Ele afirma que a proposta de taxar os super-ricos em discussão no Congresso pode
reduzir ainda mais a desigualdade brasileira, ainda que seja preciso avaliar se
a mudança poderá suscitar fuga de capital para o exterior.
"Não há qualquer dúvida
de que a reforma [do Imposto de Renda] reduziria a desigualdade",
diz Milanovic, em entrevista à BBC News Brasil.
"O argumento, eu suponho,
do outro lado, é que é preciso considerar se isso realmente teria um efeito
positivo na economia — o que eu acho que teria —, ou se os ricos esconderiam
seu dinheiro, se eles colocariam o dinheiro no exterior e coisas assim",
pondera.
"Muitas vezes isso foi
usado como uma ameaça, mas na realidade isso não se concretizou porque essas
pessoas ainda ganham mais dinheiro no Brasil do que colocando o dinheiro em
outro lugar", diz o professor da City University of New York (Cuny), que
foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial por quase 20 anos.
A reforma do IR prevê a
ampliação da faixa de isenção do imposto para R$ 5 mil, uma promessa de
campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O projeto prevê ainda um
desconto parcial para rendimentos entre R$ 5 mil e R$ 7,35 mil.
Para compensar a perda de
arrecadação com o aumento da isenção, o governo propõe tributar progressivamente
quem ganha mais de R$ 600 mil por ano em até 10%, alíquota máxima aplicada a
rendas anuais a partir de R$ 1,2 milhão; e taxar na fonte em 10% lucros e
dividendos distribuídos por empresas a seus acionistas acima de R$ 50 mil
mensais, inclusive dividendos enviados para o exterior.
A proposta teve urgência
aprovada e agora pode ser votada diretamente no plenário da Câmara, mas a
votação foi adiada enquanto os deputados aceleraram a tramitação da proposta de
emenda à Constituição (PEC) que pretende blindar parlamentares de processos criminais,
conhecida como "PEC da Blindagem", posteriormente derrubada pelo Senado.
Em livro lançado recentemente
no Brasil — Visões da desigualdade: Da Revolução Francesa até o fim da
Guerra Fria (Todavia, 2025) — Branko Milanovic discute por que durante
anos, no período da Guerra Fria, a desigualdade desapareceu como tema dos estudos
econômicos.
O economista faz isso ao traçar
uma história do pensamento ocidental sobre a desigualdade, através das obras de
seis autores clássicos: François Quesnay, Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx,
Vilfredo Pareto e Simon Kuznets. Para cada um deles, faz uma pergunta
hipotética: "O que seu trabalho revela sobre a distribuição de renda como
ela existe em sua época, e como e por que ela pode mudar?"
Milanovic explica a
importância dessa análise histórica: "Primeiro, é importante porque são
autores canônicos. Em segundo lugar, porque vemos como a visão da desigualdade
está sendo moldada pelas condições da época de cada um deles."
"E terceiro, é importante
para nós agora para que percebamos que realmente esquecemos completamente dois
aspectos importantes da desigualdade. Um é a estrutura de classes, e o segundo
é o surgimento da elite", considera o economista.
À BBC News Brasil, Milanovic
antecipou ainda o debate de seu novo livro, que deverá ser lançado nos Estados
Unidos em novembro, The Great Global Transformation: National Market
Liberalism in a Multipolar World ("A Grande Transformação Global:
Liberalismo de Mercado Nacional em um Mundo Multipolar", em tradução livre,
que será lançado no Brasil pela Todavia em 2026).
Nele, o economista discute
como a ascensão da Ásia nas últimas décadas — principalmente da China, mas também de países como Índia, Indonésia e Vietnã —
redesenhou o topo de renda global, levando a uma crescente insatisfação das
classes médias de países desenvolvidos, que resultou na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e em instabilidades
diversas na Europa.
O especialista explica também
porque considera Trump um "neoliberal otimista" e, ao mesmo tempo, um
mercantilista na política externa.
