segue, não cabe ao Executivo sequer palpitar a
esse respeito.
Isso não está na mesa de
negociações. A pauta comercial pode, sim, acomodar aqui e ali algum avanço. É
onde se pode conversar.
BBC News Brasil - Qual deve ser a
postura de Lula diante desse encontro?
Lopes - O presidente foi inequívoco
e claro ao dizer, naquele
artigo publicado no The New York Times, que soberania e democracia
não são negociáveis. O funcionamento do Judiciário e das instituições
brasileiras de modo geral não é um assunto passível de discussão bilateral.
Isso é uma pedra de toque, não está em questão.
Então, a postura deve continuar a
ser defensiva, priorizando o interesse nacional do Brasil e não buscar
concessões a todo custo.
Francamente, nesse caso, o
presidente da República, que vive de negociação há décadas e faz disso seu
ganha-pão, tem alguma expertise no assunto. Certamente não é ingênuo, não se
deixou encantar pelo canto da sereia. A postura permanecerá defensiva, imagino.
BBC News Brasil - O que o Brasil tem na mesa como contrapartida?
Lopes - O Brasil tem um mercado de
210 milhões de consumidores, atraente para as empresas americanas. Acho que o
que mais interessa hoje aos Estados Unidos é a possibilidade de atuação
das big techs [grandes empresas de tecnologia], de capital
estadunidense. As maiores do mundo são dos Estados Unidos, querem atuar no
Brasil e com o mínimo de regulação possível. Esse é um dos temas que interessam
ao empresariado.
Outro tema é o das terras raras,
minerais estratégicos. O acesso a um suprimento confiável interessa muitíssimo
aos Estados Unidos. O Brasil, que é um dos principais reservatórios do mundo,
tem nisso um trunfo importante.
Mas não apenas. Os Estados Unidos
também têm interesse em assegurar a provisão de café, por exemplo, a preços
melhores do que os praticados atualmente, que estão inflacionando o café da
manhã do americano médio.
Agora, um ponto importante: não
se trata de buscar concessões a todo custo. As conversas precisam acontecer e o
Brasil não precisa necessariamente entregar mais. Não acho que seja o caso. É
uma negociação entre pares, entre homólogos, entre chefes de Estado. O
pressuposto de que o Brasil deve conceder de toda maneira me incomoda. A
relação deve continuar se pautando pela igualdade soberana entre as nações.
BBC News Brasil - A direita
repercutiu a possibilidade de encontro com Lula como uma estratégia de Trump,
"um bom negociador", que teria deixado "o presidente brasileiro
numa situação impossível". Você concorda? Trump tem realmente sido um
"bom negociador" nesses acordos bilaterais?
Lopes - O afago, ainda que circunstancial
e improvisado, não atribuo a nenhuma racionalidade complexa de Donald Trump,
nem a uma sofisticada tática para atrair Lula à mesa de negociação. Isso é
bobagem. Trump é um animal do improviso e fez um discurso muito improvisado:
por não ter conseguido ler o teleprompter, improvisou praticamente o tempo
todo, começou num registro informal e terminou no mesmo tom.
Mas acabou jogando água no moinho
do presidente brasileiro de maneira inesperada. Até hoje, argumentava-se que
apenas a oposição de direita conseguia se conectar com Trump, que ele só
reconhecia como interlocutor alguém da família Bolsonaro ou eventualmente
Tarcísio de Freitas. O que se mostrou hoje em Nova York não foi isso.
A abertura dos trabalhos da
Assembleia Geral escancarou outra realidade. Foi um golpe duro na oposição,
sobretudo na bolsonarista, que sentiu o baque e terá de se reorganizar, criar
narrativas alternativas.
A ideia rocambolesca de que Trump
tenta atrair Lula para uma armadilha é bobagem. É evidente que a guarda deve
ser mantida alta por parte do governo brasileiro. Mas isso é óbvio. O impacto
político, porém, foi interessante, porque desfaz alguns mitos que vinham se
arrastando.
BBC News Brasil – Lula poderia
cair numa emboscada, como Zelensky, que foi praticamente linchado ao vivo no
Salão Oval, ou Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul, que foi alvo de
acusações infundadas ao aceitar a reunião com Trump?
