A escolha da data
não poderia ser mais conveniente: mais ou menos no meio do segundo semestre
escolar, coincidindo com o dia da primeira legislação brasileira a instituir
oficialmente a educação pública primária em todo o
território nacional, a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada pelo
imperador d. Pedro 1º (1798-1834).
Em 1947, portanto,
o Caetaninho passou a ter o Dia dos Professores. E a ideia logo foi se
espalhando por outros colégios. Tanto que, no ano seguinte, se tornou lei
paulista.
"A iniciativa
de Salomão Becker é a gênese afetiva e comunitária da data", comenta à BBC
News Brasil o publicitário Rinaldo Allara Filho, pesquisador da área de
educação e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ele
percebeu o esgotamento físico e mental dos colegas ao final de um longo período
letivo e teve uma ideia simples, porém profundamente humana: organizar um dia
de folga e confraternização."
"O objetivo
dele não era criar um feriado nacional, mas sim um momento de pausa e
reflexão", explica Allara. "Era uma oportunidade para os professores
se reunirem, trocarem experiências sobre os desafios da profissão, analisarem
os problemas em comum e, principalmente, descansarem e se sentirem valorizados
por seus pares. A iniciativa nasceu 'de baixo para cima', a partir da vivência
real da sala de aula. Era sobre congraçamento, sobre criar uma comunidade de
apoio mútuo em um ofício que pode ser muito solitário."
Questão constante
na história brasileira, a busca pela valorização do trabalho do professor era
uma preocupação naqueles anos 1940. Tanto que, naquela mesma época, a
professora catarinense Antonieta de Barros (1901-1952), então deputada
estadual, criou uma lei instituindo o Dia do Professor como feriado escolar em
Santa Catarina.
Barros entraria
para a história como a primeira mulher negra a ser eleita para um cargo público
no Brasil, tornando-se um ícone de pioneirismo tanto para o movimento negro
quanto para a causa feminista.
"O professor
Becker não estava só em sua iniciativa. Outros personagens se destacaram com
essa ideia [de valorizar o magistério]. Por coincidência ou não, a professora
Antonieta de Barros trabalhou nesse mesmo sentido, de valorizar a figura do
professor mediante o estabelecimento da efeméride", afirma à BBC News
Brasil o educador Italo Francisco Curcio, consultor da Fundação Eduardo Carlos
Pereira. "E ela o fez, por meio de uma lei estadual."
Allara pontua que
embora não haja evidências de conexão direta ou colaboração entre Becker e
Barros, é preciso ressaltar o "espírito do tempo" do Brasil daquela
época.
"O país vivia
um período de redemocratização após o Estado Novo, e havia um debate nacional
intenso sobre os rumos da nação e o papel da educação nesse processo de
reconstrução. A necessidade de valorizar o magistério era uma pauta latente na
sociedade", diz o professor.
"Particularmente
penso que, as duas iniciativas, embora independentes, podem ser vistas como
duas manifestações distintas, porém complementares, dessa mesma necessidade,
uma nascida da prática e da solidariedade de classe em São Paulo, e outra, da
visão política e do compromisso social em Santa Catarina."
Allara observa que
há uma complementaridade entre as duas iniciativas.
"Mostra que a
luta pela valorização não é uma abstração, mas foi liderada por pessoas reais,
com motivações concretas. Becker nos lembra da importância do cuidado mútuo e
da saúde mental docente. Antonieta nos inspira com sua resiliência e visão
política", afirma.
Fato é que a
proposta pegou em todo o país. Em outubro de 1963, o então presidente João
Goulart (1919-1976) publicou um decreto instituindo o feriado escolar do Dia do
Professor no território nacional.
História, geografia e direito
Formado em
filosofia pela Universidade de São Paulo, Becker foi professor de história e
geografia em diversas escolas públicas e privadas ao longo de 49 anos. Ele era
filho de imigrantes que trocaram a Moldávia pelo Brasil no início dos anos 1910
e deficiente físico — tinha paralisia total no braço direito, desde o
nascimento.