Confira abaixo os principais
trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Seu livro Visões
da Desigualdade foi publicado recentemente no Brasil. Então, para
começar, gostaria de lhe fazer a mesma pergunta hipotética que você fez aos
seis autores clássicos: o que seu livro revela sobre a distribuição de renda em
nosso tempo e como e por que ela pode mudar?
Branko Milanovic - Basicamente, quando
você analisa esses autores com a perspectiva de observar ou interpretar como
eles pensavam sobre desigualdade de renda, você tem que fazer um pouco da sua
própria interpretação porque autores (que vieram) antes de [Vilfredo] Pareto —
o que significa [François] Quesnay, [Adam] Smith, [David] Ricardo e [Karl] Marx
— não tinham realmente o que consideramos desigualdade de renda como seu foco
principal.
Então o que se aprende é que,
para eles, a distribuição de renda se resumia essencialmente a distribuição
entre classes.
Portanto, seja você um
proprietário de terras, capitalista ou trabalhador, determinar sua posição na
distribuição de renda e estudar a distribuição de renda entre indivíduos
significava estudar quanto da produção ou renda total iria de fato para os
proprietários de terras, quanto para os capitalistas, quanto para os
trabalhadores.
Era um estudo muito orientado
por classes, o que eu acho que desapareceu hoje em dia, em parte por causa da
influência política de que não devemos estudar classes, em parte por causa da
mudança na estrutura da economia neoclássica.
Então, quando chegamos a
Pareto, há a introdução da desigualdade interpessoal, ela substitui a
desigualdade entre classes.
Mas, para Pareto, o que
aparece é uma elite no topo. Como você sabe, na verdade, os economistas não
estudavam as elites até recentemente.
E então, finalmente, temos
[Simon] Kuznets. Para quem as desigualdades eram o resultado da divergência de
renda e produtividade entre agricultura e manufatura, entre áreas rurais e
áreas urbanas. Então essa seria, em poucas palavras, a história dos seis
autores.
BBC News Brasil - E por que
isso é importante?
Milanovic - Primeiro, é importante
porque obviamente eles são autores canônicos.
Em segundo lugar, é importante
porque você vê como a visão da desigualdade está sendo moldada pelas condições
da época para cada um deles.
E terceiro, é importante para
nós agora para que percebamos que realmente esquecemos completamente de dois
aspectos importantes da desigualdade.
Um é a estrutura de classes da
desigualdade, e o segundo é o surgimento da elite.
BBC News Brasil - E qual é a
implicação de esquecermos esses dois aspectos importantes?
Milanovic - A implicação é que
devemos perceber que a economia neoclássica, que prevaleceu da década de 1970
até provavelmente 2010, realmente ignorou, em grande medida, as questões da
desigualdade de renda.
Como menciono no livro, isso
se aplica menos à América Latina [Milanovic menciona no livro os economistas
estruturalistas latino-americanos, como Celso Furtado,
e outros autores do terceiro mundo, como o egípcio Samir Amin, como exceções à
regra de ignorar a concentração de renda durante a Guerra Fria].
Isso porque a ignorância sobre
essa questão nos países capitalistas se deveu essencialmente, em primeiro
lugar, à Guerra Fria, quando houve uma tentativa dos EUA de afirmar que não
havia classes no país.
O segundo elemento foi o
financiamento da pesquisa por pessoas muito ricas. E pessoas ricas obviamente
não gostam de pesquisas sobre desigualdade.
E a terceira razão foi a
mudança na economia neoclássica, onde na verdade não se estudava mais classes,
mas o que é chamado de "agentes", e agentes são, por definição,
iguais. Alguns têm mais capital, alguns menos, mas é irrelevante.
Então, por essas três razões,
não estudávamos, e a implicação é que deveríamos analisar por que os estudos
sobre distribuição de renda foram deixados de lado. É essencialmente porque as
pessoas não queriam estudar, por razões políticas, as elites e a estrutura de
classes.
