Antônio*, de 22 anos, calcula já ter perdido cerca
de R$ 53 mil com seu vício em apostas online.
Fazer as contas do prejuízo e contar sua história são algumas das etapas de uma estratégia ampla adotada por ele, com ajuda médica e da família, para se livrar do jogo compulsivo.
Quando se deu conta do vício e decidiu parar, contou com a ajuda do pai, que passou a administrar todo seu dinheiro.
"Mas eu voltei a apostar com o crédito de
cartões que eu tinha. Então o que eu fiz? Bloqueei todos os cartões de crédito
e todos os bancos em que eu podia pegar empréstimo."
"Hoje eu não tenho cartão de crédito nenhum,
não tenho dinheiro nenhum comigo, e a maior parte do meu dinheiro está com meu
pai. Meu pai mandava R$ 500 por vez para minha namorada e ela me dava para as
despesas do dia a dia. Eu queria comer um negócio na rua, eu ligava para
ela", conta.
"Depois que passaram três semanas que eu não
apostei mais, uma semana atrás, eu tomei a iniciativa de ficar com esses R$
500, então minha namorada não é mais a intermediadora", comemora Antônio,
sobre seus pequenos avanços em busca de se livrar do jogo.
Além de deixar todo seu dinheiro sob os cuidados de
uma pessoa de sua confiança, Antônio conta que passou a assistir a diversos
relatos no YouTube de pessoas que passaram pelo mesmo problema.
"Eu fui em psicólogos e psiquiatras, então eu
tomo um remédio para impulsividade e um para controle de humor, que a
psiquiatra entendeu que era necessário nesse momento. Esse de impulsividade é o
mesmo que os alcoólatras tomam", diz o jovem, reconhecendo que sua
condição familiar de classe média alta facilitou o acesso ao tratamento e que
essa não é uma realidade para todos os brasileiros, especialmente os de baixa
renda.
"Mas em mudanças de comportamento, para além
do remédio, o que me ajudou foi ir nas terapias semanalmente e fazer esse
exercício de ouvir o relato de outras pessoas e perceber o quão danoso isso é
para a família brasileira e perceber que eu não quero isso para mim."
A luta de Antônio, que preferiu ter seu nome
verdadeiro preservado, é a de milhões de brasileiros que buscam se livrar do vício em apostas, desde
que as plataformas de apostas online — as chamadas "bets" — foram
regulamentadas no Brasil em 2018, durante o governo de Michel Temer (MDB).
Quando apostar vira um problema
Em 2023, cerca de 28 milhões de brasileiros de 14
anos ou mais (ou 17,6% da população nesta faixa de idade) diziam ter apostado
no ano anterior, segundo estudo publicado pela Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), em parceria com o Ministério da Justiça e
Segurança Pública, em abril deste ano.
Entre os apostadores, 10,9 milhões apresentavam
características de jogo de risco ou problemático — número equivalente a 38,6%
do total de apostadores e 7,3% da população em geral.
Dentro desse grupo dos apostadores problemáticos,
1,4 milhão de brasileiros apresentavam um padrão de apostas compatível com o
diagnóstico de transtorno do jogo, enfermidade caracterizada pelo desejo
incontrolável de apostar mesmo diante de prejuízos — contingente equivalente a
5% dos jogadores e 0,8% da população total acima de 14 anos.
"Há mais de 30 anos, a ciência entendeu que o
cérebro não fica só dependente de substâncias químicas, mas também de
comportamentos muito ativadores das áreas
que processam prazer no cérebro", diz Rodrigo Machado,
psiquiatra do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria
(IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (FMUSP).
Jogos de azar, compras compulsivas e impulso
sexual excessivo estão dentro do guarda-chuva das chamadas
dependências comportamentais, afirma o médico.
Mas houve uma mudança no perfil dos jogos de azar
que levou à explosão dos casos de dependência no Brasil, especialmente desde
2018.
"Com a tecnologia e a extrema difusão dos
cassinos online, passamos a ter cassinos no bolso 24 horas. Qualquer pessoa
consegue acessar as plataformas de apostas, bets esportivas etc., quando antes
você precisava se deslocar fisicamente até um determinado lugar", afirma o
especialista em jogo compulsivo.
Outra mudança, diz ele, foi na própria dinâmica do
jogo de azar através das plataformas digitais.
"Elas incorporaram outros mecanismos e formas
de apostar para deixar esse jogo de azar muito mais sedutor e,
consequentemente, muito mais aditivo", diz o psiquiatra.
Por exemplo, apostas em jogos de futebol sempre
existiram, mas antes só se apostava no resultado final.