Na juventude,
Becker teve uma breve passagem pelo jornalismo, como repórter do jornal Folha
da Tarde. Encontrou-se mesmo no magistério. Tanto que, já aposentado, decidiu
cursar Direito e, tão logo se diplomou, acabou se tornando professor de direito
internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Curcio reconhece
que há poucas informações biográficas que detalhem a trajetória de Becker mas
que, "bastou essa iniciativa", a da criação da data comemorativa,
"para mencionar-se sua notoriedade".
"Entendo que
ele estava imbuído do mesmo princípio que o meu: o da necessidade de se
destacar uma data para homenagear um personagem marcante em nossa vida, o
professor, a professora", comenta o educador.
"Com seus
quase 50 anos de docência, os registros históricos disponíveis acerca de sua
biografia são parcos e não nos possibilitam destacar eventuais outras grandes
marcas, que possam ter sido vivenciadas. Mas, mesmo assim, sabe-se de seu
brilhantismo e dedicação singular na sua vida de professor", avalia
Curcio.
Para o educador,
Becker almejava "muito mais do que a efeméride". "Ele queria
festejar e promover um dia de destaque do professor", salienta.
Pioneira
Antonieta de Barros é uma figura que vem sendo resgatada do apagamento nos últimos anos — em 2023 teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Filha de uma lavadeira, ex-escravizada, com um homem sobre o qual há poucas informações, teve uma infância pobre e difícil em Florianópolis.
Para ajudar nas
despesas domésticas, sua mãe transformou a casa da família em uma pensão para
estudantes. Conta-se que foi essa convivência que fez da menina uma apaixonada
pelas letras. Tudo indica que foi por causa desses clientes de sua mãe que
Barros se alfabetizou, inclusive.
Tornou-se
professora e, ao longo da vida, dividiu-se entre empregos em escolas e o curso
particular que ela criou para alfabetizar crianças pobres e sem acesso escolar.
Também foi
jornalista. Fundou o dirigiu o jornal A Semana e escreveu para a imprensa
local, não raras vezes tecendo críticas sociais.
Na política,
iniciou como ativista de classe — foi uma das fundadoras da Liga do Magistério
Catarinense. Mais tarde, se tornaria deputada estadual, uma das primeiras
mulheres eleitas do país e a primeira mulher negra a ocupar um cargo eletivo.
Também foi constituinte em 1935.
"A história de
Antonieta de Barros ressignifica a data", ressalta Allara. "Ela nos
lembra que a valorização do professor está intrinsecamente ligada à luta por
uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa."
"Ela, uma
mulher negra educando a partir das margens, viu na institucionalização do Dia
do Professor um ato de afirmação da educação como pilar da democracia.
Portanto, revisitar sua história não é apenas resgatar o passado; é nos
inspirar para lutar por um futuro onde a valorização do professor seja, de
fato, a prioridade que a sociedade brasileira merece."
Marco fundador
Estudioso da
história do magistério no Brasil há 30 anos, o linguista Vicente de Paula da
Silva Martins, professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no
Ceará, lembra à BBC News Brasil que é preciso destacar a importância da data
escolhida no Brasil para comemorar o Dia do Professor.
"É o marco
fundador do sistema nacional de ensino e da valorização jurídica da profissão
docente", destaca ele, referindo-se ao decreto imperial de 1827.
"Escolher essa data não é apenas um gesto comemorativo: é o reconhecimento
da origem legal, institucional e simbólica da docência no Brasil."
Ao analisar a
legislação original, Martins explica que ali estão os fundamentos que definem
quem são os professores, quais seus papéis e como deveria se estabelecer a
autoridade pedagógica no país recém-independente.
"Tudo isso
inserido em um projeto de sociedade cujas marcas ainda influenciam a forma como
valorizamos, ou nem sempre valorizamos, o magistério", pontua.