BBC News Brasil - E por que
foi diferente na América Latina?
Milanovic - A América Latina foi uma
exceção, em primeiro lugar, porque a desigualdade é tão óbvia na região. Então
as pessoas estudaram isso por muitos anos. Na verdade, há cerca de 100 anos de
história de estudos da desigualdade de renda na América Latina, incluindo o
Brasil.
Em segundo lugar, porque as
pressões da Guerra Fria para afirmar que não se tratava de uma sociedade
baseada em classes eram muito menores. As pressões da Guerra Fria eram mais
fortes nos países do Leste Europeu, que tinham que afirmar que tinham abolido
sua estrutura de classes.
E, nos EUA, isso ocorreu em
meio à luta com a União Soviética na Guerra Fria.
BBC News Brasil - Então,
trazendo a conversa para o Brasil. O país está atualmente debatendo sua reforma do Imposto de Renda mais
significativa em décadas, que deve isentar ou reduzir impostos para 90% da
população e aumentá-los para os mais ricos. Como o senhor vê essa reforma e
como ela posiciona o Brasil no debate global sobre desigualdade?
Milanovic - O que foi interessante
na América Latina — por que a América Latina foi diferente [das demais regiões]
nos últimos 20, 25 anos — é que, se você observar os dados de pesquisas
domiciliares, todos os países registraram um declínio significativo na
desigualdade.
O Brasil é ainda mais
impressionante na redução da desigualdade, mas isso também é verdade para o
México, Chile, Peru. Acho que o único país em que isso não aconteceu foi a
Colômbia.
Isso ainda faz da América
Latina um continente com grande desigualdade, porque [esse declínio] começou a
partir de um nível muito alto — no caso do Brasil, o coeficiente de Gini
[indicador de desigualdade de renda que varia de 0 a 100, sendo 100 a
desigualdade máxima] era de 60 e caiu para algo como 48 ou algo assim. Então é
um declínio muito significativo.
Mesmo quando os pesquisadores
ajustaram isso para a subnotificação [de renda] no topo [no Brasil, em
trabalhos com os de Pedro Ferreira
de Souza, Marc Morgan, Sérgio Gobetti e,
mais recentemente, Gabriel Zucman] — porque é verdade que as pessoas muito ricas,
que são poucas em número, não são incluídas nas pesquisas, que são limitadas e
tendem a subestimar suas rendas.
Então, mesmo quando você
ajusta isso, você ainda encontra um declínio na desigualdade de renda, embora
seja um declínio menor.
Então, nesse sentido, a
América Latina é um continente atípico, porque tinha um nível de desigualdade
alto, mas ele diminuiu.
É interessante que a
desigualdade no Brasil agora é apenas um pouco maior que na China. É um ponto
muito interessante. Se você olhar, 20 anos atrás, a desigualdade no Brasil era
significativamente maior que a da China.
Então acredito que há forças
econômicas por trás disso, não acho que seja só uma questão política. Na
verdade, no Brasil, o declínio começou ainda no governo [Fernando Henrique]
Cardoso. Obviamente, Lula foi muito importante, mas acho que começou antes de
seu primeiro mandato.
BBC News Brasil - Mas o senhor
está acompanhando a reforma atual que está sendo discutida no Congresso
brasileiro? Acredita que ela pode reduzir ainda mais essa desigualdade?
Milanovic - Não há qualquer dúvida
de que a reforma reduziria a desigualdade.
O argumento, eu suponho, do
outro lado, é que é preciso considerar se isso realmente teria um efeito
positivo na economia — o que eu acho que teria —, ou se os ricos esconderiam
seu dinheiro, se eles colocariam o dinheiro no exterior e coisas assim.
Mas acho que não há dúvida de
que, se houver uma reforma séria que afete os 10% mais ricos do Brasil, que são
realmente muito ricos, reformando a tributação, essa reforma reduziria a
desigualdade.
