Hoje vou fazer do escrete o
meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila
entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos
botecos, por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”.
E, aqui, eu pergunto:
— Não será esta atitude
negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: — desde
50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos
uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer
brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode
curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos
ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor
tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e
não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse
“arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um
dente.
E hoje, se negamos o escrete
de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona.
Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: —
o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos,
qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se
volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria
todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: — o escrete brasileiro
tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente,
“não”. Mas eis a verdade:
— eu acredito no brasileiro, e
pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um
granadeiro bigodudo. Tenho visto joga dores de outros países, inclusive os
ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo.
Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu
contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um
Zizinho.
A pura, a santa verdade é a
seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições
e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de
improvisação, de invenção. Em suma:
— temos dons em excesso. E só
uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero
aludir ao que eu poderia chamar de “com plexo de vira-latas”. Estou a imaginar
o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.
Por “complexo de vira-latas”
entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em
face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.
Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por
que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe
brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo,
espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos
superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois
bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque
Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: — o problema do
escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É
um problema de fé em si mesmo.
O brasileiro precisa se
convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na
Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele
precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
Insisto: — para o escrete, ser
ou não ser vira-latas, eis a questão.
Texto
extraído do livro “As cem melhores crônicas brasileiras”, editora Objetiva, Rio
de Janeiro (RJ), p 118/119, e ao livro “À sombra das chuteiras imortais:
crônicas de chutava”, seleção de notas de Ruy Castro – Companhia das Letras –
1993.
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