Lopes – Naturalmente, o presidente dos
Estados Unidos explora muito bem a política como espetáculo. Ele se elegeu e se
reelegeu praticando uma modalidade de política de conexão com o eleitorado que
se vale muito das imagens e impressões que consegue construir. Ele é um
comunicador de grande talento.
É óbvio que os representantes do
Estado brasileiro, os diplomatas, estão cientes disso e não permitirão que o
Brasil e seu chefe de Estado sejam expostos ao mesmo espetáculo degradante a
que estiveram submetidos o presidente da África do Sul, o da Ucrânia, entre
outros.
O Brasil tomará cautelas. Trump
se nutre desse tipo de exposição, usa e abusa da política externa até o momento
em que ela deixa de lhe render recompensas eleitorais. Depois, abandona. Cabe,
portanto, ter todo o tipo de precaução em relação a essas táticas próprias do
populismo de ultradireita.
BBC News Brasil - Na quarta, Lula
se pronunciou e se mostrou bastante aberto e sem condicionantes para a
conversa, inclusive sobre a possibilidade de se encontrarem presencialmente, o
que seria, segundo ele, uma conversa civilizada entre dois homens de 80 anos.
Como avalia a resposta do presidente?
Lopes - O tom é amigável, é um
tom suave e que, na verdade, serve ao propósito duplo de lubrificar as relações
bilaterais com os Estados Unidos, subir de nível e melhorar o que antes estava
envenenado. Por um lado, há isso. Por outro, vejo também uma resposta à
oposição, a um certo argumento veiculado nas redes sociais e na própria
imprensa de que Lula teria medo de se encontrar face a face com Donald Trump e
receio de ser humilhado na Casa Branca, como aconteceu, aliás, com outros
presidentes, chefes de Estado e de governo.
Agora, é evidente que essa
mensagem não pode ser tomada pelo valor de face. É importante entender, nas
entrelinhas, que o presidente vai considerar o interesse brasileiro em primeiro
lugar. Principalmente, essa evocação da senioridade — "dois homens de 80
anos" — já é uma tentativa de dar paridade à conversa, de mostrar de onde
se está falando.
Há aí uma tática de discurso, que
é justamente a equiparação entre dois homens tarimbados, experientes. Lula
tenta identificar um ponto de apoio e uma possível área de convergência, que é
a senioridade, sob uma luz positiva. Essa é uma tacada muito interessante,
aliás, porque, afinal, como você sabe, há questionamentos sobre a idade
provecta do presidente do Brasil e também do presidente dos Estados Unidos —
ainda que em menor grau.
O que Lula convida a pensar é
justamente na equiparação dos dois quando se trata da faixa etária. Eles
pertencem ao mesmo mundo, viveram coisas parecidas, viram o mesmo mundo ao
longo de 80 anos. Isso é muito interessante, uma jogada importante, uma tática
discursiva feliz do presidente do Brasil. Mas não pode ser tomada pelo valor de
face.
A cautela vai prevalecer, e o
Brasil não vai de peito aberto para uma reunião assim. Lula pode falar nesses
termos e evocar uma certa espontaneidade, mas é a tranquilidade de quem sabe
que tem uma equipe técnica, diplomática, do mais alto nível.
BBC News Brasil - Tirando o aceno
ao Brasil, Trump fez um discurso duro em relação à América Latina. Como você
avalia essa postura?
Lopes - O tom geral para a América
Latina foi duro, desencoraja qualquer prognóstico de aproximação hemisférica.
Não é algo que tenha nascido agora com Trump. A região costuma aparecer nos
discursos de chefes de Estado ou do Departamento de Estado sob ótica negativa:
narcotráfico, crime organizado, imigração ilegal. É mais do mesmo.
No caso do Brasil, porém, há uma
diferença. O país consegue se descolar da regra geral para a América Latina,
talvez pela escala: sozinho, corresponde a um terço da população da região,
ocupa metade do território da América do Sul e concentra cerca de metade da
economia do subcontinente. É um país distinto. As conversas com o Brasil seguem
outra toada.
(Fonte: BBC)



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