BBC News Brasil - Isso nos
leva à minha próxima pergunta. À medida que a reforma avança no Congresso,
vemos uma resistência crescente por parte das empresas, uma vez que ela inclui
a tributação de dividendos, que atualmente são isentos no Brasil. E também há
esse medo de que os ricos possam deixar o país devido
aos impostos mais altos, como o senhor mesmo mencionou. Como vê esse tipo de
resistência sempre que políticas para reduzir a desigualdade são propostas?
Milanovic - É compreensível que
sempre haverá resistência, porque políticas que reduzem a desigualdade tendem
obviamente a afetar mais pessoas com rendas mais altas. Então, essas pessoas
com rendas mais altas, especialmente aquelas com maior riqueza, resistem a isso.
E a resistência deles é vista
fortemente na imprensa porque eles têm influência na mídia, eles têm influência
sobre o que outras pessoas pensam.
A resistência das pessoas mais
pobres é muito mais difícil de ver na mídia e nas notícias, porque as pessoas pobres
não têm a mesma influência que as pessoas ricas.
Então, o fato de eles [os
ricos] se oporem não é uma surpresa. Agora, a pergunta que se deve fazer, e eu
realmente não sei a resposta, é se essa ameaça da chamada "greve de
capital" ou de saída de capital do país é uma ameaça real ou não.
Muitas vezes isso foi usado
como uma ameaça, mas na realidade isso não se concretizou porque essas pessoas
ainda ganham mais dinheiro no Brasil do que colocando o dinheiro em outro
lugar.
Mas não há dúvida de que uma
reforma tributária que fizesse uma mudança significativa ou um aumento na
alíquota máxima do imposto, reduziria a desigualdade. Eu acho que é algo óbvio.
A questão é se isso é viável e se teria outros efeitos que não seriam
necessariamente bons.
BBC News Brasil - O senhor
deve lançar um novo livro em breve, The Great Global Transformation.
Sobre o que ele trata e como pode nos ajudar a entender o mundo após Trump?
Milanovic - É um livro sobre a
ascensão da Ásia. Principalmente da China, é claro, mas também de outros países
asiáticos, como Índia, Indonésia, Vietnã e assim por diante.
Os países asiáticos aumentaram
suas rendas e seu poder econômico muito mais do que o resto do mundo. Isso
produziu questões em dois níveis: é uma grande redistribuição de poder
econômico, o que implica numa redistribuição de poder político e até militar; e
levou ao conflito entre EUA e China.
Então documentei essa mudança
drástica no poder econômico que ocorreu nos últimos 40 anos. E essa mudança
dramática de poder entre Estados tem implicações na renda das pessoas.
Muitos chineses tiveram um
aumento na sua renda e ultrapassaram pessoas de países ocidentais que estiveram
no topo da distribuição global de renda por quase 200 anos. E isso teve impacto
na estabilidade política interna de países ricos.
Então o objetivo do livro é
explicar que os processos de recalibração do poder econômico entre a Ásia e o
resto do mundo tiveram efeito na estabilidade geopolítica, mas também na
estabilidade interna dos países.
Há uma mudança no poder
econômico entre os países que se traduz na mudança nas posições de indivíduos
pertencentes a diferentes países em uma ordem global.
Agora, se as classes médias
dos países ocidentais caem na ordem global, elas ficam insatisfeitas. E a única
maneira de manifestar essa insatisfação é na esfera política. E isso levou a
Trump e a muitos outros tipos de instabilidade na Europa.
BBC New Brasil - Um dos
elementos mais famosos do seu trabalho é a "curva do
elefante", que levou o debate sobre desigualdade do
nível nacional para o global. Como esse gráfico nos ajuda a entender o conflito
atual entre a China e os EUA e a ascensão de Trump ao poder?
Milanovic - Essencialmente, o gráfico é
o ponto de partida de tudo isso. O gráfico, como você sabe, representa as
diferenças nas taxas de crescimento [da renda para as diferentes faixas de
renda no mundo, entre 1988 e 2008].
Então, o que o livro faz é ir
além. Ele explica essa grande mudança, que é muito semelhante à Revolução
Industrial.
Essencialmente, na Revolução
Industrial, a Europa, os EUA e o Japão se tornaram muito mais poderosos
economicamente e, com isso, muito mais poderosos política e militarmente. Não
haveria colonialismo sem a Revolução Industrial.
Agora temos uma revolução
tecnológica reversa, onde a Ásia se torna muito mais importante politicamente e
economicamente. Isso leva ao conflito pela hegemonia entre EUA e China e talvez
outros países como Índia, Rússia, Brasil e assim por diante.
Mas no nível individual, isso
leva ao diferencial nas taxas de crescimento das rendas e à substituição de
parte da elite global, que é inteiramente ocidental, por uma nova elite, que
vem de grandes países asiáticos e de países como, por exemplo, o Brasil.
A elite brasileira do 1% mais
rico sempre esteve no 1% mais rico do mundo, mas isso não era importante o suficiente
para fazer uma diferença tão grande para as outras elites ocidentais.
Mas, quando você tem 1,4
bilhão de chineses, 1% deles são 14 milhões. Então, na verdade, é uma mudança
muito significativa.
BBC News Brasil - Esse famoso
gráfico mostra as tendências globais de desigualdade até 2008. Que formato ele
teria hoje, se fosse estendido até 2025? O que aconteceu com a desigualdade
global após a pandemia?
Milanovic - Na verdade, eu estendi
os dados até 2023. O que aconteceu é que a forma da curva mudou.
Bem, duas coisas não mudaram.
O crescimento das classes médias globais continua, o baixo crescimento da
classe média alta dos países ocidentais continua. Mas o topo da distribuição de
renda cresceu a taxas muito menores do que antes da crise financeira [de 2008].
Então isso mudou.
BBC News Brasil - Em artigos
recentes, o senhor se referiu a Trump como um "neoliberal otimista".
Por que o senhor o considera um neoliberal, sendo que ele tomou várias medidas de
intervenção na economia dos EUA, adotou políticas comerciais protecionistas e
elevou gastos do governo?
Milanovic - Na verdade, isso faz
parte do livro. É preciso diferenciar — e isso infelizmente não tem sido
diferenciado o suficiente até agora — neoliberalismo doméstico e neoliberalismo
no exterior.
Se você olhar para Trump, ele
desregulamentou coisas. Ele reduziu impostos. Ele quer um Estado menor e
impostos mais baixos sobre o capital. Ele quer impostos mais baixos para os
ricos.
Então, todas essas são medidas
neoliberais em âmbito doméstico.
Internacionalmente, ele é um
mercantilista. Portanto, temos que distinguir entre o neoliberalismo interno e
o neoliberalismo externo. Ele se livrou do neoliberalismo no exterior, mas, na
verdade, aprofundou o neoliberalismo doméstico.
E é por isso que o subtítulo
do livro é o que eu chamei de "liberalismo de mercado nacional".
É um neoliberalismo que agora
se aplica apenas ao mercado interno, não se aplica nem mesmo à esfera social
interna, onde ele é contra todas as políticas de ação afirmativa, políticas de
igualdade, e tudo o mais. E não se aplica de forma alguma à arena internacional.
Então é por isso que eu
acredito e argumento que ele ainda é neoliberal no âmbito doméstico, não
neoliberal no âmbito internacional.
BBC News Brasil - E quanto
ao confronto entre Trump e o Federal Reserve [o Banco
Central dos EUA]? Como isso se encaixa na sua interpretação de que ele é um
neoliberal?
Milanovic - A independência do
Banco Central foi originalmente um projeto neoliberal, datado de 50 anos atrás.
E era um projeto neoliberal cujo objetivo era deixar parte da tomada de
decisões econômicas fora do controle popular, porque eles tinham medo que
partidos sociais-democratas, socialistas, comunistas e outros vencessem.
E se eles vencessem, a
formulação de políticas econômicas seria politizada. E o interesse deles, que
na verdade era o interesse na proteção do capital, não seria seguido.
Então, a ideia da
independência do Banco Central sempre foi uma ideia da direita, cujo objetivo
era afirmar que se tratava de um domínio profissional, restrito, de
especialistas, que não deveria estar sujeito ao controle do Legislativo ou
Executivo.
Então isso era fruto de um
sentimento de pessimismo, de que eles não seriam capazes de permanecer no
governo e no controle.
Trump não é pessimista. Na
verdade, ele é um otimista. Ele acredita que "agora estamos no poder e
permaneceremos no poder. Então não há razão alguma para eu não controlar o Fed,
porque acredito que seremos capazes de controlá-lo de qualquer maneira".
Então, eu vejo isso como a
diferença entre neoliberais mais cautelosos e pessimistas, que queriam ter
certeza de que os bancos centrais não seriam vítimas de medidas populistas ou
socialistas, e alguém que acredita que nunca seria vítima disso porque
"nós é que vamos governá-lo".
BBC News Brasil - E qual o
senhor acha que pode ser o resultado desse confronto?
Milanovic - Eu realmente não sei,
não sou um macroeconomista. Só estou explicando o que acredito ser a razão
ideológica por trás disso.
Porque as pessoas que são
macroeconomistas, cujos conhecimentos de história e ideologia são muito fracos,
se convenceram de que bancos centrais independentes devem ter existido desde
sempre e devem permanecer assim para sempre.
Então o que eu estava tentando
fazer — usando, o livro Globalistas, de Quinn Slobodian [Enunciado
Publicações, 2022], sobre a ascensão do pensamento neoliberal — era explicar
ideologicamente por que temos um banco central independente. Isso não caiu do
céu, surgiu de uma tomada de decisão política.
E, a propósito, isso também é
verdade sobre a independência dos bancos centrais na maioria dos países, porque
essa ideia foi muito fortemente promovida nas décadas de 1980 e 1990. E, em
muitos países, foi quase totalmente aceita pelas elites nacionais pelas mesmas
razões explicadas.
E é verdade que, em muitos
países, os bancos centrais se tornaram independentes. Mas isso também
significou que eles não tinham supervisão democrática. Esse era o ponto.
BBC News Brasil - Com as
nações mais pobres enfrentando tarifas mais altas do que as nações mais ricas
sob o governo Trump, isso pode afetar as tendências globais de desigualdade de
alguma forma nos próximos anos?
Milanovic - Pode, mas não tenho
muita certeza de quanto. Li que a Índia [contra quem Trump impôs tarifas de
50%, similares às do Brasil] seria afetada significativamente, em 1,5% do PIB.
Mas não se deve perder muito
tempo com as tarifas de Trump porque elas podem mudar na semana que vem. Então
não sabemos realmente. Acho que para ele é um jogo. Ele aumenta a tarifa e
então ganha outras coisas de você. E então diz: "Ok, agora vou diminuir as
tarifas".
Então eu acho que as pessoas
gastam muito tempo estudando ou falando sobre alguma coisa, que na semana
seguinte se torna irrelevante.
BBC News Brasil - É bastante relevante
para o Brasil no momento, porque fomos taxados em 50%. Então, para nós é um
tópico bastante significativo no momento.
Milanovic - Eu vi esse número para a
Índia e certamente terá um impacto no Brasil. Provavelmente de cerca de 1% do
PIB, e isso não é desprezível.
Um crescimento mais lento
provavelmente seria ruim para a desigualdade no Brasil e para a desigualdade no
mundo. Mas isso não é significativo.
A desigualdade no mundo é um fenômeno grande demais e mesmo as tarifas de Trump não serão vistas com tanta clareza [no horizonte maior de tempo]. E, como eu disse, não acho que elas vão durar.
(BBC Brasil)




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