Já nas plataformas de apostas, é possível fazer as
chamadas "apostas in-play", enquanto o jogo está
acontecendo.
Além disso, é possível fazer tipos variados de
apostas, por exemplo, em quem vai receber cartão amarelo, qual time vai fazer o
próximo gol ou o próximo escanteio, entre dezenas de outras.
"Quando você promove um ciclo ultrarrápido de
apostas, você encurta a distância entre o ato de apostar e o resultado final,
fazendo com que as pessoas entrem num loop de compulsividade
e, consequentemente, de hiperestimulação dos centros que processam o prazer no
cérebro."
Além disso, diz Machado, as plataformas digitais
têm mecanismos que distorcem a percepção do resultado final. Por exemplo,
quando o jogador aposta numa roleta online e a plataforma diz que a pessoa
"quase ganhou" e por isso vai receber R$ 3 — tendo apostado R$ 10.
"Dando um prêmio de consolação, a plataforma
dá a falsa sensação de que você não perdeu, e isso aumenta sua chance de
continuar postando. Esses mecanismos que geram distorções da percepção de ganho
e perda são muito invasivos e também são presentes por conta da
tecnologia", diz o especialista da FMUSP.
"Tudo isso faz com que o jogo de azar atinja
muito mais pessoas e adoeça muito mais pessoas, a uma velocidade muito
maior", acrescenta Machado.
'Parece que as coisas não terão solução'
O catarinense Rafael Santos, de 42 anos, se viu
enredado nesta rede do vício descrita pelo médico.
"Fui perceber mesmo o problema quando começou
a afetar muito minha vida financeira, mas quando percebi, já era tarde, eu já
estava completamente perdido no vício", conta o youtuber, dono dos canais
Rafadon.
Entre empréstimos, cartões de crédito e dinheiro em
conta, descontando os valores que chegou a ganhar apostando, Rafael estima já
ter perdido mais de R$ 150 mil.
"Disso, R$ 80 mil são dívidas", calcula o
morador de Joinville. Ele também conta que, por conta do vício em apostas,
chegou a pensar em acabar com a própria vida. "Fica esse sentimento ruim,
parece que as coisas não terão mais solução."
Sem família e amigos próximos para servirem de rede
de apoio, Rafael passou a compartilhar seu drama em
vídeos no YouTube, na expectativa de ajudar outras pessoas a
tratarem o vício em apostas — que ele mesmo ainda não tinha conseguido
abandonar totalmente quando conversou com a BBC News Brasil em agosto.
Nos vídeos, ele compartilha seus esforços para
tentar superar o problema.
A primeira medida que tomou, relata, foi bloquear
sua conta em todas as casas de apostas. No entanto, uma delas não é
regulamentada e não tem um botão ou chat para solicitar a autoexclusão, como prevê a lei, então Rafael continuou
apostando através deste site.
"Então, tomei uma atitude radical de abrir mão
do meu chip de celular, com 20 anos de uso, porque foi a única maneira que
encontrei de sair desse site, onde perdi a maior parte do meu dinheiro."
Vício dos brasileiros em apostas alimenta negócios
O desespero de pessoas como Rafael tornou o Brasil
líder em novas assinaturas para o Gamban, software utilizado para bloqueio de
sites de apostas, superando outros grandes mercados como Reino Unido,
Filipinas, Estados Unidos e Argentina.
O país também se tornou o segundo maior em
visitantes ao site do Gamban em 2024, atrás apenas do Reino Unido — país de
origem da empresa e onde as apostas são regulamentadas desde 2005.
"Estamos falando de cerca de 6 mil pessoas
baixando o Gamban por mês no Brasil, sem nenhuma estratégia de marketing",
diz Matt Zarb-Cousin, co-fundador do Gamban e que tem ele mesmo um passado de
vício em apostas.
"São pessoas que a indústria das apostas estão
atraindo, mastigando e cuspindo fora, e que estão em busca de ajuda."
O britânico afirma, porém, que o fato de o serviço
ser pago torna-se uma barreira para muitos viciados em apostas, que em geral se
encontram com graves problemas financeiros, como é o caso de Rafael e Antônio.
Por isso, Zarb-Cousin diz que o ideal seria ter
alguma opção para os usuários brasileiros terem acesso gratuito ao aplicativo,
como ocorre em países como Reino Unido, Holanda, Noruega e Finlândia, onde a
Gamban tem acordos com serviços locais de ajuda a viciados, que proveem o
software sem custo para o usuário final.
O avanço das bets no Brasil também fica evidente
nos dados de aberturas de empresas.
De acordo um levantamento da BigDataCorp, o número
de empresas no Brasil com jogos de azar online como atividade saltou de cerca
de 840 no final de 2022 para mais de 2,1 mil ao fim de 2024, um aumento de
153%.
A projeção para 2025 é de mais de 1,2 mil novos
CNPJs no segmento, segundo estimativa da empresa de processamento de dados.
E um número desproporcional dessas empresas se
encontra nas regiões Norte e Nordeste.
O Amazonas, por exemplo, abriga 3,5% das empresas
do segmento de apostas online, mas apenas 0,95% de todas as empresas do Brasil.
Outros destaques são o Ceará (5,5% do setor, 2,7%
no geral), Maranhão (3,4% do setor, 1,3% no geral) e Rio Grande do Norte (3,2%
do setor, 1,1% no geral).
No total, as regiões Norte e Nordeste concentram
37,3% das empresas de apostas online registradas no Brasil, mas apenas 19,5% do
total de CNPJs brasileiros.
"A população que aposta mais, que gasta mais
nesse tipo de mercado, é efetivamente uma população de mais baixa renda e o
Norte e Nordeste concentram uma fatia maior dessa população", diz Thoran
Rodrigues, CEO da BigDataCorp.
"E há polos tecnológicos interessantes no
Nordeste que estavam prontos para pegar essas oportunidades. Então há um
casamento do mercado e do lado socioeconômico", diz Rodrigues.
O que funciona contra o vício em apostas, segundo
especialista
Diante desse quadro, de uma epidemia de vício em
apostas, que tem as pessoas mais vulneráveis do país como principais vítimas, o
psiquiatra Rodrigo Machado indica o que fazer ao identificar que você ou alguém
da sua família está sofrendo com este problema:
- procurar ajuda especializada, seja de
psicólogo ou psiquiatra, para identificar se há um quadro de transtorno do
jogo;
- procurar grupos de Jogadores Anônimos;
- utilizar aplicativos para bloqueio de
sites de apostas no celular e computador;
- solicitar a autoexclusão através dos
canais dos próprios sites de apostas;
- contar com alguém da família para
suporte e supervisão financeira — isso pode ser feito, por exemplo, através do
compartilhamento da conta bancária; ou diretamente pelo recebimento do salário
por outra pessoa de confiança; pelo monitoramento de dívidas e empréstimos
através da plataforma do Banco Central; e ajuda para renegociar dívidas.
"Esse suporte, auxílio e supervisão financeira
advinda dos familiares, especialmente no início, quando a pessoa está começando
a enfrentar o vício em jogo de azar, é bastante benéfico", diz Machado.
"Mas não tem uma receita de bolo, cada pessoa
é uma pessoa e é preciso analisar o que é um gatilho para ela, para desenhar as
soluções. Daí a importância do trabalho com equipes multiprofissionais,
formadas por psicólogos, psiquiatras e até educadores financeiros."
Além dessas medidas em âmbito individual, o médico
afirma que são necessárias políticas públicas.
Entre elas, ele sugere a proibição do marketing de
influência, com o uso de celebridades e atletas para promover sites de apostas;
a criação de campanhas educacionais; e a proibição de mecanismos de apostas
danosos, como as "apostas in-play" ou apostas múltiplas.
O psiquiatra afirma que seria importante também a
criação de serviços públicos de suporte aos jogadores 24 horas, a exemplo dos
que existem contra o suicídio.
Machado também defende a criação de um serviço
centralizado de bloqueio e autoexclusão das plataformas de apostas — solução
que ele considera preferível à parceria com empresas privadas, como o Gamban.
"Se os governantes e legisladores tiverem boa
vontade e desejo de proteger a saúde mental e financeira da população, eles
podem e existem medidas plausíveis para isso", conclui o especialista,
lembrando das regulações para venda, consumo e propaganda de cigarros no país
como um exemplo a ser seguido.
- Grupos de Jogadores Anônimos podem ser
encontrados no site da organização
Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de
alerta relacionados ao suicídio, ou caso você tenha perdido uma pessoa querida
para o suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:
- O Centro de Valorização da Vida (CVV), por meio
do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há
também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de
atendimento ao redor do Brasil;
- Para jovens de 13 a 24 anos, o Unicef oferece também
o chat Pode Falar;
- Em casos de emergência, outra recomendação de
especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia
Militar (telefone 190);
- Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone
192;
- Na rede pública local, é possível buscar ajuda
também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde
(UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
- Confira também o Mapa
da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde
mental gratuito em todo o Brasil.
- Para aqueles que perderam alguém para o suicídio,
a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por
Suicídio (Abrases) oferece assistência e grupos de
apoio.
*Nome fictício para preservar a identidade do
entrevistado.




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