A lei daquela
época, por exemplo, delimitava diferenças entre professor e mestre. O primeiro
era responsável direto pela instrução dos alunos. Já o mestre ocupava posição
mais elevada na hierarquia escolar, exercendo papéis de supervisão, orientação,
coordenação e liderança.
Martins observa que
tal "arranjo institucional" previa a "construção de uma
hierarquia sociopedagógica", com papéis definidos de instrução e de
controle e organização do ensino. Para ele, portanto, houve não apenas a
organização do ensino das primeiras letras, mas a consolidação de "uma
estrutura educacional marcada por desigualdades de função, prestígio e
gênero".
"Todos os
mestres eram professores, mas nem todo professor era mestre. E as mestras,
embora formalmente reconhecidas, atuavam sob limites impostos pela sociedade
patriarcal da época", resume. "Essa distinção, cristalizada
legalmente, ecoa ainda hoje em debates sobre valorização docente, liderança
pedagógica e igualdade de gênero na educação brasileira."
Para o professor da
UVA, a lei de 1827 tem de ser entendida como "documento fundamental para
compreender a formação da educação pública no Brasil". "Ela
representa, ao mesmo tempo, um avanço normativo e um reflexo das contradições
do liberalismo brasileiro no século 19", avalia Martins. "É uma lei de
inspiração moderna, que valoriza o mérito, a instrução e a profissionalização
do magistério. Mas que permanece presa às amarras da centralização
imperial."
Por outro lado, ele
reconhece que, ao determinar a criação de escolas de primeiras letras em todo o
território, o imperador empreendeu, para os padrões da época, "uma
tentativa ousada de universalizar o ensino básico".
"A educação,
que até então era privilégio das elites e muitas vezes restrita a instituições
religiosas, passou a ser entendida como um serviço público, sob
responsabilidade direta do Estado", contextualiza ele. "Essa mudança
de paradigma foi essencial para a construção de uma identidade nacional que
valorizasse o saber e a formação cidadã."
A lei imperial foi
a primeira a reconhecer o professor como "agente fundamental" na
"formação moral, intelectual e cívica dos cidadão".
E estabelecia até
mesmo a remuneração que deveria ser dada aos professores. De acordo com estudo
de Martins, os valores previstos naquela legislação, se atualizados para a
realidade atual, indicariam que um professor deveria receber ordenados mensais
de no mínimo R$ 5.733 — e um teto de R$ 14.336.
O currículo básico
deveria ensinar leitura, escrita, aritmética, gramática, moral cristã, religião
católica, geometria e constituição e história do Brasil.
Para os
especialistas, a data ainda hoje é importante para provocar uma valorização do
magistério. "Apesar de ter menos pompa do que em outras épocas", diz
Curcio.
Allara vê "uma
dualidade" no feriado escolar.
"Por um lado,
há uma dimensão afetiva e genuína, manifestada por alunos e famílias, que
reconhece o impacto do professor em suas trajetórias. Esse reconhecimento é
valioso e necessário para o bem-estar emocional do docente", comenta ele.
"Contudo, por
outro lado, essa celebração pontual contrasta com um desafio estrutural. A data
promove um reconhecimento sentimental, mas ainda falha em impulsionar a
valorização profissional da categoria. A sociedade precisa avançar na percepção
do magistério, superando a imagem histórica de uma profissão puramente
vocacionada, que por vezes beira a filantropia em termos de condições de
trabalho, para consolidá-la como um pilar estratégico na construção de futuros
cidadãos."
Ou seja: a data
celebra o professor, mas ainda faltam políticas que valorizem efetivamente o
magistério.
"As
celebrações não dependem apenas do sentimento de alguém que as organiza ou que
as sugere, mas, sobretudo de quem as assimila, inclusive seu organizador ou seu
proponente. Por isso, o tom da celebração é relativo", pondera o educador
Curcio.
"Eu ainda
creio que o professor é uma figura respeitada e celebrada."
(Fonte: BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário